domingo, 30 de novembro de 2014

A pátria (final)


Luanda. Lisboa. Preenchi os meses no hospital militar com leitura, os meus pais remeteram-me caixas com livros da biblioteca atlântica, passei a chamá-la assim para o homenagear... morreu convencido de que me encontraria do outro lado, agarrado à fé para me velar, mas extinguiu-se primeiro... a casa tem estado fechada desde então, a velha Penélope seguiu-o meses depois, só tem vida nas férias.

Regra pessoal: as solidariedades inusitadas. Os meus livros despertaram a curiosidade dos outros internados, começaram a circular pelas enfermarias e organizei sessões de leitura no quarto. Criámos um grupo, uns estavam ali só para ouvir e fumar, outros aproveitavam para matar o tempo e fumar, poucos prestavam atenção mas fumávamos todos: o presente consumia tudo, era tudo o que tinhamos em comum, devorava-nos. Meses depois, recebi a visita do Sr. Henriques.

Alguém me terá indicado como potencial instigador de uma futura "revolução hospitalar"; um homem alto e magro, seco seria a expressão indicada, surpreendeu-me a ler poesia. Entrou sem bater à porta, facto que imediatamente salientei, soerguendo-me com os cotovelos, mas ele sorriu e apresentou-se. Trazia consigo um embrulho (papel pardo), pousou-o ao fundo da cama, pigarreou para começar por enunciar-me os deveres dos militares, sublinhou a honra inerente, enalteceu o sacrifício e a coragem da abnegação. Frisou as hierarquias sagradas. Depois falou dos meus pais, funcionários públicos exemplares, exemplares.

O Sr. Henriques explicou-me: alguém como eu deveria ter consciência da sua condição, aprender a ser humilde. Não deveria tornar-me um fardo para os outros. Foi a minha vez de emudecer. Suportei o seu olhar gélido, sem palavras, estava tudo dito; ele despediu-se com a saudação militar, percebi-lhe o sorriso irónico. “Filho de puta!” gritei, minutos após perder o eco dos seus passos, mas ele não deve ter ouvido. Duas semanas depois, com a notícia da alta e o regresso ao arquipélago, deixei de pensar no desagradável personagem: guardaria outra memória.

O meu pai, passados o choque inicial e o brilho da condecoração, percebeu-me um herói de guerra a quem faltavam peças, bom para citar nos discursos mas impróprio, para exibição contínua, nos serões. Outra regra pessoal: a fina-flor tinha, na minha presença, a prova da feia realidade exterior à sua. A minha mãe não conseguia falar comigo sem chorar, era incapaz de estar perto de mim sem dizer “pobrezinho do meu filho”, rezava novenas infindáveis, pedia a Deus. Era um inferno.

Recusei o motorista, disse-lhe: mãe, quero ir só; ele pediu ao Moniz para o levar até à freguesia, vai viver para lá, senhor inspector; a casa tem estado fechada, o meu pai fez o seu papel, eu sei mas preciso disso, vi o alívio na cara dele; nunca falou em política ao Moniz, senhor inspector: ouve jazz e não tem amigos; tenho de agradecer ao Moniz a amabilidade: passo-lhe um cheque... para lhe pesar a consciência de bufo; se o Moniz lhe puxava o assunto do hospital militar, dizia-lhe sempre: todos traidores por igual, não sou mártir de ninguém; sei que na freguesia vou voltar à vida: ser em comunidade, reconstruir-me; é como ele diz ao Moniz, senhor inspector, é um ex-combatente com alma de escritor: vai viver para o mato e escrever poesia, não nos trará problemas.

- O seu nome é Marco António?
- Sim, porquê? Está a rir-se? (cotovelos hirtos)
- Não vai acreditar... chamo-me Cleópatra.
- Está tudo explicado. (ombros soltos)
- Como?
- A sua entrada neste quarto não pode ser um acidente... (costas para trás)
- E não é.
- Não?! (expirar)
- O meu pai, Inspector Henriques, veio fazer-lhe uma visita ontem e esqueceu-se de...
- Saia imediatamente. (punhos cerrados)
- Mas...
- Saia! (corpo raiva)

A memória daquele momento, assomava de quando em quando, como uma semente adormecida. Nunca em sonhos. Mas voltava, outra vez, a lembrança do diálogo e da interlocutora, a reacção intempestiva. Já fantasiara mil variações da conversa, na possibilidade... imaginara-a filha de ninguém. Vindo da cidade para o interior, dedicara-se a reorganizar a biblioteca atlântica; ao abrir velhos caixotes de livros, deparara-se com o embrulho em papel-pardo esquecido pelo Sr. Henriques, há tanto tempo, e ainda por abrir. Desembrulho. Como explicar ou entender o inesperado? Escrito, a lápis, na primeira página, um poema de Pessoa.

À Emissora Nacional

Para a gente se entreter
E não haver mais chatice
Queiram dar-nos o prazer
De umas vezes nos dizer
O que Salazar não disse

Transmitem a toda a hora,
Nas entrelinhas das danças,
«Salazar disse» Emissora
E aí vem essa senhora
A Estada Nova com tranças.

Sim, talvez seja o melhor,
Porque estes homens do estado
Quando falam, é o pior,
E então quando são do teor
Do chatazar já citado!

O livro passara a ocupar espaço nobre na biblioteca, um suporte para a fantasia. Ulisses deixara de o visitar em sonhos, partira com os guardadores de rebanhos, há muito tempo, sem outra mensagem. Num ímpeto, apesar de ameaçar trovoada, resolvera sair até à cidade, caminhar na marginal; encostado ao muro, o vento ríspido e húmido a embaciar-lhe as lentes, vira como o céu cinzento só se separava do mar pelo movimento, inspirara com sofreguidão. Regra pessoal: isto sou eu, este ar e este céu, o sol caído e o que retornará, a chuva do olvido e o que ficará. Fechou os olhos para se perder na visão repetida, abandonado (quase guerreiro viajante).

Viu os homens chegarem, as veredas do mato para a costa, o mar azul do negro atlântico, as resistências, senhores e escravos, as sobrevivências, senhores e escravas, o sangue, as misturas, povoadores e colonos, as partidas e os retornos, os caminhos migrantes de outros espaços, a sobrevivência transformada em identidade, viu o vapor ser trocas e esperança vã, as guerras repetidas e inúteis, os eternos regressos... o laço universal além do espaço ou do tempo. Fragmentos do infinito?

Abriu os olhos, dois corvos grasnavam ruidosamente, mas fora outra coisa a despertá-lo: percebera profundidade naquele momento, premonição do instante seguinte, sentiu uma mão pousar-lhe no ombro e (ainda antes de ela falar) reconheceu-lhe a voz.

- Marco António? 


M. Lisboa: 2014


Particularidade no Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)


sábado, 29 de novembro de 2014

Pacote turístico


português azul piscina talvez “made in China”
ou outra potência global demência total o moderno
eterno entretenimento capital e tempo
benefícios fiscais artifícios reais pacote
turístico chicote humorístico ser pauta o continente
falta o “adjacente” ilhas serão demasiadas milhas?
turismos em Portugal eufemismos
comercial memória instalada história afastada
versões diferentes porções e gentes sem voz
após narrativas fabricadas expectativas registadas
abatidas recordações esquecidas azulejo erudito
azul Tejo bendito comunicação misturas
na multidão culturas evidências procuras
existências

M. Lisboa: 2014

Particularidade (estrutura temporária) - cidade de Lisboa (fotografia: lob77)


sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Nome de santo


Vicente olhava o filho com orgulho mas, ao mesmo tempo, sentia-se consternado pela atitude do patriarca: não demonstrava entusiasmo ou alegria. Os três estavam na pequena sala, antecâmara para a biblioteca, sentados ao redor de uma mesa rasteira, os mais velhos fumavam. Aconselhara António a esperar, pelo fim do almoço, para dar a notícia ao avô, uma altura mais calma e propícia a conversas viris; imaginara o velho Ulisses a explodir de alegria mas...

Ao ouvir os argumentos do jovem, percebera o discurso vazio mas obrigara-se a escutá-lo, o velho não interrompera o neto; na sua cabeça, como fotografias sucedendo-se, as razões urgentes da primeira partida, os primários tempos para ser outro, o suor e o sangue. Sempre o sangue. Justificara as atitudes e os comportamentos, é a ordem do mundo: o que posso fazer?, como se os corpos humanos fossem força animal; se não for eu a fazê-lo, será outro: eu recompenso os que são bonzinhos e fiéis... Depois... a outra ilha e outro negócio, mais limpo, delegar tarefas (não vira mais sair-lhes dos corpos a sua fortuna), fugira ao sangue para se educar longe: assinara papéis.

As casas e propriedades, as acções e os comércios, o património, a profissão do notável filho, a (inútil) educação do neto... construíra uma herança com sangue dos outros: a escravatura permitira-lhe apagar o passado, criara fortuna, inventara um futuro. Mas a proximidade da morte... consumia-o em remorsos. Manchavam tudo. O neto queria derramar o mesmo sangue? O velho vira a expressão do filho transformar-se, várias vezes, mas ignorara-o para concentrar o olhar no jovem: repetira a pergunta, recebera silêncio. Ulisses, então, percebera... apenas valeria o silêncio – paciência, aprenderá da pior maneira. Não voltariam a falar no assunto.

A velha Penélope começara a chorar e a rezar, mal o silêncio se instalara; os três ouviram-na soluçar, atrás da porta, avés a Oxum e Santa Efigénia. Mais tarde, quando todos navegarem o mar dos sonhos (e António se esgueirar para fora de casa), a negra subirá ao quarto dele. Deixar-lhe-á, sob a almofada, o talismã fragmentado (única herança da alma que a habita), pesarosa por lhe saber diminuído o poder, triste... por não poder exorcizar o futuro. O jovem fora inequívoco: iria ajudar na defesa de Angola, terra portuguesa, ameaçada pelas forças internacionalistas e pelos terroristas: seria feita a sua vontade.

Nambuangongo, 1962
Avô,
Os homens são animais estranhos, tal como costumas dizer, aqui tenho vindo a aperceber-me de como, inúmeras vezes, é grande a distância entre aquilo que é dito e aquilo que é feito. Ou o seu contrário. As palavras importam: desculpa não ter escutado.
Quero agradecer-te por me ensinares as pessoas e os gestos da terra: quiseste preparar-me para ver os outros. Quero agradecer-te por me teres levado a caçar gambuzinos, quando era criança, e deixado sozinho na floresta à noite: quiseste preparar-me para as mentiras, o engano. Quero agradecer-te também... por me teres tentado mostrar outros mundos na tua biblioteca, podia ter viajado na literatura, imóvel, sem sangue.
Teu neto,
António

Acordara no escuro, sentira o corpo dormente e a cabeça pesada como chumbo, assim os olhos se habituaram à ausência de luz, começara a perceber vultos de outras pessoas. Pensara em falar mas... nada no seu corpo se movera ou lhe obedecera aos pensamentos, sentira a aproximação de dois dos vultos: percebera que não eram portugueses, o coração quisera saltar-lhe do peito – não podia mostrar medo, não tinha medo e ia dizer-lhes isso... – , desmaiara.

- Morreu?
- Não, adormeceu, as ervas são fortes.
- Vai viver?
- Metade dele.
- Ancião, por que o recolhemos?
- Por que perguntas?
- Deixamos todos para trás, a guerra fica e nós passamos sempre, somos guerreiros viajantes.
- Vê isso aí, no pescoço dele? O que é?
- Não sei.
- Nem eu, mas lhe sonhei.
 
Passaram muitos meses até voltar a ser, em modo permanente, até ao quase antes; os primeiros tempos acordado pareceram-lhe sonhos - outra vida, nada lhe era familiar. Ali não ouvia a guerra. Eles eram pastores nómadas, personagens vistas desenho nos livros folheados com o avô, descobrira-os seres humanos: comunhão amoral com a Natureza. Aprendera-se outro ao desaprender os conceitos imperiais. A memória do velho tornou-se tão intensa... passou a visitá-lo nos sonhos, Ulisses aparecia-lhe quando dormiam perto de nascentes, contava-lhe estórias de criar mais sonhos: António acordava depois, certo da sua condição... e vivia. Ali não havia guerra.

Ninguém o tratara de modo compassivo ou caritativo, recuperado das febres e com dores suportáveis, havia sido incluído nas tarefas quotidianas da comunidade, sobrevivência. Comunicavam com ele por gestos mas forçara-se a aprender palavras: faltavam-lhe as pernas mas sobravam-lhe as mãos. O exército português encontrou-o, quase um ano depois, africanizado o bastante para franzir o sobrolho ao som da língua padrão e estalar a sua; dias antes, os pastores haviam-no deixado perto da aldeia onde as tropas o recolheram; prosseguimos com a nossa viagem, dissera-lhe o ancião, a tua termina aqui: nós temos encontro marcado com o infinito.

M. Lisboa: 2014

Parque das Nações - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Outros mundos


paralelas realidades vistas belas cidades
património classificado pandemónio edificado
considerado intemporal memória cultural história
no século passado – que não é o dezanove – muito houve
na periferia de Lisboa elegia Madragoa reencarnada rio
retornada fio margem dupla passagem culpa ponte aérea
fonte etérea buscaram urbanização alegoria social
(salvaram restauração e hotelaria, afinal) trouxeram
laços acorrentados ficaram traços enunciados
imigração esquecida recuperada tecida intrincada
emigração repetida recomendada pedida outorgada
nacionalidades impossíveis imbecilidades
plausíveis nestes pedaços de mundo percalços
fundo fosso separação social alimentada estrutura
poço segregação legal justificada perdura:
têm pena (Santa Filomena) tanta pena dizem-se anjos
dão asas, mostram-se lobos: derrubam casas

M. Lisboa: 2014

Parque de estacionamento - cidade de Lisboa (fotografia: lob77)

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Outro delfim


Para o retorno à ilha materna, precedera-se de donativos (regulares) às obras beneméritas, estabelecera correspondência com pares e comerciantes; proporcionara o primeiro jantar social por motivos calculados, percebera o erro dos dois meses antecedentes, sem frequentar os salões da urbe; estava decidido a conquistar a simpatia das elites locais: sabia-a bem mais proveitosa, a longo prazo. Cumpriu escrupulosamente as regras sociais, maravilhou os presentes com os seus relatos e narrativas de viagem. Um sucesso.

Preparara a visita à freguesia natal durante semanas, espalhara a notícia de que estaria interessado em adquirir uma casa de lavoura e alguns terrenos; uma vez mais, e a recordação agridoce atravessara-o, a solidariedade insular funcionaria: a comitiva urbana, os pares tinham terrenos para venda..., ficaria instalado com os notáveis da população. Durante a viagem, fora-lhe difícil conter as sucessivas emoções provocadas pelo caminho, mas conseguira – concentrara-se nas explicações dos outros. Regressara ao tempo escrito nos seus diários, às veredas das gerações esquecidas.

O espaço verde, imenso como na memória, intensificava a sensação de reconhecimento: o cheiro das plantas pisadas pelas bestas, carregadas, o resfolegar, os sons dos inverosímeis pássaros, a companhia insistente dos insectos, o pressentimento presença dos répteis, a magia inesperada da água abundante. A tudo se obrigou a reagir como se... fosse novo, não diferente. Ulisses sabia que não seria reconhecido, dezoito anos transformam o corpo e já não vive ninguém da minha família, pensara, depois olhara Vicente – empertigado na sela, altivo –, sem evitar sorrir, orgulhoso: o futuro.

Felicidade não sentia falta da cidade, faltavam-lhe as pessoas, não nenhuma pessoa em particular, queria ter gente para conversar, ver e ser vista: o embevecido marido não era público suficiente. No campo o espelho era enfado, bastava-lhe pouco para brilhar nos serões da freguesia, e se brilhava! A casa era de lavoura e a ela, menina nada e criada em outro meio, tudo lhe parecia rústico ou encantador (por não ter tarefas). Felicidade existia em sorrisos perpétuos e na beleza da aceitação.

- Felicidade?
- Sim.
- Um nome encantador mas, devo dizê-lo, o verdadeiro encanto está em quem nomeia.
- ...
- Surpresa? O seu marido não é o único cavalheiro, neste fim de mundo...

Menino não queria vir viver para o mato, preferia a cidade, mas senhor decidiu e senhor manda, briga parou com o tempo, mas tem muitas portas e janelas fechadas, menino quer voltar para a cidade, se aborrece. Oxum, escuta... afasta a impaciência dele, acalma seu coração galopante, solta seu choro esquecido. Santa Efigénia bendita, escuta... ampara o passado do senhor, lhe faz ver o filho presente, lhe lembra um futuro.

- Agora reparo, tem o mesmo nome da ilha onde nasceu... é acidente?
- Não, pelo contrário, foi um desejo de minha falecida mãe.
- Devota do santo?
- Sim, muito.

Vicente retirara o livro, lombada azul profundo, da estante e abrira-o ao acaso, vira depois: poesia. Voltara imediatamente a colocá-lo na estante, já tinha a sua dose de melancolia nostálgica: vivia no meio do mato, afastado da civilização, não precisava de poemas para alienar. Depois do Verão tudo seria diferente, regressaria à cidade: queria devorar o mundo, entretanto... bastava-lhe a benevolência da Felicidade, vizinha.

- Voltará?
- Claro que sim, minha querida, voltarei só para poder estar nos seus braços.
- Promete?
- Não sabe que o meu amor é eterno?

Menino aprendeu a brincar como homem, quer lembrar cidade em corpo da mulher alheia, mas tem muitas portas e janelas: segredos escapam, mas menino tem fome de mundo todo... não sabe que mundo come também. Vai voltar na cidade, Oxum, escuta... leva maldade brinquedo dele, acalma coração desgovernado, fecha seu corpo. Santa Efigénia bendita, escuta... alivia fardo do senhor, lhe faz ver o filho presente, lhe lembra do passado.

Vicente partira, Felicidade impusera-se quase reclusa no quarto, encerrava-se aí durante horas seguidas; escrevera dezenas de cartas, nem uma resposta, até desistir; depois, deixara de usar as portas da casa com acesso ao exterior, afastara-se também de toda a vida quotidiana: limitara a sua interacção, com outros seres, à hora das refeições; a única excepção eram os dois corvos, pontuais e soturnos, com quem partilhava a queda do sol no horizonte. Chegavam para a observar, costas viradas para o astro cadente, depois partiam silenciosos.

Quando Felicidade deixou de aparecer à mesa não deram por isso, foi o lugar vazio que gritou a sua ausência, foram encontrá-la no quarto: extinguira-se por inanição. O casamento vicentino (com alfacinha virgem noiva), notícia no jornal da paróquia, espoletara a aceitação da fome: invisível para todos, transparente à hora das refeições, desaparecera muito antes. Os corvos também.

M. Lisboa: 2014

Particularidade em jazigo: Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Hagiografia Contemporânea - 10

 
Ponto de chegada (rebuçado)

nos mares aproximaram humanos monstruosos
lares partilharam danos portentosos
pão roubado sangue vão determinado
perdão guerra após guerra no fim
fazem caridade assim sem claridade
nos templos uniram tempos ungiram monstros e santos
tantos mitos corpos ritos mortos redenção
domingo a domingo absolvição (tinto)
e fazem caridade assistida para ser verdade vivida
nas escolas misturaram santos e pessoas mantos
boas regras submissão justificaram cegas
exclusão dia após dia ilusão na pedagogia caritativa
selectiva com pressupostos:
santos, anjos e outros que tantos
nascem depois de mortos. 

M. Lisboa: 2014

Particularidade em jazigo: Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)
 

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Outra viagem


O português olhara-o sempre de soslaio, semblante cerrado para sublinhar a patriarcal autoridade, mas, feitas contas e previstos ganhos, acedera ao pedido de casamento. Era uma filha bastarda, mantivera-a em casa por insistência da sogra, as mulheres afeiçoam-se, e a criatura aprendera a ler e a escrever, pela teimosia da velha, para ler-lhe os clássicos e a correspondência familiar, escrever-lhe as cartas; tudo isto lhe explicara o futuro sogro, enquanto a esperavam.

Ulisses sentira o coração parar, assim o corpo dela entrara no espaço, soubera ter iluminado o olhar mas não desarticulara a pose, seguira os protocolos. O progenitor começara um discurso elaborado, orgulhoso em estreitar laços com um ilustre português - abastado negociante. Ela não desvia os olhos do pai, concentração absurda - pensara o notório emigrante, ansioso por reencontrar-lhe as íris. As palavras do patriarca só eram ouvidas por ele próprio, a filha fitava-o mas não o ouvia, ao entrar reconhecera o outro homem – o tal com nome de rei; circunspecta ao exterior, por dentro a turbulência de quem lê e imagina, antecipava o momento em que teriam de olhar-se e trocar palavras, por dentro tremia.

- Estou disposto a casar consigo.
- E eu obrigada a aceitá-lo.
- Assim é.
- Assim será.
- A sua graça?
- Odisseia.

Nas conversas dos serões da elite, Ulisses percebera-se abordado por esotéricos republicanos, mas a sua erudição não almejava integrar outras lojas: bastava-lhe o negócio do carvão (e os associados). O casamento funcionara como apaziguamento para as investidas das quase noivas, a sua jovem esposa primava pelo silêncio social, mas acicatara as matronas (e as associadas) por verem preteridas as suas esperanças. Odisseia integrara a sociedade urbana com parcimónia, a biblioteca confirmara-lhe o destino, saía de casa apenas para atender às necessidades (montra) da alma católica. Nunca se recusara a acompanhar o marido nas deslocações a outras residências, invocara a timidez como desculpa para esses serões silenciosos, contraste notório à intimidade do lar.

- Senhoras, deixemos os homens com as suas palavras políticas, regadas a conhaque e perfumadas com charutos, passemos ao salão. Odisseia, que nome delicioso!, permita-me que a conduza, afinal é uma estranha, ainda não conhece a casa.
- É muito gentil, obrigada.
- Minha cara, não se trata de uma questão de gentileza, é simples educação. Vem do berço.

         Ele tomara a solidão como antídoto para o sofrimento, causado pelo primeiro coração partido, escudo contra a distância da família, e garantia de progresso; Odisseia transformara-o. Passara a pagar uma renda às crioulas gentis que mantinha (também) para garantir negócios ou monopólios, e a remunerar quem lhe tratava da casa: a sua consciência considerara-se redimida. Os passeios ao lusco fusco, antigas reflexões intimistas, agora, eram espaço de construção para hipóteses futuras.

- Vamos chamar-lhe Vicente, promete...
- Não sou supersticioso, sabes bem.
- Faz-me a vontade, por favor.
- Como explicar essa tua insistência? Não percebo...
- São coisas nossas, promete..., prometes?
- Com uma condição, não se fala mais no assunto.

Senhor se fechou na biblioteca, com portas e janelas também, faz dois dias, desde que menino nasceu. Oxum, escuta: guia alma da senhora para a água doce, espelho do choro. Levei comida para senhor e ele recusou, só silêncio depois. Lhe deixei água e então me mandou embora, chorando, gritando. Santa Efigénia bendita, escuta: guia a alma da senhora para a luz, libertação do sofrimento. Senhor ficou sem amparo na alma: vai gastar choro para poder ver de novo, vai lembrar da criança para viver, vai lhe dar um futuro longe.

M. Lisboa: 2014

Particularidade em jazigo: Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

domingo, 23 de novembro de 2014

Hagiografia contemporânea - 9

 
Unicórnios (pessoas humanas)

raros:
passado alfabeto inventado correcto
mitologia inovada ideologia recusada
muito poucos:
crianças surpresas lembranças certezas
gravatas recusadas batas abandonadas
quase inexistem:
mistério teorema sério problema
fábulas actuais cidades rábulas astrais idades
fotografadas realidade transformadas metade
aproximadamente zero:
confiança compaixão esperança devoção
num imaginário evanescente num fabulário
imanente tipo Lisboa mito luz boa

M. Lisboa: 2014

Miradouro - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

sábado, 22 de novembro de 2014

Hagiografia contemporânea - 8

Anjo

ruídos troços ouvidos vossos adágio
comunicação cimeira presságio antecipação certeira
julgamento (o final) memórias momento afinal
escórias depuradas mito eterno ocidente assexuado
imaginado construído funerário consumido necessário
mensagem confusão imagem profusão escultura
tempo mudo ternura tempo tudo procura
expressão entendimento ilusão recolhimento
risco humanizar fronteira raciocinar visco barreira
penas celestiais perpetuadas asas projectadas
tema morte lema sorte ou capitel e esse tal
de Miguel (padrinho de Portugal) onde está ele afinal?
pobre Conceição coroada sobre a maldição danada
reina na cozinha (salsichas
alemãs) ou reina sozinha (artistas
talismãs) reina sem chão então reina bem
não se sabe pois não cabe Lisboa cidade
epicentro polarizado movimento misturado heranças
irreconhecíveis esperanças possíveis quebrar o monólogo
criar um prólogo: metáfora país diáspora que diz
universal êxodo humano peso do mundano criado
pelo colonialismo preciso capitalismo juízo angelical
contemporâneo friso letal sucedâneo jazigo real memória
passada estória preparada monumento familiar indica
os tempos implica documentos procurar sentidos
apesar dos perigos

M. Lisboa: 2014

Particularidade em jazigo: Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Hagiografia contemporânea - 7

Fadas

“Fadas são ficções aladas” quem tal
pode ver afinal (sobe ser) indizível será invisível
terá descobertas intransmissíveis fará promessas impossíveis
se o passado dó cala quando o passado só fala em
Morgana: amoral intenção profana dual ilusão
sem correspondência realidade consequência maior
idade erudição sobre o oral ilusão cobre o real
“Fadas são ficções aladas” tornadas fogueira
culpadas cimeira Inquisição feiticeiras ilusão
as primeiras memórias carvão Maria Feiticeira:
nome cristianizado fome do passado cidade parda
sincrética verdade farta profética luz azul Lisboa
ser sul movimentação intemporal repetição subliminar
“Fadas são ficções aladas” tornadas mensagens criadas
viagens literárias modelos imaginários atropelos vários
Oriana: tropeçar sem asas para o chão recuperá-las ou não
(dúvida evidência: as vogais... são coincidência?)
“Fadas são ficções aladas” surgidas personagens animadas
fingidas mensagens avisadas imperial burburinho afinal 
(é global) a Sininho.

M. Lisboa: 2014

Gaivota - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)