terça-feira, 29 de março de 2016

Tempos

Pretérito perfeito

A mulher deixou-se ficar na soleira da porta, braços caídos, a fitar o chão. Teve medo de encarar o homem, sentado à mesa, por não saber esconder o medo: como seria ele? O regedor, quando a chamara, fora peremptório, explicara-lhe a situação com palavras complicadas. Trataria da casa de um aristocrata, homem da nobreza, que não respeitou as suas origens, um traidor, talvez louco. Exilado. Anarquista.

- O que é isso?
- São pessoas que não respeitam a ordem.
- As ordens de quem?

O homem acendeu o cigarro e aspirou o fumo, com prazer, fitou o oceano que lhe invadia a janela. O orgulho encheu-o, como as vagas sucessivas, sentiu-o no movimento contrário ao ar que expirou: tudo pela nação, nada contra a nação. Soltou uma gargalhada, lembrou-se da forma como o pobretanas lhe entregou os panfletos, dois socos bastaram, norma da legião para os interrogatórios, comunistas, pensou, sem classe ou honra.

- Somos todos iguais, camarada, temos os mesmos direitos.
- E os ricos?
- São ricos por que trabalhamos para eles.

A professora segurou a palmatória e tomou-lhe o peso, recordou-se da sua infância, não conseguiu evitar estremecer, rapidamente... voltou a inteirar-se da sua função: a fotografia e o cruxifixo. Avançou para a primeira fila da classe e, sem emoção exterior, ordenou à criança que estendesse a mão: aplicou o castigo sem que as lágrimas e os gritos a comovessem. Silêncio absoluto. Depois.

- Senhora professora, o meu pai é pescador e...
- Alguém lhe deu permissão para falar? No dia do exame deverão trazer sapatos.
- Nosso Senhor Jesus Cristo também andava descalço.

O vento trespassou-lhe o corpo, frio como o azul estendido à sua frente, no sopé da montanha, percebeu-se quase livre. Adjacente. Transformado em ilha. Sem causas ou lutas, sem interlocutores, com a solidão preenchida em livros lidos e relidos, consecutivamente, só.

- O trabalho é simples, limpar a casa, lavar a roupa e preparar as refeições.
- Sim, senhor.
- E contar-me tudo o que vê. Tudo.

A criança quis fugir, sentiu o perigo imediato, o corpo não lhe respondeu; encontraram o cadáver no dia seguinte, foi sepultada na vala comum, não se lhe conhecia família. O cais foi a sua casa, ali mendigou pão e a caridade de alguns – quase sempre forasteiros, os outros viram-na como parte do cenário: um ponto de fuga.


M. Lisboa: 2016

São Roque do Pico, Ilha do Pico - Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor)

quinta-feira, 24 de março de 2016

Tempos

Pretérito imperfeito

O homem procurava encontrar coragem onde sabia que ela não existia, não tinha nada a perder, por isso, entrou na sacristia – a hesitação fora quase imperceptível para quem o observava. Na freguesia nada acontecia sem que, mais cedo ou mais tarde, se soubesse: tudo era domínio público, o privado inexistia, o maldizer disfarçava-se de moral e punha a máscara da tradição.

- É igual à mãe, dali não se pode esperar nada.
- Mas... é uma criança.
- Foi criada no vício do rendimento social: falta-lhe humildade.

Faltava, sobretudo, inteligência – era este o pensamento que a sossegava, já havia ultrapassado a ingenuidade de quem sonha tornar o mundo mais justo - não existem pessoas más, todo o ser humano tem algo de bom, há sempre espaço para a mudança. Tivera apetência pelo sofrimento, um complexo de mártir: isso acabara.

- Para nos levantarmos... precisamos de cair.
- E se escorregarmos?
- O melhor, minha filha, é sabermos onde pomos os pés.

Olhou para as mãos, estavam limpas – aparentemente, o vermelho não desaparecia. A memória do acontecido, há tanto tempo, tornara-se naquela ilusão persistente, uma mancha perene e invisível aos outros. Morna, a cor quase primária insistia em aparecer-lhe, quase sempre, mal ultrapassava o portão do cemitério.

- O sangue lava a honra.
- E a verdade?
- Quando calha.

Nome de santa, a vila tinha nome de santa, o pensamento trespassou-a, inútil. Deixou-se ficar junto ao cais, ignorava os olhares dos homens no café defronte, ciente do seu cheiro a vinho e suor, fitava a outra ilha para fingir poder ser livre. Imaginava-se um peixe ou um pássaro, um animal qualquer, uma coisa com capacidade para sobreviver sem ter de vender o corpo.

- Quero confessar-me.
- É a primeira vez que entras aqui.
- Também pode ser a última.

A criança habituara-se ao desprezo, não estranhava que a pusessem de lado, no pouco que conseguia entender do mundo... intuía. Sabia como mendigar afecto, o corpo ainda não lhe permitia fazer como a mãe, por isso, instigava a pena fitando os adultos nos olhos – lágrimas fingidas à beira do abismo, sempre o mesmo: pedinchava.


M. Lisboa: 2016

São Roque do Pico, Ilha do Pico - Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor)

terça-feira, 15 de março de 2016

Azul

a invisibilidade sustenta
auto-existente tormenta
azul imaginário
miragem ou mapa?
coragem que escapa
azul ao contrário
luz a decifrar
cruz sem lugar
azul desconhecido
nesta guerra silente
desta terra... ente?
azul intuído


M. Lisboa: 2016
Céu - Lisboa (fotografia: dulcecor)