Pretérito
perfeito
A
mulher deixou-se ficar na soleira da porta, braços caídos, a fitar
o chão. Teve medo de encarar o homem, sentado à mesa, por não
saber esconder o medo: como seria ele? O regedor, quando a chamara,
fora peremptório, explicara-lhe a situação com palavras
complicadas. Trataria da casa de um aristocrata, homem da nobreza,
que não respeitou as suas origens, um traidor, talvez louco.
Exilado. Anarquista.
- São
pessoas que não respeitam a ordem.
- As
ordens de quem?
O
homem acendeu o cigarro e aspirou o fumo, com prazer, fitou o oceano
que lhe invadia a janela. O orgulho encheu-o, como as vagas
sucessivas, sentiu-o no movimento contrário ao ar que expirou: tudo
pela nação, nada contra a nação. Soltou uma gargalhada,
lembrou-se da forma como o pobretanas lhe entregou os panfletos, dois
socos bastaram, norma da legião para os interrogatórios,
comunistas, pensou, sem classe ou honra.
- E
os ricos?
- São
ricos por que trabalhamos para eles.
A
professora segurou a palmatória e tomou-lhe o peso, recordou-se da
sua infância, não conseguiu evitar estremecer, rapidamente...
voltou a inteirar-se da sua função: a fotografia e o cruxifixo.
Avançou para a primeira fila da classe e, sem emoção exterior,
ordenou à criança que estendesse a mão: aplicou o castigo sem que
as lágrimas e os gritos a comovessem. Silêncio absoluto. Depois.
- Alguém
lhe deu permissão para falar? No dia do exame deverão trazer
sapatos.
- Nosso
Senhor Jesus Cristo também andava descalço.
O
vento trespassou-lhe o corpo, frio como o azul estendido à sua
frente, no sopé da montanha, percebeu-se quase livre. Adjacente.
Transformado em ilha. Sem causas ou lutas, sem interlocutores, com a
solidão preenchida em livros lidos e relidos, consecutivamente, só.
- O
trabalho é simples, limpar a casa, lavar a roupa e preparar as
refeições.
- Sim,
senhor.
- E
contar-me tudo o que vê. Tudo.
A
criança quis fugir, sentiu o perigo imediato, o corpo não lhe
respondeu; encontraram o cadáver no dia seguinte, foi sepultada na
vala comum, não se lhe conhecia família. O cais foi a sua casa, ali
mendigou pão e a caridade de alguns – quase sempre forasteiros, os
outros viram-na como parte do cenário: um ponto de fuga.
M.
Lisboa: 2016
São Roque do Pico, Ilha do Pico - Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor) |