Ocorrência 2
O
jovem deixou-se ficar calado, palavras para quê?, a formadora
debitava toda a sua cartilha institucional: direitos humanos,
cidadania, legislação, normas de conduta; olhou em redor e percebeu
que os restantes colegas também não prestavam particular atenção
ao discurso. Fixou os olhos na mulher, a única dentro da sala, para
fingir interesse nas palavras ensaiadas – obviamente, ela nada
saberia sobre a vida de um polícia. Conseguia imaginar o pensamento
dos seus colegas, partilhavam códigos e obrigações por costume,
sem burocracias. Continuaria a fingir prestar atenção às palavras
ocas, faria os testes no final da semana, e terminaria a formação
com uma classificação acima da média. Depois esqueceria tudo.
- Acha que um criminoso pensa nos direitos humanos?
- Esses gajos vivem como animais nos países deles, sabem lá o que são direitos humanos!
- Se estão no nosso país têm de saber a nossa língua, cumprir as nossas regras.
- E os nossos direitos humanos? Não contam?
- Essas leis são feitas por políticos que nunca andaram nestas ruas.
O
professor terminou a sua prelecção, pousou os cartões na
secretária, e olhou os estudantes, um silêncio avassalador
preencheu a sala, esperou quase dois minutos até suspirar com ruído.
Nada. Voltou-se e, de costas para os discentes, registou a palavra
maldita no quadro, ao escrever a última sílaba percebeu,
esperançoso, algum movimento na plateia. Nada feito. O silêncio
persistiu. Amorfos, pensou, incapazes, zombies do admirável mundo
novo; encarou-os sem piedade, já não conseguia sequer ser
nostálgico, encolheu os ombros e continuou a debitar conteúdos –
por momentos, fugazes e plenos de culpa, pensou que talvez tivessem
nascido para ser escravos.
- Por que perguntas?
- Não deve ser fácil, para alguém como tu...
- Alguém como eu? Não estou a perceber...
- Ouvir aquelas coisas sobre os escravos e sobre o racismo...
- Continuo sem compreender...
- Mas... tu és negro.
- E vivemos no século XXI. Eu não sou escravo.
O
poeta tentou evitar o riso mas não foi capaz, os restantes ocupantes
da sala ignoravam-no, continuou a rir sem se importar com o incómodo
causado, as lágrimas saltavam-lhe dos olhos, em catadupa. A dona da
casa deixou de falar para fitar o poeta, a sua expressão alterou-se,
uma vermelhidão intensa cobriu-lhe o rosto e convidou o poeta ao
silêncio. Ríspida. Ele deixou a sala para levar consigo as
gargalhadas sonoras, os convivas regressaram à norma da dependência.
Quando parou de rir, no parque de estacionamento, mãos apoiadas no
tejadilho do automóvel, arquejante, o poeta não conseguiu evitar as
lágrimas. Remorsos. Outra vez.
- Enquanto esteve na clínica de recuperação?
- Ele já não escrevia há mais de dez anos e com as edições anteriores esgotadas...
- É bom?
- Vai ser um sucesso.
- Continua a escrever poesia?
- Ele diz que é a cura para todos os males, mas mantém os vícios.
M.
Lisboa: 2016
Ilha de Santa Maria - Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor) |