Pretérito
imperfeito
O
homem procurava encontrar coragem onde sabia que ela não existia,
não tinha nada a perder, por isso, entrou na sacristia – a
hesitação fora quase imperceptível para quem o observava. Na
freguesia nada acontecia sem que, mais cedo ou mais tarde, se
soubesse: tudo era domínio público, o privado inexistia, o maldizer
disfarçava-se de moral e punha a máscara da tradição.
- Mas...
é uma criança.
- Foi
criada no vício do rendimento social: falta-lhe humildade.
Faltava,
sobretudo, inteligência – era este o pensamento que a sossegava,
já havia ultrapassado a ingenuidade de quem sonha tornar o mundo
mais justo - não existem pessoas más, todo o ser humano tem algo de
bom, há sempre espaço para a mudança. Tivera apetência pelo
sofrimento, um complexo de mártir: isso acabara.
- E
se escorregarmos?
- O
melhor, minha filha, é sabermos onde pomos os pés.
Olhou
para as mãos, estavam limpas – aparentemente, o vermelho não
desaparecia. A memória do acontecido, há tanto tempo, tornara-se
naquela ilusão persistente, uma mancha perene e invisível aos
outros. Morna, a cor quase primária insistia em aparecer-lhe, quase
sempre, mal ultrapassava o portão do cemitério.
- E
a verdade?
- Quando calha.
Nome
de santa, a vila tinha nome de santa, o pensamento trespassou-a,
inútil. Deixou-se ficar junto ao cais, ignorava os olhares dos
homens no café defronte, ciente do seu cheiro a vinho e suor, fitava
a outra ilha para fingir poder ser livre. Imaginava-se um peixe ou um
pássaro, um animal qualquer, uma coisa com capacidade para
sobreviver sem ter de vender o corpo.
- É
a primeira vez que entras aqui.
- Também
pode ser a última.
A
criança habituara-se ao desprezo, não estranhava que a pusessem de
lado, no pouco que conseguia entender do mundo... intuía. Sabia como
mendigar afecto, o corpo ainda não lhe permitia fazer como a mãe,
por isso, instigava a pena fitando os adultos nos olhos – lágrimas
fingidas à beira do abismo, sempre o mesmo: pedinchava.
M.
Lisboa: 2016
São Roque do Pico, Ilha do Pico - Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor) |
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