quinta-feira, 24 de março de 2016

Tempos

Pretérito imperfeito

O homem procurava encontrar coragem onde sabia que ela não existia, não tinha nada a perder, por isso, entrou na sacristia – a hesitação fora quase imperceptível para quem o observava. Na freguesia nada acontecia sem que, mais cedo ou mais tarde, se soubesse: tudo era domínio público, o privado inexistia, o maldizer disfarçava-se de moral e punha a máscara da tradição.

- É igual à mãe, dali não se pode esperar nada.
- Mas... é uma criança.
- Foi criada no vício do rendimento social: falta-lhe humildade.

Faltava, sobretudo, inteligência – era este o pensamento que a sossegava, já havia ultrapassado a ingenuidade de quem sonha tornar o mundo mais justo - não existem pessoas más, todo o ser humano tem algo de bom, há sempre espaço para a mudança. Tivera apetência pelo sofrimento, um complexo de mártir: isso acabara.

- Para nos levantarmos... precisamos de cair.
- E se escorregarmos?
- O melhor, minha filha, é sabermos onde pomos os pés.

Olhou para as mãos, estavam limpas – aparentemente, o vermelho não desaparecia. A memória do acontecido, há tanto tempo, tornara-se naquela ilusão persistente, uma mancha perene e invisível aos outros. Morna, a cor quase primária insistia em aparecer-lhe, quase sempre, mal ultrapassava o portão do cemitério.

- O sangue lava a honra.
- E a verdade?
- Quando calha.

Nome de santa, a vila tinha nome de santa, o pensamento trespassou-a, inútil. Deixou-se ficar junto ao cais, ignorava os olhares dos homens no café defronte, ciente do seu cheiro a vinho e suor, fitava a outra ilha para fingir poder ser livre. Imaginava-se um peixe ou um pássaro, um animal qualquer, uma coisa com capacidade para sobreviver sem ter de vender o corpo.

- Quero confessar-me.
- É a primeira vez que entras aqui.
- Também pode ser a última.

A criança habituara-se ao desprezo, não estranhava que a pusessem de lado, no pouco que conseguia entender do mundo... intuía. Sabia como mendigar afecto, o corpo ainda não lhe permitia fazer como a mãe, por isso, instigava a pena fitando os adultos nos olhos – lágrimas fingidas à beira do abismo, sempre o mesmo: pedinchava.


M. Lisboa: 2016

São Roque do Pico, Ilha do Pico - Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor)

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