Ocorrência 5
O
escritor terminou o romance numa sexta-feira à tarde, escrevera
durante horas e vira o sol nascer através das vidraças embutidas,
nas janelas altas, agora tinha sono e precisava de dormir. O gato
continuava deitado aos seus pés, apenas o calor do corpo do bicho
denunciara a sua presença durante a noite; depois o astro rei
aparecera e a luz tinha invadido a divisão, revelara tudo. A
sensação de alívio prazeirento espalhou-se pelo corpo de ambos,
homem e animal, por que se esticaram em simultâneo, surpreendidos
entreolharam-se. Sincronia.
- Obrigado.
- Tem
parágrafos como poemas.
- As
palavras apareceram assim, a escrita foi fugindo para a poesia,
criações.
- África
como cenário, invariavelmente.
- África,
não. O cenário é um país em África, não é o continente
inteiro.
O dia
cinzento tornava o espaço de construção ainda mais parecido com um
jogo de vídeo; várias máquinas, homens de capacetes coloridos e
impermeáveis garridos, tudo em movimento constante na companhia da
chuva miudinha. Os dois homens deram por si, lado a lado, durante o
seu turno para almoço, já se tinham cruzado no local de trabalho
mas nunca haviam trocado palavra. Nunca. Nenhum deles era conhecido
por ser conversador, pelo contrário, tinham fama de pensativos e
silenciosos, eram ambos respeitados dentro dos seus grupos. Comeram
calados, outros conversavam para encher o silêncio, mas no final da
refeição encararam-se e perceberam-se iguais. Não importava a
origem de cada um, partilhavam a mesma situação, desafios
semelhantes.
- Se
não parar, vamos ter de deixar o trabalho para amanhã.
- O
sol não anda à nossa vontade.
- Os
astros também são imprevisíveis.
- Como
a vida.
- Não
há formas de adivinhar o futuro.
- Podemos
imaginar.
- Não
será melhor viver?
A
palhaça terminou o espetáculo recebendo sucessivas salvas de
palmas, as crianças ainda exultavam, gargalhadas haviam quebrado o
quotidiano do campo de refugiados; mais tarde, dois meninos, após
cuidadosa busca na teia formada pelas ruas entre as tendas,
reencontraram-na para lhe fazerem perguntas. Onde se estuda para ser
palhaço? Há mais palhaços assim como tu, mulheres? Com quem
treinamos as nossas piadas? Como podemos rir quando estamos tristes?
O que fazemos quando o público não se ri dos nossos truques?
Podemos ser palhaços a vida inteira? Os palhaços têm família? Os
palhaços podem comer guloseimas o dia inteiro? Os palhaços também
fazem guerra?
- Ganha mas é juízo, menina!
- É
uma profissão.
- Além
disso, onde é que já se viu uma mulher palhaço?
- Eu
serei a primeira! Veem como tenho jeito? Veem?
M.
Lisboa: 2016
Ilha de Santa Maria - Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor) |