sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Ocorrências

Ocorrência 5

O escritor terminou o romance numa sexta-feira à tarde, escrevera durante horas e vira o sol nascer através das vidraças embutidas, nas janelas altas, agora tinha sono e precisava de dormir. O gato continuava deitado aos seus pés, apenas o calor do corpo do bicho denunciara a sua presença durante a noite; depois o astro rei aparecera e a luz tinha invadido a divisão, revelara tudo. A sensação de alívio prazeirento espalhou-se pelo corpo de ambos, homem e animal, por que se esticaram em simultâneo, surpreendidos entreolharam-se. Sincronia.

- É um livro muito bonito.
- Obrigado.
- Tem parágrafos como poemas.
- As palavras apareceram assim, a escrita foi fugindo para a poesia, criações.
- África como cenário, invariavelmente.
- África, não. O cenário é um país em África, não é o continente inteiro.

O dia cinzento tornava o espaço de construção ainda mais parecido com um jogo de vídeo; várias máquinas, homens de capacetes coloridos e impermeáveis garridos, tudo em movimento constante na companhia da chuva miudinha. Os dois homens deram por si, lado a lado, durante o seu turno para almoço, já se tinham cruzado no local de trabalho mas nunca haviam trocado palavra. Nunca. Nenhum deles era conhecido por ser conversador, pelo contrário, tinham fama de pensativos e silenciosos, eram ambos respeitados dentro dos seus grupos. Comeram calados, outros conversavam para encher o silêncio, mas no final da refeição encararam-se e perceberam-se iguais. Não importava a origem de cada um, partilhavam a mesma situação, desafios semelhantes.

- A chuva continua a engrossar.
- Se não parar, vamos ter de deixar o trabalho para amanhã.
- O sol não anda à nossa vontade.
- Os astros também são imprevisíveis.
- Como a vida.
- Não há formas de adivinhar o futuro.
- Podemos imaginar.
- Não será melhor viver?

A palhaça terminou o espetáculo recebendo sucessivas salvas de palmas, as crianças ainda exultavam, gargalhadas haviam quebrado o quotidiano do campo de refugiados; mais tarde, dois meninos, após cuidadosa busca na teia formada pelas ruas entre as tendas, reencontraram-na para lhe fazerem perguntas. Onde se estuda para ser palhaço? Há mais palhaços assim como tu, mulheres? Com quem treinamos as nossas piadas? Como podemos rir quando estamos tristes? O que fazemos quando o público não se ri dos nossos truques? Podemos ser palhaços a vida inteira? Os palhaços têm família? Os palhaços podem comer guloseimas o dia inteiro? Os palhaços também fazem guerra?

- Ganhar a vida a fazer rir os outros?
- Ganha mas é juízo, menina!
- É uma profissão.
- Além disso, onde é que já se viu uma mulher palhaço?
- Eu serei a primeira! Veem como tenho jeito? Veem?

M. Lisboa: 2016

Ilha de Santa Maria - Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor)

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