Da
importância da memória
Ciências Sociais e Humanas: História. Um curso escolhido para gorar as
expectativas paternas, a advocacia imediatamente recusada, seria o
teu irmão a cumprir o desejo patriarcal. Tornaste-te liberal o
suficiente para mergulhares na antropologia académica de um insular
no continente, o teu gémeo preferiu alimentar-se da nostalgia pela
origem e pela família. Sentias-te cada vez mais distante das pessoas
que tinhas deixado na ilha, foste ficando nas férias pequenas e nos
retornos... descobriste-te saturado dos esquemas sociais. Farto.
Cansado.
A
cidade grande conquistou-te por ser múltipla, os colegas (e os
professores) repetidamente a estranharem o teu sotaque, mas decidiste
ficar para seres mais do que um filho da terra “exilado”; ainda
assim, terminado o curso, foram o nome e as ligações paternas que
te abriram as portas necessárias. Lembras-te de quando me
conheceste? Encontraste outra história.
Depositaste
os documentos à sua frente mas deixaste as fotografias espalharem-se
no tampo da secretária; lançaste as palavras cuidadosamente: tinhas
trabalhado num arquivo local a coligir documentação histórica,
tinhas consultado fundos documentais do tempo da ditadura, tinhas
estudado uma revolta em particular e depois... proferiste o seu nome
de carrasco. Ele empalideceu.
Descobriste
que os pés de barro do teu pai herói mergulhavam no pântano das
omissões históricas; quando te percebeste descendente recusaste
assumir responsabilidades: não te dizia respeito, nem sequer eras
nascido quando... mas depois viste as fotografias, leste os
relatórios e as cartas (metodicamente) riscadas, entrevistaste
sobreviventes. Vi como os teus olhos se embaciaram. Morreste para o
teu passado.
Anos
depois... resolveste voltar para enfrentar o carrasco, como deixar-te
partir sem mim?, e agora esperavas uma reacção aos documentos ou às
fotografias: tinhas conquistado o direito a sentir-te justiça.
Nem
uma palavra se soltou dos lábios dele, apenas lhe tremeram os cantos
da boca, quando o telefone tocou. Viraste as costas e fingiste
apreciar a panorâmica, quiseste esconder a irritação provocada
pelo quase silêncio mas, ao ouvi-lo perguntar se tinham morrido
ambos, voltaste a encará-lo.
Viste
os seus ombros cair e a cabeça pender-lhe ao desligar o telefone,
não te moveste nem proferiste palavra: ele chorava. Não foste
consolá-lo. Mais tarde, obriguei-te à compaixão: tu tinhas perdido
um irmão e ele tinha perdido outro filho.
Choveu
até a fila de automóveis do cortejo fúnebre chegar ao cemitério,
depois parou; a tua mãe, cinzenta como sempre, chorou em silêncios
sem vos fitar nos olhos. Seguraste-lhe a mão, estava fria. Tinhas
decidido seguir no carro funerário para a acompanhar... e a dor
dele: existiria? Duvidavas.
Depois
do funeral vieste ter comigo e contaste-me como foi, falaste na luz
que invadiu a capela, comentaste a família presente. Foi quando vi
nos teus olhos e percebi: o carrasco trocaria de corpo.
M.
Lisboa: 2015
Particularidade em jazigo - Cemitério da Ribeira Grande: Ilha de São Miguel (fotografia: dulcecor) |