Da
importância da poesia
Continuava sem compreender o
fenómeno e interrogava-se se precisara de décadas para sentir-se
capturado nos sentidos, ou se aprendera a viver dormente: a idade
impunha um balanço. Para escapar ao quotidiano moribundo da velhice
(título do seu primeiro poema) começara por sentar-se à sombra de
um plátano, defronte da biblioteca municipal, ruminando memórias.
Vira os amigos morrer e a
família mantinha a distância; já se orgulhara da solidão – fora
imposição profissional: agora não. Começara a perceber-se velho.
Velho mesmo. Muito velho. Perdera as amizades cedo, antes dos
cinquenta anos, e o filho maior há pouco mais de um, o outro
raramente aparecia e a esposa... meses antes, as palavras do médico,
um veredicto de morte anunciada. Interrogara-o: operação? A idade.
Terapias? A idade. Tempo? Um ano.
Ao inferno da velhice
somavam-se, agora, a doença dela e a proximidade constante do
sofrimento e da morte; estranho nunca ter previsto sobreviver-lhe,
imaginara-a viúva e chorosa, mas também não lhe sentiria grande
falta: aprendera a repudiar sentimentos nobres e desprezava a
nostalgia, ossos do ofício. Ainda assim, culpa da velhice, tentou
encontrar brilho no passado comum mas... impossível. Não sentia
culpa. Procurou poemas sobre o tema e não teve sucesso: resolveu
escrevê-los.
Foi-se
aquietando na novidade poética, trazia máscaras da biblioteca para
se impedir de explodir perante o pranto continuado, estóico; a
lentidão permitida pela poesia não lhe adormecia a violência
acumulada, era obrigado a prender a irritação provocada pelos
aparelhos, os medicamentos, o cheiro constante a piso hospitalar. O
quarto parecia uma extensão de saúde. Um dia explodiu na presença
da enfermeira: não teve como escapar às posteriores consultas de
psicologia.
Voltou à infância, ao fundo
do fundo sem fundo, para descobrir não a ter vivido.
Jovem,
saíra da freguesia para defender o império e prometera a si
próprio: escaparia para longe dos arados e dos candeeiros a
petróleo, estaria longe do estrume fumegante nas madrugadas de
inverno, seria longe da boina na mão para a passagem automóvel dos
senhores, iria além da ribeira e dos risos dos outros, ficaria longe
do pão seco com fome apertada.
Depois
da guerra a terra na freguesia era pouca, as pessoas pequenas, os
pesadelos enormes... era pouca terra para o sangue derramado e
bombeado em pesadelos: procurava esquecer-se nos copos de aguardente
e nas tabernas... bebia até à ofensa gratuita mas desculpavam-lhe
tudo: era um herói de guerra .
Naquela noite, bebera (o
juízo) antes do baile, quando os primeiros foguetes rasgaram o
céu... estava lá outra vez... no meio do mato, atolado em lama e
merda, no meio do sangue e dos gritos. Imobilizado pelos primeiros
estampidos, era um corpo sem resposta, paralisado... estava lá outra
vez. A segunda série de foguetes. Sentia a raiva aumentar a cada
estampido (isso aprendera na guerra) mas sabia ser muralha,
paralisado defendia-se: acreditava no fim da memória, afogava-a em
silêncio, imóvel. Nunca dizer: não contar a ninguém, não deixar
perceber, continuar a ser pessoa dos outros, ser normal.
A última série de
estampidos e o fogo preso, sinal para rumar à taberna, o corpo a
ensinar-lhe os passos, o cheiro a pólvora de artifício. Encontrou-a
perto do império, espírito santo ausente, levou-a para casa.
Pediu-lhe silêncio, ela insistia nas perguntas, voltou a pedir-lho,
mataste muitos?, sem sucesso, quis tapar-lhe a boca, mataste
quantos?, pediu-lhe silêncio outra vez, como foi?, e outra vez, como
fizeste?, obrigou-a a calar-se: partiu-lhe o pescoço. Largou o corpo
no mato e foi para a taberna.
Dias
depois, duas das outras vieram procurá-la à freguesia, entraram na
taberna para fazer perguntas: receberam silêncios. Fizeram os seus
negócios e partiram.
M.
Lisboa: 2015
Particularidade em jazigo - Cemitério da Ribeira Grande: Ilha de São Miguel (fotografia: dulcecor) |
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