terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Sobre algumas importâncias

Da importância da poesia

Continuava sem compreender o fenómeno e interrogava-se se precisara de décadas para sentir-se capturado nos sentidos, ou se aprendera a viver dormente: a idade impunha um balanço. Para escapar ao quotidiano moribundo da velhice (título do seu primeiro poema) começara por sentar-se à sombra de um plátano, defronte da biblioteca municipal, ruminando memórias.

Vira os amigos morrer e a família mantinha a distância; já se orgulhara da solidão – fora imposição profissional: agora não. Começara a perceber-se velho. Velho mesmo. Muito velho. Perdera as amizades cedo, antes dos cinquenta anos, e o filho maior há pouco mais de um, o outro raramente aparecia e a esposa... meses antes, as palavras do médico, um veredicto de morte anunciada. Interrogara-o: operação? A idade. Terapias? A idade. Tempo? Um ano.

Ao inferno da velhice somavam-se, agora, a doença dela e a proximidade constante do sofrimento e da morte; estranho nunca ter previsto sobreviver-lhe, imaginara-a viúva e chorosa, mas também não lhe sentiria grande falta: aprendera a repudiar sentimentos nobres e desprezava a nostalgia, ossos do ofício. Ainda assim, culpa da velhice, tentou encontrar brilho no passado comum mas... impossível. Não sentia culpa. Procurou poemas sobre o tema e não teve sucesso: resolveu escrevê-los.
 
Foi-se aquietando na novidade poética, trazia máscaras da biblioteca para se impedir de explodir perante o pranto continuado, estóico; a lentidão permitida pela poesia não lhe adormecia a violência acumulada, era obrigado a prender a irritação provocada pelos aparelhos, os medicamentos, o cheiro constante a piso hospitalar. O quarto parecia uma extensão de saúde. Um dia explodiu na presença da enfermeira: não teve como escapar às posteriores consultas de psicologia.

Voltou à infância, ao fundo do fundo sem fundo, para descobrir não a ter vivido. Jovem, saíra da freguesia para defender o império e prometera a si próprio: escaparia para longe dos arados e dos candeeiros a petróleo, estaria longe do estrume fumegante nas madrugadas de inverno, seria longe da boina na mão para a passagem automóvel dos senhores, iria além da ribeira e dos risos dos outros, ficaria longe do pão seco com fome apertada.

Depois da guerra a terra na freguesia era pouca, as pessoas pequenas, os pesadelos enormes... era pouca terra para o sangue derramado e bombeado em pesadelos: procurava esquecer-se nos copos de aguardente e nas tabernas... bebia até à ofensa gratuita mas desculpavam-lhe tudo: era um herói de guerra .

Naquela noite, bebera (o juízo) antes do baile, quando os primeiros foguetes rasgaram o céu... estava lá outra vez... no meio do mato, atolado em lama e merda, no meio do sangue e dos gritos. Imobilizado pelos primeiros estampidos, era um corpo sem resposta, paralisado... estava lá outra vez. A segunda série de foguetes. Sentia a raiva aumentar a cada estampido (isso aprendera na guerra) mas sabia ser muralha, paralisado defendia-se: acreditava no fim da memória, afogava-a em silêncio, imóvel. Nunca dizer: não contar a ninguém, não deixar perceber, continuar a ser pessoa dos outros, ser normal.

A última série de estampidos e o fogo preso, sinal para rumar à taberna, o corpo a ensinar-lhe os passos, o cheiro a pólvora de artifício. Encontrou-a perto do império, espírito santo ausente, levou-a para casa. Pediu-lhe silêncio, ela insistia nas perguntas, voltou a pedir-lho, mataste muitos?, sem sucesso, quis tapar-lhe a boca, mataste quantos?, pediu-lhe silêncio outra vez, como foi?, e outra vez, como fizeste?, obrigou-a a calar-se: partiu-lhe o pescoço. Largou o corpo no mato e foi para a taberna.

Dias depois, duas das outras vieram procurá-la à freguesia, entraram na taberna para fazer perguntas: receberam silêncios. Fizeram os seus negócios e partiram.

M. Lisboa: 2015

Particularidade em jazigo - Cemitério da Ribeira Grande: Ilha de São Miguel (fotografia: dulcecor)

Sem comentários:

Enviar um comentário