terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Sobre algumas importâncias

Da importância da memória

Ciências Sociais e Humanas: História. Um curso escolhido para gorar as expectativas paternas, a advocacia imediatamente recusada, seria o teu irmão a cumprir o desejo patriarcal. Tornaste-te liberal o suficiente para mergulhares na antropologia académica de um insular no continente, o teu gémeo preferiu alimentar-se da nostalgia pela origem e pela família. Sentias-te cada vez mais distante das pessoas que tinhas deixado na ilha, foste ficando nas férias pequenas e nos retornos... descobriste-te saturado dos esquemas sociais. Farto. Cansado.

A cidade grande conquistou-te por ser múltipla, os colegas (e os professores) repetidamente a estranharem o teu sotaque, mas decidiste ficar para seres mais do que um filho da terra “exilado”; ainda assim, terminado o curso, foram o nome e as ligações paternas que te abriram as portas necessárias. Lembras-te de quando me conheceste? Encontraste outra história.

Depositaste os documentos à sua frente mas deixaste as fotografias espalharem-se no tampo da secretária; lançaste as palavras cuidadosamente: tinhas trabalhado num arquivo local a coligir documentação histórica, tinhas consultado fundos documentais do tempo da ditadura, tinhas estudado uma revolta em particular e depois... proferiste o seu nome de carrasco. Ele empalideceu. 
 
Descobriste que os pés de barro do teu pai herói mergulhavam no pântano das omissões históricas; quando te percebeste descendente recusaste assumir responsabilidades: não te dizia respeito, nem sequer eras nascido quando... mas depois viste as fotografias, leste os relatórios e as cartas (metodicamente) riscadas, entrevistaste sobreviventes. Vi como os teus olhos se embaciaram. Morreste para o teu passado. 
 
Anos depois... resolveste voltar para enfrentar o carrasco, como deixar-te partir sem mim?, e agora esperavas uma reacção aos documentos ou às fotografias: tinhas conquistado o direito a sentir-te justiça. 
 
Nem uma palavra se soltou dos lábios dele, apenas lhe tremeram os cantos da boca, quando o telefone tocou. Viraste as costas e fingiste apreciar a panorâmica, quiseste esconder a irritação provocada pelo quase silêncio mas, ao ouvi-lo perguntar se tinham morrido ambos, voltaste a encará-lo. 
 
Viste os seus ombros cair e a cabeça pender-lhe ao desligar o telefone, não te moveste nem proferiste palavra: ele chorava. Não foste consolá-lo. Mais tarde, obriguei-te à compaixão: tu tinhas perdido um irmão e ele tinha perdido outro filho.

Choveu até a fila de automóveis do cortejo fúnebre chegar ao cemitério, depois parou; a tua mãe, cinzenta como sempre, chorou em silêncios sem vos fitar nos olhos. Seguraste-lhe a mão, estava fria. Tinhas decidido seguir no carro funerário para a acompanhar... e a dor dele: existiria? Duvidavas. 
 
Depois do funeral vieste ter comigo e contaste-me como foi, falaste na luz que invadiu a capela, comentaste a família presente. Foi quando vi nos teus olhos e percebi: o carrasco trocaria de corpo.

M. Lisboa: 2015

Particularidade em jazigo - Cemitério da Ribeira Grande: Ilha de São Miguel (fotografia: dulcecor)

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