- A
última frase é, na realidade, passível de ser interpretada de
duas formas, a saber: a primeira, pode significar que os herdeiros
devem cumprir com a vontade da falecida, entregar a casa à junta de
freguesia e os terrenos a quem os habita, deixando a utilização do
imóvel ser a que aprouver ao órgão; e a segunda, os herdeiros
devem cumprir com a vontade da falecida, mas estabelecer
determinados princípios e valores, por forma a preservar a sua
memória. É claro?
O
silêncio imediato, alguns farejando uma possível mudança de rumo
na situação, tornou as palavras do advogado pesadas, definitivas.
Silvestre apertava a boina sob os joelhos, ombros curvados pelo
hábito de servir, sem perceber que diabo estavam, ele e a sua
senhora, a fazer ali; ela pensava o mesmo mas divertia-se, por saber
tudo sobre todos, sem o demonstrar.
-
A sua presença aqui, tal como a da sua esposa, pretende esclarecer
as intenções da falecida, entende?
-
Entender eu entendo, senhor doutor, mas continuo sem perceber. Quem
sou eu para saber das intenções da senhora? A minha mulher, então,
nem se fala...
-
Senhor Silvestre, talvez não tenha utilizado a expressão mais
adequada, quis dizer, para justificar a sua presença, e a da sua
senhora, que a conheciam bem. Não é verdade?
-
Sim, senhor, já servimos a senhora há quarenta anos. Que Deus a
tenha em descanso.
-
Quarenta anos?
-
Sim, senhor, vivemos naquela casa há muitos anos. Como disse o meu
marido.
-
Como era a vossa relação com a senhora? Digo, o trato?
-
Era bom, a senhora nunca nos faltou com nada. Pagou os estudos aos
rapazes.
-
Aos vossos filhos, é isso?
-
Sim, senhor, é isso.
-
Era costume a senhora fazer esse tipo de coisas?
-
Desculpe, senhor doutor, não percebo a pergunta: ela era boa pessoa.
O
homem tinha a camisa suja, faltavam-lhe dois botões, olhos como o
céu sob o Tejo, foi deixar-te a filha à porta de casa. Era noite, a
rapariga, envergonhada, fitava o chão. O pai mandara-a sair da
carrinha, cumprimentara-te – a senhora fica mesmo com ela?, agora
estava ali sozinha; falaste-lhe, sem demasiado afecto ou compaixão,
nenhuma pergunta sobre a barriga proeminente.
- O
doutor desculpe a interrupção, mas o pobre do homem não sabe o
que dizer. Eu conheço o Silvestre há muitos anos, todos os
domingos nos encontramos na igreja, não é verdade? É escusado.
Todos sabemos que a falecida era uma boa alma.
- Além
disso, todos sabemos também que a senhora era uma benemérita,
amava a sua freguesia, ainda em vida criou uma biblioteca, as bolsas
de estudo. Era uma boa alma, como disse o senhor padre. Temos uma
fotografia dela na sede da junta.
Nunca
compareceste às reuniões da misericórdia, mantiveste as
contribuições enquanto tradição de família, recebias todos os
convites e prestígio inerente. A morte do inspector não veio nos
jornais, não passou na rádio nem na televisão. Deixaste de
conversar sobre política e religião, passaram a ser temas proibidos
na casa grande; no exterior, a condição social empoderava-te,
estendia-se a proibição. Não ias à missa. Pagavas a um médico
para residir na freguesia, consolidava a desculpa da debilidade: uma
senhora, saúde frágil.
-
A nossa tia não era uma pessoa religiosa, era uma pessoa espiritual,
right? Ok, devemos cumprir a sua vontade.
-
Com o devido respeito, a falecida era uma lutadora, foi uma
combatente do fascismo em Portugal, acreditava na criação de uma
sociedade sem classes e na libertação dos oprimidos.
-
Com o devido respeito, jovem, depois de ter vindo de Coimbra, pouco
depois do golpe militar, a falecida levou sempre uma vida pacata e
recatada. Contribuiu sempre para as festas da freguesia, apoiou a
preservação da procissão à ermida, cedeu terrenos para a
construção de bairros. Desse passado, a que o jovem se refere,
ninguém a ouvia falar...
-
Aposto que não ia à missa.
-
Deus está sempre connosco.
Agora
sonhavas vermelho denso, um sonho repetido, o teu corpo começava a
falhar, gasto pelo tempo; mas a memória escapava ao destino da
embalagem, rejuvenescia. Existem pessoas sem humanidade. Era um
monstro. O mesmo sangue. Os olhos fechados: um cobarde. Cheiro a
ferro. Os olhos cerrados: um segredo pesado e constante (sem
partilha).
-
Peço desculpa, senhor doutor, posso falar?
-
Diga, Maria, por favor.
-
Não estou a desdizer o senhor padre, mas a senhora, às vezes, pedia
para eu me sentar junto a ela, na biblioteca, para me falar do
passado. Mas estávamos só as duas. Mais ninguém.
O
silêncio voltou à sala, alguns moveram os músculos, incomodados,
mexendo-se nas cadeiras, outros serviram-se de água, o resto nada.
Maria, trinta e cinco anos, vinte ao serviço da senhora, a mesma
idade do filho, sentado ao seu lado – a patroa também lhe pagara
os estudos, sentiu os olhares concentrados nela. Empertigou-se, acto
pouco habitual, na sua pessoa e falou.
-
Nos últimos tempos, quando começou a ficar doente e lhe custava
andar, as nossas conversas foram sendo mais longas. Iam noite dentro.
-
Qual era o tema, os assuntos, nessas conversas?
-
Eram muitos... a senhora falava da sua infância na casa, dos
bisavós, dos avós... às vezes, mostrava-me fotografias ou pedia
para eu ler. Cartas. Livros de poesia.
-
Maria, a senhora falou-lhe, alguma vez, sobre o testamento?
-
Sim, senhor doutor. Várias vezes. Nos últimos tempos, por causa da
doença, falava nisso todos os dias.
-
Sim?
-
A senhora dizia que tinha vivido uma vida feliz, completa.
-
E sobre o testamento?
-
Que os familiares deviam decidir o que fazer aos bens, dizia que nada
lhe pertencia, só a alma.
-
Like I said, a tia era espiritual...
A
reunião, tal como previsto no jantar da semana anterior, em casa do
padre, na companhia do presidente da junta – solitário, tinha
alocado a secretária noutra tarefa -, prolongara-se durante horas;
será um jogo de “mostra e esconde”, cabe-nos a manipulação
subtil dos argumentos, afirmara o advogado. Também telefonara a
Maria para lhe garantir que seria patrono do seu filho.
- Somando,
ao testemunho da Dona Maria, os testemunhos do senhor e da sua
esposa, encontramos uma linha segura para a interpretação da
vontade da falecida. Cabe aos herdeiros, passando o imóvel e os
terrenos para a junta de freguesia, estabelecer os valores e os
princípios que regerão a sua utilização. Importa acrescentar um
novo detalhe, também pertinente para esta reunião, sob a forma de
questão. Como todos os herdeiros estão presentes, poder-se-á
elaborar uma declaração dos ditos valores e princípios?
M.
Lisboa: 2014
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Particularidade em jazigo no Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor) |