quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Haikai Ano Novo

inverno frio
os passos foram gastos
pedra flor forma

M. Lisboa: 2014

Particularidade em calçada - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Odisseia

peregrinação aprendida poema aventura representação repetida
o tema procura a eterna migração
a moderna desumanização ressuscitou rotas reactivou portas
o mote da esperança futura a trote mas a herança perdura
morte calculada no mar sorte danada azar julgam políticos e
presidentes acusam atípicos mas sorridentes: a sua interpretação
é igual à da televisão banal concentrada na emigração desconsolo
focada na emancipação do golo ou na vitória da selecção
negam a história da imigração

M.Lisboa: 2014

Particularidade em escultura - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Mito estrelado (sem unicórnio ou cavalo)

Quando o mundo ainda não sabia que o era e as estrelas conspiravam entre si, formando constelações, quando a energia invisível que tudo rege e tudo inspira não tinha consciência da sua existência, houve qualquer coisa, uma coisa qualquer. Quase nada transformado em tudo. Um mistério: apareceu o mundo.
 
Ora o mundo, nesse tempo primeiro, estava sem saber que o era e foi-se formando ao acaso, outra força misteriosa, parente das conspirações estrelares. O firmamento, cintilante e extraordinário em criações, viu aparecer uma inusitada estrela amarela, incandescente e diferente: as outras perguntavam-se... criada por quem? Qualquer coisa. Outro mistério: chamaram-lhe Sol.

Como ainda não havia tempo, estavam por imaginar os estranhos seres para lhe dar origem, o Sol não envelheceu quando as estrelas lhe pediram para procurar espaço no mundo; concentrado na viagem e imaginando galáxias, nem deu pelo aparecimento dos planetas: ao sonhar-se criara-os. Ainda um mistério: o sistema solar.

O Sol escolheu um dos planetas para mirar-se em sonho: a esfera azul (a cor mais bonita do mundo) e irrequieta; ao compreender a energia invisível daquele planeta, a estrela amarela não se assustou, percebeu-a múltipla e imanente, era um espelho fluído quebrado em convexo de lava sólida, uma vida mistério: chamou-lhe Terra.

M. Lisboa: 2014

Sob o Rio Tejo - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

domingo, 28 de dezembro de 2014

Borda de água

segundo ciências biologias o mundo: evidências analogias
evoluímos dos animais e progredimos mais pensamos
para existir escapamos para resistir à intuição original
constatação animal a Terra interdependente ter guerra
permanente ser cobardia financeira hipocrisia primeira
a epidemia eurocentrismo racional quem diria? agora
“euromorfismo” global em toda a parte padrões sem arte
patrões investidores senhoras doutores e doutoras
justificada economia apresentada elegia: compra e
consome para ser feliz montra e telefone (vê lá se diz
ou fala contigo para ver se és feliz) amigo consumidor
por favor respiras o mesmo ar mas expiras sem inspirar
ou aspirar liberdade preferes alienar na cidade queres
a qualquer preço vencer um endereço poder trabalho
endividamento um espantalho tormento: compras e
consomes montras e telefones preparados pelo poder
publicitados prazer entretenimento verdade momento
identidade sem pouso: vem o ano novo

M. Lisboa: 2014

Particularidade em horta urbana - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

sábado, 27 de dezembro de 2014

Natureza torta

postais inventados e mais fotografados olhar
pessoal mirar afinal entroncamentos instantes
momentos semelhantes na moderna representação
eterna apresentação em tropeções cem gerações
multiplicadas história catalogadas glória e apreço
total sem preço (afinal vozes caladas atrozes cruzadas
sangue navegador estanque o descobridor conquista
terra à vista berra submete “submente” repete insistente
o pecado original o bocado essencial à total
submissão à leal perpetuação) mudaram-se os tempos
soltaram-se os ventos: centenárias comemorações
ordinárias representações e a fachada cidade Lisboa
acabada verdade apregoa crescimento urbano
incremento ufano: celas habitação nelas habituação
à industrial expropriação à “natural” alienação
de quem não tem asas e esquece quem
não tem casas e acontece também todos os dias
com ou sem Messias

M.Lisboa: 2014
Particularidade em fachada - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)


sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Aka

quantas pontes quantos muros plantas
fontes mundos escuros tantas ocultas margens
escutas viagens Lisboa presente entoa pressente
grades artísticas partes místicas intuídas
impressões percebidas ilusões invisíveis
existem possíveis (desistem) acontecem
na cidade (emudecem) a realidade e a ficção
não se conhecem: pois não?

M. Lisboa: 2014

Particularidade - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Geração de 70 - epílogo

Outra presença

nascimento estrelado momento anunciado
dos contos inventados em pontos reforçados
sob a quadra institucional aguarda o capital
religioso acumulado oneroso articulado
inventor de tradições promotor de transacções
identitárias confusões várias injustiças
parcas premissas fracas se a verdade
verdadeira metade da primeira é:
somos pó de estrelas se acreditarmos nelas

M. Lisboa: 2014

Particularidade em jazigo no Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Geração de 70 - A morte (ainda)


- A última frase é, na realidade, passível de ser interpretada de duas formas, a saber: a primeira, pode significar que os herdeiros devem cumprir com a vontade da falecida, entregar a casa à junta de freguesia e os terrenos a quem os habita, deixando a utilização do imóvel ser a que aprouver ao órgão; e a segunda, os herdeiros devem cumprir com a vontade da falecida, mas estabelecer determinados princípios e valores, por forma a preservar a sua memória. É claro?

O silêncio imediato, alguns farejando uma possível mudança de rumo na situação, tornou as palavras do advogado pesadas, definitivas. Silvestre apertava a boina sob os joelhos, ombros curvados pelo hábito de servir, sem perceber que diabo estavam, ele e a sua senhora, a fazer ali; ela pensava o mesmo mas divertia-se, por saber tudo sobre todos, sem o demonstrar.

- A sua presença aqui, tal como a da sua esposa, pretende esclarecer as intenções da falecida, entende?
- Entender eu entendo, senhor doutor, mas continuo sem perceber. Quem sou eu para saber das intenções da senhora? A minha mulher, então, nem se fala...
- Senhor Silvestre, talvez não tenha utilizado a expressão mais adequada, quis dizer, para justificar a sua presença, e a da sua senhora, que a conheciam bem. Não é verdade?
- Sim, senhor, já servimos a senhora há quarenta anos. Que Deus a tenha em descanso.
- Quarenta anos?
- Sim, senhor, vivemos naquela casa há muitos anos. Como disse o meu marido.
- Como era a vossa relação com a senhora? Digo, o trato?
- Era bom, a senhora nunca nos faltou com nada. Pagou os estudos aos rapazes.
- Aos vossos filhos, é isso?
- Sim, senhor, é isso.
- Era costume a senhora fazer esse tipo de coisas?
- Desculpe, senhor doutor, não percebo a pergunta: ela era boa pessoa.

O homem tinha a camisa suja, faltavam-lhe dois botões, olhos como o céu sob o Tejo, foi deixar-te a filha à porta de casa. Era noite, a rapariga, envergonhada, fitava o chão. O pai mandara-a sair da carrinha, cumprimentara-te – a senhora fica mesmo com ela?, agora estava ali sozinha; falaste-lhe, sem demasiado afecto ou compaixão, nenhuma pergunta sobre a barriga proeminente.

- O doutor desculpe a interrupção, mas o pobre do homem não sabe o que dizer. Eu conheço o Silvestre há muitos anos, todos os domingos nos encontramos na igreja, não é verdade? É escusado. Todos sabemos que a falecida era uma boa alma.
- Além disso, todos sabemos também que a senhora era uma benemérita, amava a sua freguesia, ainda em vida criou uma biblioteca, as bolsas de estudo. Era uma boa alma, como disse o senhor padre. Temos uma fotografia dela na sede da junta.

Nunca compareceste às reuniões da misericórdia, mantiveste as contribuições enquanto tradição de família, recebias todos os convites e prestígio inerente. A morte do inspector não veio nos jornais, não passou na rádio nem na televisão. Deixaste de conversar sobre política e religião, passaram a ser temas proibidos na casa grande; no exterior, a condição social empoderava-te, estendia-se a proibição. Não ias à missa. Pagavas a um médico para residir na freguesia, consolidava a desculpa da debilidade: uma senhora, saúde frágil.

- A nossa tia não era uma pessoa religiosa, era uma pessoa espiritual, right? Ok, devemos cumprir a sua vontade.
- Com o devido respeito, a falecida era uma lutadora, foi uma combatente do fascismo em Portugal, acreditava na criação de uma sociedade sem classes e na libertação dos oprimidos.
- Com o devido respeito, jovem, depois de ter vindo de Coimbra, pouco depois do golpe militar, a falecida levou sempre uma vida pacata e recatada. Contribuiu sempre para as festas da freguesia, apoiou a preservação da procissão à ermida, cedeu terrenos para a construção de bairros. Desse passado, a que o jovem se refere, ninguém a ouvia falar...
- Aposto que não ia à missa.
- Deus está sempre connosco.

Agora sonhavas vermelho denso, um sonho repetido, o teu corpo começava a falhar, gasto pelo tempo; mas a memória escapava ao destino da embalagem, rejuvenescia. Existem pessoas sem humanidade. Era um monstro. O mesmo sangue. Os olhos fechados: um cobarde. Cheiro a ferro. Os olhos cerrados: um segredo pesado e constante (sem partilha).

- Peço desculpa, senhor doutor, posso falar?
- Diga, Maria, por favor.
- Não estou a desdizer o senhor padre, mas a senhora, às vezes, pedia para eu me sentar junto a ela, na biblioteca, para me falar do passado. Mas estávamos só as duas. Mais ninguém.

O silêncio voltou à sala, alguns moveram os músculos, incomodados, mexendo-se nas cadeiras, outros serviram-se de água, o resto nada. Maria, trinta e cinco anos, vinte ao serviço da senhora, a mesma idade do filho, sentado ao seu lado – a patroa também lhe pagara os estudos, sentiu os olhares concentrados nela. Empertigou-se, acto pouco habitual, na sua pessoa e falou.

- Nos últimos tempos, quando começou a ficar doente e lhe custava andar, as nossas conversas foram sendo mais longas. Iam noite dentro.
- Qual era o tema, os assuntos, nessas conversas?
- Eram muitos... a senhora falava da sua infância na casa, dos bisavós, dos avós... às vezes, mostrava-me fotografias ou pedia para eu ler. Cartas. Livros de poesia.
- Maria, a senhora falou-lhe, alguma vez, sobre o testamento?
- Sim, senhor doutor. Várias vezes. Nos últimos tempos, por causa da doença, falava nisso todos os dias.
- Sim?
- A senhora dizia que tinha vivido uma vida feliz, completa.
- E sobre o testamento?
- Que os familiares deviam decidir o que fazer aos bens, dizia que nada lhe pertencia, só a alma.
- Like I said, a tia era espiritual...

A reunião, tal como previsto no jantar da semana anterior, em casa do padre, na companhia do presidente da junta – solitário, tinha alocado a secretária noutra tarefa -, prolongara-se durante horas; será um jogo de “mostra e esconde”, cabe-nos a manipulação subtil dos argumentos, afirmara o advogado. Também telefonara a Maria para lhe garantir que seria patrono do seu filho. 

- Somando, ao testemunho da Dona Maria, os testemunhos do senhor e da sua esposa, encontramos uma linha segura para a interpretação da vontade da falecida. Cabe aos herdeiros, passando o imóvel e os terrenos para a junta de freguesia, estabelecer os valores e os princípios que regerão a sua utilização. Importa acrescentar um novo detalhe, também pertinente para esta reunião, sob a forma de questão. Como todos os herdeiros estão presentes, poder-se-á elaborar uma declaração dos ditos valores e princípios?

M. Lisboa: 2014

Particularidade em jazigo no Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Geração de 70 - A morte

A biblioteca era espaçosa o suficiente para que todos estivessem sentados e confortáveis; a mesa comprida tinha, no topo, o responsável pela reunião; do lado esquerdo, acompanhadas pelo provedor da misericórdia, também padre da freguesia, estavam as duas sobrinhas da falecida, vindas há uma semana do estrangeiro e entretanto ocupadas em descobrir as raízes; ao seu lado, mais a fascinante secretária, o presidente da junta, homem baixo - calvo e apagado, encantos ocultos -, intuindo ganhos políticos, calculando importâncias, cogitando estratégias.

O lado direito da mesa estava ocupado, primeiro, por um funcionário do partido a que a falecida pertencera, jovem de barba cerrada e óculos graduados; depois, a empregada doméstica de há trinta anos, agarrada à mão do filho, advogado recém-formado; por fim, o casal de empregados, mais que entrados na idade, à beira da reforma e intimidados pela mesa: não era hábito partilharem-na com senhores e senhoras.

O homem do topo, distinto na forma e nos gestos, esperou o relógio bater o meio-dia: através das janelas abertas para a praça, chegaram as badaladas da igreja à biblioteca; pigarreou, um momento de silêncio, prolongou o suspenso sorrindo. Rasgou o lacre do sobrescrito, retirou folhas dobradas do seu interior: o testamento. Leu pausadamente.

A casa grande e a tua cidade. Tentaste explicar sem sucesso, às tuas colegas do magistério, a importância daqueles espaços na tua rotina diária: sentias-lhes falta. O rio não chegava. Querias o estuário. Mas ainda não, ainda não: faltava pouco. Sobre as manhãs claras, segredo. Absoluto. Aprenderas a sua importância, numas férias de Verão, quando a primeira bofetada paterna te atingira, responderas indignada às perguntas sobre determinadas amizades em Coimbra, também compreenderas o alcance e a justiça da luta. Não te deixaste intimidar, acautelaste pistas e provas, mas quebram-se laços: denunciada, interrogada, solta por falta de provas, vigiada. Depois veio Abril.

- Uma benemérita, santa senhora!, sempre a pensar nas necessidades dos outros, no seu bem estar, uma verdadeira alma caridosa, pronta a estender a mão a quem precisa...
- Uma camarada excepcional, durante a ditadura fascista trabalhou na clandestinidade, distribuiu o jornal do partido, colaborou de forma activa na luta, por um amanhã diferente, por melhores condições de vida.
- Não estamos num comício...
- Nem na igreja...
- A última frase do testamento, penso eu, é reveladora da vontade da falecida.
- As anteriores não contam, é? Os parágrafos onde ela manifesta, de forma explícita, que são os ideais do partido o motor para a doação...
- Deixe-se lá dessas coisas, você é um rapazinho. Nem viveu a revolução, mesmo que a tivesse vivido... já foi há tanto tempo, ninguém se lembra.
-... 
- Além disso, falar em revolução... não sei para que vos servem as universidades...
- Inacreditável, a forma ligeira como suprime momentos históricos... 
- Tenho mais de duas mil razões para o fazer...
- Francamente...
- Meus senhores, por favor, alguma assertividade...

Reconheceste-lhe a voz, nunca a esquecerias, mas obrigaste-te a não olhar, mantiveste a cabeça baixa – concentrada na ementa. O inspector. O teu corpo, estranhaste, não respondeu ao estímulo (na prisão, bastava seres chamada, era o terror), permaneceste fixa no catálogo alimentar, ele e a companhia, uma mulher – perfume forte, ocuparam a mesa atrás de ti. Dois anos, passaram dois anos e... vem jantar fora, seduz. Comeste devagar, em silêncio, para seres escuta ativa, clandestina. Foi fácil elaborares um plano.

- Eu... estou sem palavras, é uma honra imensa para a freguesia, como seu presidente... o imóvel está classificado, não é verdade? 
- Sim, faz parte do património da cidade, tem valor concelhio. 
- Graças a Deus, a casa grande sempre foi importante. 
- Sobretudo do ponto de vista jesuíta... 
- Ouça lá... 
- Meus senhores, o motivo da nossa reunião é cumprir com os desejos da falecida, o texto é um pouco dúbio, é certo, mas não estamos aqui para discutir os pontos de vista, ou os ideais de cada um. Aliás, não estamos aqui, sequer, para discutir.

Compraste uma peruca. Aprendeste a dançar rumbas e boleros. Tango. O inspector convidou-te para jantar, dois meses depois. Finda a refeição e já no bar dançante, repleto de funcionários públicos sedentos de adrenalina, comprovaste o esperado: era um marialva urbano, insignificante, um misógeno quarentão... um sádico a quem o regime dera carta branca. Adaptara-se: deixara crescer a barba e o cabelo, aprendera a vomitar teses democratas, apregoava a moderação conciliatória, unidade. Insinuara-se enquanto dançavam: já o esperavas. Em casa dele, depois de o teres manietado – os perversos supõem, quase sempre, cumplicidade -, surpreendeste-o. Justiça.

- Também há a questão dos terrenos junto da Estrada Militar...
- A falecida é bastante clara na sua resolução, devem ser doados às comunidades que habitam os bairros.
- São terrenos bastante valiosos...

  1. Lisboa: 2014

    Particularidade em jazigo no Cemitério dos Prazeres - (fotografia: dulcecor)



domingo, 21 de dezembro de 2014

Geração de 70 - separador

 Bird watch

pavimento é betão (desarmado à vista)
pensamento é chão inclinado avista se
tem fundo diferente
num mundo assente em passos humanos
cem traços urbanos espaços aves o seu poleiro
traves (no céu primeiro as pessoas)
em janelas são Lisboas sentinelas
da estranha modernidade entranha da cidade
guardiões de memórias passadas expressões
estórias arrulhadas ao vento apagadas no tempo
e o pombo tenso (o tombo): eu penso?
na fotografia a ave é coreografia trave que antecede
o voar mundano e percebe o olhar humano

M. Lisboa: 2014 

Particularidade em fachada - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)
 

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Geração de 70 - O velho sábio (ainda)

Fiquei encostado, olhando pela montra do café, o caminho de betão terminava o urbano e começava o bairro, procurando coragem para subir: senti um aperto no estômago, as memórias latejando, percebi a existência de um muro invisível. Tem morro e muro no mundo todo. Paguei minha água, decidido a cumprir meu objetivo: subiria até outro dos mundos dessa cidade de Lisboa, conheceria a família da moça, seus filhos.

- Deixei a escola cedo, estudou o irmão mais velho, comecei logo a trabalhar.
- Seu irmão estudou?
- É médico, deixou o bairro faz tempo.
- ...

Olho o grupo de velhos sentados, em cadeiras tão antigas quanto eles, estão num espaço aberto entre os escombros: recebem quem chega no bairro. O reconheci de imediato, tanto tempo depois e tantas vidas passadas, meu amigo: seria possível? Paro para lhe olhar, sua pele está curtida pelo tempo passado no sol tropical, as rugas traçam suas rotas atlânticas, ele me fita: seus olhos são silêncio de desconhecido.

- Doutor, encontrei uma caixa cheia de envelopes antigos, parecem cartas.
- Pode deixar aí, eu dou uma olhada mais tarde.

Eu partira da casa grande para procurar o impossível na viagem, mas minha companhia fora sempre o desencanto, sem acreditar. A cada gesto brusco dessa vida... correspondi com força, fui rasgando meus laços, esquecendo o menino que fui. O tempo roubado me trouxe até na entrada do bairro, mas a violência do presente imprevisto, o fantasma aparecido... meu coração, intermitente durante tanto tempo, explodiu numa dor aguda. Quis inspirar o ar frio, parecendo rarefeito me faltava, caindo no chão – repentino. Meus olhos cerrados, o corpo falhando uma e outra vez, rumo ao impossível.

M. Lisboa: 2014

Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Geração de 70 - O velho sábio

É impossível ser insensível quando se desce do céu noturno, aterragem Lisboa, luzem as estrelas afastadas pelas luzes humanas: os pontos brilhantes se incendeiam, rio e mar. Voltava, eu estava voltando, as origens de um passado distante... como a idade nos transforma, meu tempo, como eu fugi deste país, faz tempo... Saindo do aeroporto, peguei um táxi, os olhos do moço sorriram quando lhe disse meu destino; meu sotaque, atlântico de aportagem, foi justificando perguntas e respostas de ambos: eu curioso pela chegada, ele curioso sobre a partida. O moço gostava de conversar enquanto dirigia, me foi ilustrando as paisagens, contando peripécias... me permiti recordar. Quarenta anos.

Maior que no meu pensamento, a casa domina ainda a praça, mas não é só casa grande, nessa nova Lisboa... se tornou numa fachada inscrita do turismo. Não é nostalgia, não... são saudades, sinto saudade, do tempo em que a praça era nosso reino, de outro tempo. Travo o inútil devaneio, ao mesmo tempo parou o táxi, no adro da igreja. Pago ao moço. Existirá ainda o boteco da travessa? Vou ver.

Azulejos industriais cobrem as paredes, nem a memória do balcão – corpo de madeira, tampo de mármore – resta, as mesas têm quatro cadeiras, fórmicas e geométricas, os bancos corridos foram extintos, e as pipas de vinho... cadê? Tomo uma água, há um silêncio que entrou e sairá comigo, o som do televisor ocupa tudo e todos.

A matrona encarregue de entregar-me a chave, último fruto numa longa linha de alcoviteiras e servas da casa, Maria da Conceição Celeste, não dispensou convidar-me para jantar com sua família. Como dizer não? Bacalhau. É noite cerrada quando finalmente entro na casa grande, trago lanterna – luz elétrica, só tem no final da semana -, prefiro bafio a um serão bafiento: ser bajulado, ouvindo louvar as obrigações sociais da família, as benesses ininterruptas à freguesia...

A manhã me pegou desprevenido, instalara-me na biblioteca, espaço intuído na escuridão, precisei de algum tempo para situar-me, ao acordar sempre me esqueço: faltam os óculos, meu corpo trôpego pelo sofá. Calma, é o primeiro dia, tem tempo. Olho o espaço onde fui-me conhecendo, difuso em borrões, pego os óculos para ver, fora da memória. Mas não sou mais criança, sei que heróis não existem.

A sabedoria vem com a idade, pode até ser, mas no corpo... tem a traição da bondade, o castigo do contrário. Onde foi? Procuro o espanto, a estante, o canto, o instante... se ainda houvesse... Não importa, não importa mais, a fuga termina aqui. No princípio de tudo: casa grande, biblioteca, memória.

No segundo dia veio a matrona, me disse: " Já lhe arranjei uma empregada, até parece brasileira", não liguei para o comentário: lhe passei um cheque para a associação de amigos do museu de arte sacra. Me explicou: " É conhecida da minha empregada, são vizinhas, vivem ambas na periferia... num daqueles bairros... são todos amigos e primos, não é?", me disse que a moça poderia vir toda a manhã e ficar até no final de tarde; passei outro cheque, para a comissão de festas dos amigos do museu de arte sacra, a moça não trabalharia sábado e domingo.

Ela estava na soleira da porta, olhos brilhando, franca na saudação inicial. Cumpri minhas obrigações de patrão ordenador, tarefas e necessidades, falando gélido; não alterou sua expressão empática, a matrona afinal tinha razão, a moça parecia brasileira. No quarto dia lhe falei dos livros, deviam ser limpos, um a um, de dois em dois meses, ela arregalou seus olhos. Mais tarde, descobri... não era alfabetizada, estremeci.

M. Lisboa: 2014
 
Jazigo no Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Geração de 70 - separador

Once upon a bird

contos de fadas era uma vez? favas contadas
por dois ou três em alternância democrática
constância autárquica: segregação institucional
agressão social terrorismo oficial cinismo global
em decisões paternalistas atribuições racistas
onde a cor da pele impele assunções de
nacionalidade funções e identidade: 1993 diga?
outra vez: siga a demolição calculada agressão
legalizada permitida legitimada repetida
pelas forças policiais “eles são todos iguais”
e existe um fundo de investimento “real” persiste
o mundo fomento letal baço sem humanidade escasso
em verdade e sem misericórdia ou visão semeiam
discórdia e tensão assassinam negligentes multiplicam
indigentes rasgam laços familiares traçam alvos
particulares premeditados significativos calculados
e sabidos: em Santa Filomena derrubaram a igreja para
matar a comunidade: não há quem veja esta realidade?
as demolições são quotidianas e as soluções insanas
realojamentos desiguais ressurgimentos coloniais
não resultam da incompetência: exultam ciência
neoliberal, caridadezinha, neo... coisa e tal, bem
repartidinha (em grades de aço) acontece que
eu não faço “tweet” com o Papa Francisco,
se o fizesse, contava-lhe isto; e também ao Obama
à sua mãe e à sua ama – arquétipo velho Estrela
de África ou 6 de Maio – espelho das mulheres raiz
plantadas em cada bairro

M. Lisboa: 2014

Particularidade em muro de habitação - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Geração de 70 - O grupo (ainda)

Não regressei a casa depois da oficialização do divórcio, alguns amigos e familiares, os poucos que a tal se atreveram, transportaram-me os pertences permitidos para uma pensão – vivi meses num quarto atafulhado. Fui obrigada a recorrer à caridade, engoli lágrimas e orgulho para me passar a incluir na fila matinal, terças-feiras, à porta da paróquia. A minha família, movida pela sociedade e a tradição, limpara a consciência do meu futuro, abandonara-me gradualmente, sossegada pela sorte que me cabia: eu carregava a cruz que o Senhor me destinava.

- A senhora também vem aqui?
- Preciso de comer.
- Tem um marido rico...
- Não sou um saco de pancada, divorciei-me.
- Por isso é que está aqui... só tem o seu estômago para alimentar...

Salvou-me a escrita compulsiva, por ser concentrada, longe de todo o antes: escrevi para me sentir pessoa, viva a sangrar por dentro, mascarada ser normal numa vida diferente. O meu amigo editor justificou a impossibilidade da edição, fracasso anunciado, e submeti-me a outro exílio, dentro da minha cidade, em passeios pelas ruelas, leituras em jardins e praças. Surgiram algumas traduções de poesia sueca, recomecei a trabalhar. Retomei a escrita para me despedir da ingenuidade e da pensão, para arrumar as ilusões dos sonhos escondidos e as idas à caridade; escrevi para me refazer, decidida a ser suavemente feroz, impiedosa. 
 
- Estás a viver onde?
- Numa pensão do Intendente e...
- É melhor reunirmos cá em casa, almoças connosco, traz o manuscrito.

Sentada ao centro da mesa, sob o palco, percebi como a sala estava cheia, amigos e amigas, colegas de trabalho, camaradas solidários e respectivas esposas, simpatizantes e oscilatórios(as), escritores e escritoras, narradores e narradoras, curiosos e curiosas, colunáveis, críticos(as) profissionais e afins... sorri para celebrar o poder da poesia, tinha um discurso ensaiado, politicamente correcta. As elites culturais auto-designadas, atribuídas, revolucionárias, as contra, as mais ou menos, as de coisa nenhuma, os intelectuais de cima, baixo, esquerda, direita, rectaguarda e sentido proibido, o mecenato... em filas sucessivas, acomodavam-se para o lançamento do meu segundo livro.

- É muito bom, consegues retratar na perfeição o quotidiano daquelas mulheres...
- Vivi no meio delas, é natural.
- Não sejas modesta, a forma como descreves os detalhes mais intímos, a linguagem, a escrita na primeira pessoa, a forma em diário... quem lê sente-se na pele de uma delas. É brilhante.

O profissional encarregue da apresentação do livro, professor universitário na área das ciências sociais e humanas, fê-lo, com uma elegância discreta, poupando nas emoções. Enquanto a voz (preparada) se espalhava pela sala, vi-o: o pintor do Índico. Fiz a devida apresentação, assinei exemplares até chegar a sua vez – o último, os sorrisos impediram-nos a concentração na sociabilidade necessária, valeu-nos o esforço. Nos dias seguintes, a cidade como mapa, mostrámo-nos um ao outro pelas ruas, contámo-nos caminhos percorridos, dentro e fora: o mar fora uma ilusão igual à da utopia. O tempo era outra.

- A senhora paga-me?
- Compro-te a passagem para França, não me disseste que tens lá família?
- São coisas que me passam pela cabeça... escrevo-as quando venho dormir, às vezes...
- ... nem te lembras do que escreveste no dia anterior?
- Sim, é isso... mas tem dinheiro para me pagar?
- Daqui a dois meses, se me deixares levar os cadernos, estás a voar para Paris.

As primeiras ameaças aconteceram de madrugada, o telefone tocava e atendias para ouvires uma voz rouca – agressiva, ofegante – a proferir barbaridades; passaste a desligar o aparelho durante a noite, resultou temporariamente, a decência exigia acção e foste registar queixa na esquadra. Os telefonemas terminaram: começaram as cartas, vinham com o jornal, quando resolveste contar-lhe... já tinhas entregue uma dúzia.

- Por que não me disseste mais cedo?
- Não mudaria nada, não quis preocupar-te.
- Por que me contas agora?
- Tenho ido à polícia, é melhor saberes por mim.
- Querida, esses são os piores...

Moçambique. Ele queria levar-me consigo. Disse-lhe que ia pensar. O que me prendia? Podia escrever outras realidades, vivê-las. Por que não? Viveria numa casa que ele mandaria construir, se nenhuma outra me agradasse, teria a minha independência. Mas teria de respeitar a cultura tradicional, acima de tudo: cumprir o meu papel. Não estaríamos em solo europeu, explicou-me. Mas a terra é uma só, disse eu, são palavras – respondeu-me, olhos profundos, identidade. Primeiro, respeitaria os seus antepassados, insistiu. Quais, perguntei eu, tu não entendes – replicou, mitos subterrâneos, identidade. Eu decidi ficar.

A última carta chegou com o jornal da manhã. Abriste o envelope, leste a frase de sempre, rasgaste-o e à carta: deitaste ambos no lixo. Ele desceu para o pequeno-almoço, beijo na testa, tu sorriste, para quê preocupá-lo? As cartas eram uma brincadeira de mau gosto, dissera-te o chefe da polícia, nada mais: não há razão para ralações, as celebridades já deviam contar com isso. Esteve no funeral, um mês depois, fizeste-te muda aos seus pêsames - tinhas desculpa na dor de viúva, são os piores... lembraste-te. Mas não podias gritar. Suportaste os assassinos fardados e os mandantes engalanados, diziam-te, um pintor tão famoso, o orgulho da pátria: a voz iluminada do exílio, clamavam-te, o traço luminoso da revolução.

- Por que não ligou mais cedo?
- Não tinha a confirmação da identidade.
- E agora?
- Não há dúvidas, fui à polícia, está feito. O velho não uiva mais nos nossos ouvidos, acabaram aquelas ladaínhas do antigamente.
- Tudo tem o seu tempo.
- Este é o nosso, agora é o nosso tempo.
- Outros tempos virão.
- O meu é que importa.
- O nosso.
- Foi isso que eu disse.

Descobriste os primeiros poemas, estava ele em viagem pela Europa, escondidos no interior de um livro. Obra estrangeira, não fora a lombada colorida, nunca lhe terias pegado. Mas as folhas, tom rosa cronológico, espalharam-se pelo chão. Viste a mancha gráfica fluída, uma caligrafia apertada e esguia, nervosa. Era português. O amor pelos poemas. Dela. Nenhuma fotografia, nenhuma imagem: sossegaste e voltaste a guardar a poesia no livro. Esqueceste-a.

No Cais das Colunas, as minhas mãos repousaram sobre o jornal, inspirei a brisa fresca do azul Lisboa: o pintor morrera. Lembrei-me imediatamente da música, já passara tanto tempo... estamos todos mortos, pensei, uns sabem e outros não. Não senti culpa: fora a descendentes dos seus antepassados que eu passara as informações.

M. Lisboa: 2014

Particularidade em jazigo no Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)