segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Geração de 70 - O grupo


No final das reuniões, idos os pais e mães de família, diferentes células boémias distribuíam-se pela cidade noctívaga. Muitos fequentavam o bar de um pequeno teatro, de bairro mas do mundo – palavras do proprietário, onde, entre cerveja e copos de tinto, se discutiam, importantes questões geo-estratégicas mundiais, como o gingar das estudantes tropicais, a emancipação feminina e o direito à maternidade, muitos e variados paradoxos. Em mesas, anexadas pela boémia, era possível observarem-se esquerdas unidas, as militantes herdeiras da gloriosa revolução soviética, as extremas empedernidas, as literárias não realistas, todas juntas. E outros. A noite extinguia as discussões mais acérrimas: eram todos pardos.

O telefone tocou e, ao contrário do rotineiro, não me sobressaltei com o som, dirigi-me até ao aparelho, levantei o auscultador, ouvi-o. A voz, como se fosse de sempre, as palavras, como se fossem para sempre, deixei-me embalar: amanhã, quatro horas. No dia seguinte, esperei tempo suficiente para me envergonhar, transformada em ridículo. Surpresa por não ter previsto a atitude, outros valores... o significado parecia-me óbvio; ainda assim, resolvi caminhar pela cidade, sem rumo, interrogando-me para fugir do embaraço.

Dei por mim frente ao cinema, para quê desperdiçar o resto da tarde? Escolhi uma fita comédia mas, no intervalo, a mente despeitada perdera metade do enredo, o filme ainda não me distanciara do recente, optei por deixar-me ficar na sala; arrependida por ter deixado os cigarros em casa, aproveitei para organizar as papeladas, infindas, espalhadas no interior da mala. Reconheci-lhe a voz, duas filas à frente, estremeci, sem levantar os olhos. Filho da puta, pensei, não acredito. Olhei, confirmei a nuca, o movimento: ali estava, impecável como sempre, gestos e palavras de raposa, preparando a presa. Quis sentir nojo.

Saí antes das luzes acenderem, não queria ser vista, mas deparámo-nos na entrada; a acompanhante brilhava, ele tinha o braço sobre os seus ombros, sorriu ao encarar-me. Não fiz referência ao (des)encontro, agi como me competia, fui apenas pouco efusiva. Convidaram-me para os acompanhar, recusei séria, ele explicou: a camarada partiria, no dia seguinte, para Paris, queriam celebrar. Resisti ao impulso. O telefone tocou de madrugada, repentino e agudo, rasgou a noite, encontrei-lhe a voz trôpega. Desliguei imediata, lembrei-me da matiné. O telefone não voltou a tocar, ficou fora do descanso. Três dias.

Entrei apressada, no auditório da fundação, aliviada por fugir da chuva, mas também por esperar, há muito, a conferência sobre a questão colonial e a poesia. Meia centena de pessoas, quorum insuficiente para uma revolução académica, quebrava o gelo em conversava pela cafetaria. Iniciado o evento, escolhi um dos lugares mais afastados, na última fila, para poder sair – sem dar nas vistas, se quisesse. A primeira comunicação, um erudito afro-brasileiro sobre a poesia negra, deu origem a um empolgante debate. Eu julgava que a poesia era isso mesmo: poesia. Limitei-me a ouvir.

Chegada a casa encontrei uma carta que li, reli e voltei a ler, sentei-me para procurar uma resposta sarcástica o suficiente, cínica o suficiente. Deixei a secretária, o corpo pediu-mo, cirandei pelo quarto, para apelar à razão, à raiva... Voltei a sentar-me para raciocinar, despersonalizar: um macho progressista. Levantei-me de novo, o espaço exíguo impedia-me passos maiores, seria pior se fosse misógino: telefonei-lhe. Meses depois, objector de consciência para escapar à guerra imperialista, convidou-me a segui-lo até à Suécia, lá casámos.

Na ausência do sol, tornei-me poeta. Ele, o escritor consagrado, acautelava-me para que eu não publicasse precipitadamente, dissecava as minhas amizades no meio artístico do exílio (origens, ideologias, financiamentos), advertia-me... era óbvia ligação que os leitores fariam, ele o autor premiado, comprometido com o movimento revolucionário e progressista, eu a fiel companheira... elogiava-me... pela pertinência do meu apoio no seu processo criativo e na luta... o golpe de mestre foi passar a teorizar a maternidade, acto revolucionário supremo, como prerrogativa das camaradas. Continuei a tomar a pílula, o meu primeiro segredo.

Como não conseguia fazê-lo em casa, habituei-me a escrever nos cafés, escolhia as mesas encostadas às janelas, lembrava a luz de Lisboa em cadernos de capa preta; escrevia em permanente azul, contrapunha lembranças ao sol nórdico, pálido e filtrado pelo vidro, integrei-me poesia... associei, por isso e para sempre, o cinzento luminoso à criação adúltera do poema - transformação do real. Encontrávamo-nos no estúdio dele, pintor e ceramista, quando o meu marido se ausentava. Travámos conhecimento num dos cafés, o exílio fez a aproximação, o português permitiu-nos prolongamento: era moçambicano.

Adrenalina... repeti os esquemas, os vícios, da infidelidade crónica do meu querido esposo. Sentia-me dupla e, nessa duplicidade reencontrava-me, sem culpa. Seis meses, quase um ano, meia dúzia de vida irreversível. Muita cafeína. Chamado para cumprir funções políticas, a minha cara metade regressava a Portugal, eu seguiria meses depois, mas o meu amante voltara para Moçambique. Nessa época, escrevi aqueles que a crítica considera os meus melhores poemas... como não desprezar a academia? Escrevi muito, apenas isso. Dor de corno. E tinha saudades da língua.

Acabei por voltar à pátria lusitana, dizia aos amigos que queria saber se a poesia ainda estava nas ruas: os mais conservadores diziam sim, pelas ruas da amargura. O meu marido entregara o seu talento artístico à dramaturgia, após sucessivos debates, sobretudo entre as jovens estudantes do conservatório, e descobrira uma aptidão notável por novos processos criativos, outras performances. Para mais, visto desempenhar funções políticas na área cultural, articulava ambas as ocupações sem conflito de interesses: a moral superior do movimento revolucionário e progressista garantia-o.

Ele também adicionara a encenação ao seu currículo, tinham sido muito aclamadas as suas interpretações dos clássicos gregos - num cenário minimalista repetitivo de eleição, a paisagem sueca -, sob um ponto de vista libertário. Assisti a alguns dos ensaios de uma comédia, o texto alterado para "o povo", recuada, sentada no fundo da sala, observei-o mover-se naquele habitat: vi teatrinhos dentro de um teatro à procura de o ser, restos de sonho, vi multiplicidades calculadas e hipocrisias preparadas... espirais do comportamento humano: afazeres de conta.

O nosso quotidiano tinha rotinas estabelecidas, o casamento era uma sociedade, não se questionava a agenda de cada um e os compromissos comuns nunca precisavam de acertos, uma boa equipa. Por intermédio de alguns camaradas, comecei a publicar crónicas num periódico, motivada pela experiência no estrangeiro, foquei-me na questão feminista; os primeiros textos foram reescritos várias vezes: o vocabulário demasiado exigente, a temática demasiado agressiva, o assunto desadequado à realidade nacional... Depois de uma reunião, revolucionária e progressista, percebi quais eram as questões estruturais importantes: foquei-me nelas e continuei a escrever com tinta azul.

Dois anos: crónicas compiladas, o rótulo feminista, uma publicação de pequena tiragem. Continuei a guardar a poesia escrita em gavetas. Um dia resolvi entregar-lhe os poemas... como se, pelos nossos desejos, as pessoas fossem diferentes... nem uma palavra, recebeu o conjunto de textos e instalou-o na mesa de cabeceira, eu também não disse nada; meses depois, ao encontrar o manuscrito, no escritório, como suporte para a sua máquina de escrever... irada, corri até à editora de um velho amigo: em duas horas tudo se acertou. Quinze dias depois fui a um advogado; meses mais tarde, na mesma manhã em que verificaria a versão final do livro, estaria ainda a dois anos de assinar o divório: o fim do inferno.

Após lhe ter comunicado a intenção de separação, coabitámos sem problemas de maior, mas, à medida que os dias foram passando, a violência verbal surgiu e trouxe a outra. O meu marido transformou-se num animal irracional, fez o processo arrastar-se e envolveu familiares e amigos, notas na imprensa... nas fileiras progressistas do movimento revolucionário também não encontrei solidariedade. O divórcio não era pecado mas demonstrava falta de sentido de compromisso. Fui obrigada a viver com ele durante todo o processo, sem recursos económicos, as crónicas canceladas. Percebi que Abril soçobrava para algumas mulheres e o meu rótulo de feminista... só era prestigiante em determinados círculos. Constatei-o também na esquadra de polícia, onde apresentei queixas inúteis, após as primeiras agressões.

- Ó Freitas, traz aí o bloco de notas e vai apontando o depoimento, depois passas à máquina, não faz mal, tens a tarde toda. Escreves agressão, sim com dois “s”, aí nessa linha. A senhora desculpe lá a demora mas... sabe como é, não sabe? Pois, a sua cara não me é estranha, ó Freitas, a cara desta senhora não te parece familiar? Já sei, é isso mesmo, tens razão, a senhora escreve para o jornal. Escreve sobre quê? Culinária? Ah, direitos das mulheres, Freitas, apontaste? Olhe, minha senhora, a verdade é que esse tipo de situações acontece de vez em quando. É uma pena. Mas tudo se resolve. As pessoas perdem a paciência, às vezes falta um bocadinho de calma, as senhoras tendem a ficar nervosas. Olhe, vou ser sincero consigo, é raro recebermos destas queixas, estas coisas costumam resolver-se. Às vezes, é só um copito a mais, não é? Ou a senhora talvez se tenha exaltado um pouco, talvez um grito ou dois... Pronto, pronto... estava só a tentar ajudar. Não precisa de ficar nervosa, não vale a pena estar a levantar a voz. Tenha calma, não se exalte. Freitas, é melhor começares a escrever à máquina.

  1. Lisboa: 2014

    Particularidade em jazigo no Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

Sem comentários:

Enviar um comentário