No
final das reuniões, idos os
pais e mães de família, diferentes células boémias distribuíam-se pela cidade noctívaga. Muitos fequentavam o bar de
um pequeno teatro, de bairro mas do mundo – palavras do
proprietário, onde, entre cerveja e copos de tinto, se discutiam, importantes questões geo-estratégicas mundiais, como o
gingar das estudantes tropicais, a emancipação feminina e o direito
à maternidade, muitos e variados paradoxos. Em mesas, anexadas pela
boémia, era possível observarem-se esquerdas unidas, as militantes herdeiras
da gloriosa revolução soviética, as extremas empedernidas, as literárias não realistas, todas juntas. E outros. A noite extinguia as discussões mais
acérrimas: eram todos pardos.
O
telefone tocou e, ao contrário do rotineiro, não me sobressaltei
com o som, dirigi-me até ao aparelho, levantei o auscultador,
ouvi-o. A voz, como se fosse de sempre, as palavras, como se fossem
para sempre, deixei-me embalar: amanhã, quatro horas. No dia
seguinte, esperei tempo suficiente para me envergonhar, transformada
em ridículo. Surpresa por não ter previsto a atitude, outros
valores... o significado parecia-me óbvio; ainda assim,
resolvi caminhar pela cidade, sem rumo, interrogando-me para fugir do
embaraço.
Dei
por mim frente ao cinema, para quê desperdiçar o resto da tarde?
Escolhi uma fita comédia mas, no intervalo, a mente despeitada
perdera metade do enredo, o filme ainda não me distanciara do
recente, optei por deixar-me ficar na sala; arrependida por ter
deixado os cigarros em casa, aproveitei para organizar as papeladas,
infindas, espalhadas no interior da mala. Reconheci-lhe a voz, duas
filas à frente, estremeci, sem levantar os olhos. Filho da puta,
pensei, não acredito. Olhei, confirmei a nuca, o movimento: ali
estava, impecável como sempre, gestos e palavras de raposa,
preparando a presa. Quis sentir nojo.
Saí
antes das luzes acenderem, não queria ser vista, mas deparámo-nos
na entrada; a acompanhante brilhava, ele tinha o braço sobre os seus
ombros, sorriu ao encarar-me. Não fiz referência ao (des)encontro,
agi como me competia, fui apenas pouco efusiva. Convidaram-me para os
acompanhar, recusei séria, ele explicou: a camarada partiria, no dia
seguinte, para Paris, queriam celebrar. Resisti ao impulso. O
telefone tocou de madrugada, repentino e agudo, rasgou a noite, encontrei-lhe a voz trôpega. Desliguei imediata, lembrei-me da matiné. O telefone não voltou a
tocar, ficou fora do descanso. Três dias.
Entrei
apressada, no auditório da fundação, aliviada por fugir da chuva,
mas também por esperar, há muito, a conferência sobre a questão
colonial e a poesia. Meia centena de pessoas, quorum
insuficiente para uma revolução académica, quebrava o gelo em
conversava pela cafetaria. Iniciado o evento, escolhi um dos lugares
mais afastados, na última fila, para poder sair – sem dar nas
vistas, se quisesse. A primeira comunicação, um erudito
afro-brasileiro sobre a poesia negra, deu origem a um empolgante
debate. Eu julgava que a poesia era isso mesmo: poesia. Limitei-me a
ouvir.
Chegada
a casa encontrei uma carta que li, reli e voltei a ler,
sentei-me para procurar uma resposta sarcástica o suficiente, cínica
o suficiente. Deixei a secretária, o corpo
pediu-mo, cirandei pelo quarto, para apelar à razão, à raiva...
Voltei a sentar-me para raciocinar,
despersonalizar: um macho
progressista. Levantei-me de novo, o espaço
exíguo impedia-me passos maiores, seria pior se fosse
misógino: telefonei-lhe. Meses depois, objector de consciência para
escapar à guerra imperialista, convidou-me a segui-lo até à
Suécia, lá casámos.
Na
ausência do sol, tornei-me poeta. Ele, o escritor consagrado,
acautelava-me para que eu não publicasse precipitadamente, dissecava
as minhas amizades no meio artístico do exílio (origens, ideologias,
financiamentos), advertia-me... era óbvia ligação que os leitores fariam, ele o autor premiado, comprometido com o
movimento revolucionário e progressista, eu a fiel companheira...
elogiava-me... pela pertinência do meu apoio no seu processo
criativo e na luta... o golpe de mestre foi passar a teorizar a
maternidade, acto revolucionário supremo, como prerrogativa das
camaradas. Continuei a tomar a pílula, o meu primeiro segredo.
Como
não conseguia fazê-lo em casa, habituei-me a escrever nos cafés,
escolhia as mesas encostadas às janelas, lembrava a luz de Lisboa em
cadernos de capa preta; escrevia em permanente
azul, contrapunha lembranças ao sol nórdico, pálido e filtrado
pelo vidro, integrei-me poesia... associei, por isso e para sempre,
o cinzento luminoso à criação adúltera do poema - transformação do real. Encontrávamo-nos
no estúdio dele, pintor e ceramista, quando o meu marido se
ausentava. Travámos conhecimento num dos cafés, o exílio fez a aproximação, o português
permitiu-nos prolongamento: era moçambicano.
Adrenalina... repeti os esquemas, os vícios, da infidelidade crónica do
meu querido esposo. Sentia-me dupla e, nessa duplicidade
reencontrava-me, sem culpa. Seis meses, quase um ano, meia dúzia de
vida irreversível. Muita cafeína. Chamado para cumprir funções
políticas, a minha cara metade regressava a Portugal, eu seguiria meses
depois, mas o meu amante voltara para Moçambique. Nessa época, escrevi aqueles que a crítica considera os meus melhores
poemas... como não desprezar a academia? Escrevi muito, apenas isso. Dor de
corno. E tinha saudades da língua.
Acabei
por voltar à pátria lusitana, dizia aos amigos que queria saber se
a poesia ainda estava nas ruas: os mais conservadores diziam sim,
pelas ruas da amargura. O meu marido entregara o seu talento
artístico à dramaturgia, após sucessivos debates, sobretudo entre
as jovens estudantes do conservatório, e descobrira uma aptidão
notável por novos processos criativos, outras performances. Para
mais, visto desempenhar funções políticas na área cultural,
articulava ambas as ocupações sem conflito de interesses: a moral
superior do movimento revolucionário e progressista garantia-o.
Ele também adicionara a encenação ao seu currículo, tinham
sido muito aclamadas as suas interpretações dos clássicos gregos - num cenário
minimalista repetitivo de eleição, a paisagem sueca -, sob um ponto de vista libertário. Assisti a alguns dos
ensaios de uma comédia, o texto alterado para "o povo", recuada, sentada no fundo da sala, observei-o mover-se naquele habitat: vi
teatrinhos dentro de um teatro à procura de o ser, restos de sonho, vi multiplicidades
calculadas e hipocrisias preparadas... espirais do comportamento
humano: afazeres de conta.
O
nosso quotidiano tinha rotinas estabelecidas, o casamento era uma
sociedade, não se questionava a agenda de cada um e os compromissos
comuns nunca precisavam de acertos, uma boa equipa. Por intermédio
de alguns camaradas, comecei a publicar crónicas num periódico,
motivada pela experiência no estrangeiro, foquei-me na questão
feminista; os primeiros textos foram reescritos várias vezes: o
vocabulário demasiado exigente, a temática demasiado agressiva, o
assunto desadequado à realidade nacional... Depois de uma reunião,
revolucionária e progressista, percebi quais eram as questões
estruturais importantes: foquei-me nelas e continuei a escrever com tinta azul.
Dois
anos: crónicas compiladas, o rótulo feminista, uma publicação de
pequena tiragem. Continuei a guardar a poesia escrita em gavetas. Um dia resolvi entregar-lhe os poemas... como se, pelos
nossos desejos, as pessoas fossem diferentes... nem uma palavra,
recebeu o conjunto de textos e instalou-o na mesa de cabeceira, eu também não disse
nada; meses depois, ao encontrar o manuscrito, no escritório, como
suporte para a sua máquina de escrever... irada, corri até à editora de um velho amigo: em duas horas tudo
se acertou. Quinze dias depois fui a um advogado; meses mais tarde, na mesma
manhã em que verificaria a versão final do livro, estaria ainda a dois
anos de assinar o divório: o fim do inferno.
Após
lhe ter comunicado a intenção de separação, coabitámos sem
problemas de maior, mas, à medida que os dias foram passando, a
violência verbal surgiu e trouxe a outra. O meu marido
transformou-se num animal irracional, fez o processo arrastar-se e
envolveu familiares e amigos, notas na imprensa... nas fileiras
progressistas do movimento revolucionário também não encontrei
solidariedade. O divórcio não era pecado mas demonstrava falta de
sentido de compromisso. Fui obrigada a viver com ele durante todo o processo, sem recursos económicos, as crónicas canceladas. Percebi que Abril soçobrava para algumas
mulheres e o meu rótulo de feminista... só era prestigiante em
determinados círculos. Constatei-o também na esquadra de polícia,
onde apresentei queixas inúteis, após as primeiras agressões.
-
Ó Freitas, traz aí o bloco de notas e vai apontando o depoimento,
depois passas à máquina, não faz mal, tens a tarde toda. Escreves
agressão, sim com dois “s”, aí nessa linha. A senhora desculpe
lá a demora mas... sabe como é, não sabe? Pois, a sua cara não me
é estranha, ó Freitas, a cara desta senhora não te parece
familiar? Já sei, é isso mesmo, tens razão, a senhora escreve para
o jornal. Escreve sobre quê? Culinária? Ah, direitos das mulheres,
Freitas, apontaste? Olhe, minha senhora, a verdade é que esse tipo
de situações acontece de vez em quando. É uma pena. Mas tudo se
resolve. As pessoas perdem a paciência, às vezes falta um bocadinho
de calma, as senhoras tendem a ficar nervosas. Olhe, vou ser sincero
consigo, é raro recebermos destas queixas, estas coisas costumam
resolver-se. Às vezes, é só um copito a mais, não é? Ou a
senhora talvez se tenha exaltado um pouco, talvez um grito ou dois...
Pronto, pronto... estava só a tentar ajudar. Não precisa de ficar
nervosa, não vale a pena estar a levantar a voz. Tenha calma, não
se exalte. Freitas, é melhor começares a escrever à máquina.
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