É
impossível ser insensível quando se desce do céu noturno, aterragem
Lisboa, luzem as estrelas afastadas pelas luzes humanas: os pontos
brilhantes se incendeiam, rio e mar. Voltava, eu estava voltando, as
origens de um passado distante... como a idade nos transforma, meu
tempo, como eu fugi deste país, faz tempo... Saindo do aeroporto,
peguei um táxi, os olhos do moço sorriram quando lhe disse meu
destino; meu sotaque, atlântico de aportagem, foi justificando perguntas e respostas de ambos: eu curioso pela chegada, ele curioso
sobre a partida. O moço gostava de conversar
enquanto dirigia, me foi ilustrando as paisagens, contando
peripécias... me permiti recordar. Quarenta anos.
Maior
que no meu pensamento, a casa domina ainda a praça, mas não é só
casa grande, nessa nova Lisboa... se tornou numa fachada inscrita do
turismo. Não é nostalgia, não... são saudades, sinto saudade, do
tempo em que a praça era nosso reino, de outro tempo. Travo o inútil
devaneio, ao mesmo tempo parou o táxi, no adro da igreja. Pago ao
moço. Existirá ainda o boteco da travessa? Vou ver.
Azulejos
industriais cobrem as paredes, nem a memória do balcão – corpo de
madeira, tampo de mármore – resta, as mesas têm quatro cadeiras,
fórmicas e geométricas, os bancos corridos foram extintos, e as
pipas de vinho... cadê? Tomo uma água, há um silêncio que entrou
e sairá comigo, o som do televisor ocupa tudo e todos.
A
matrona encarregue de entregar-me a chave, último fruto numa longa
linha de alcoviteiras e servas da casa, Maria da Conceição Celeste,
não dispensou convidar-me para jantar com sua família. Como dizer
não? Bacalhau. É noite cerrada quando finalmente entro na casa grande,
trago lanterna – luz elétrica, só tem no final da semana -,
prefiro bafio a um serão bafiento: ser bajulado, ouvindo louvar as
obrigações sociais da família, as benesses ininterruptas à
freguesia...
A
manhã me pegou desprevenido, instalara-me na biblioteca, espaço
intuído na escuridão, precisei de algum tempo para situar-me, ao
acordar sempre me esqueço: faltam os óculos, meu corpo trôpego
pelo sofá. Calma, é o primeiro dia, tem tempo. Olho o espaço onde
fui-me conhecendo, difuso em borrões, pego os óculos para ver, fora
da memória. Mas não sou mais criança, sei que heróis não
existem.
A
sabedoria vem com a idade, pode até ser, mas no corpo... tem a
traição da bondade, o castigo do contrário. Onde foi? Procuro o
espanto, a estante, o canto, o instante... se ainda houvesse... Não
importa, não importa mais, a fuga termina aqui. No princípio de
tudo: casa grande, biblioteca, memória.
No segundo dia veio a matrona, me disse: " Já lhe arranjei uma empregada, até parece brasileira", não liguei para o comentário: lhe
passei um cheque para a associação de amigos do museu de arte
sacra. Me explicou: " É conhecida da minha empregada, são vizinhas, vivem ambas na periferia... num daqueles bairros... são todos amigos e primos, não é?", me disse que a moça poderia vir toda a manhã e ficar até no final de tarde; passei outro cheque, para a comissão de festas dos amigos do museu
de arte sacra, a moça não trabalharia sábado e domingo.
Ela
estava na soleira da porta, olhos brilhando, franca na saudação
inicial. Cumpri minhas obrigações de patrão ordenador, tarefas e
necessidades, falando gélido; não alterou sua expressão empática,
a matrona afinal tinha razão, a moça parecia brasileira. No quarto
dia lhe falei dos livros, deviam ser limpos, um a um, de dois em dois
meses, ela arregalou seus olhos. Mais tarde, descobri... não era alfabetizada, estremeci.
M.
Lisboa: 2014
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