terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Geração de 70 - Primeira figura


Estás velho, sobram-te motivos para balanço, agradece ao mundo ter-te permitido voltar: as palavras da cigana; no momento da chegada, foras surpreendido à saída do aeroporto, olhos rasgados de azul cinzento, ela olhara-te as palmas para soltar a frase. Devolveste uma gargalhada e puxaste de uma nota, divertido com a perspicácia, mas ela recusou o dinheiro para te voltar a dizer o mesmo: sê grato.

- Por que é que não há fotografias da avó?
- Ela morreu antes de o seu avô ter vindo para Portugal.
- E como é que ela era?
- Uma senhora.

Talvez o meu destino fosse o ponto de partida, como um livro requisitado numa biblioteca – sai, comunica, volta à latência -, talvez... o ponto de partida fosse o meu destino. Tantos anos depois, sou o mesmo mas... ao contrário. A casa permanece como se soubesse que eu voltaria: o fantasma também. Tenho de escrever isto, o meu bloco? No carro... 
 
- Vai voltar para a metrópole? E as fazendas?
- Engoli o orgulho e negociei-as com ingleses.
- É uma pena...
- Está na hora de voltar à pátria, a capital precisa de homens como nós, eles que eduquem os selvagens.

A casa ficava sobranceira à praça da igreja, o outro exemplo arquitectónico do poder, autoridade e exemplo; reconstruída no último quartel do século XIX, eternamente nobre, era imponente. Referiam-se-lhe como “casa grande”, criança, pensavas que era chamada assim por causa do seu tamanho, entretanto cresceste. Não foste um jovem extrovertido, o estatuto privilegiado permitiu-te o ensino público... na universidade; antes disso, perceptores que veneravam o teu pai.

- São uns miseráveis, casas com chão de terra batida, nem sapatos usam...
- Que sentido terá o estudo para essas criaturas?
- Tem toda a razão, eu próprio me interrogo, que utilidade tem a instrução?
- Meu caro, convenhamos, é a sua profissão...
- Claro, claro... mas estou a referir-me à instrução pública, repare... se alguém nasce destinado a andar descalço... para quê mostrar-lhe sapatos?

A biblioteca nunca me intimidou. Os visitantes espantavam-se com a quantidade de livros – lombadas imensas, debruadas a ouro, impressas a negro –, dispostos em prateleiras, tocando o tecto. Inevitável a pergunta: para quê tanto livro?, consequente a explicação. O meu avô colecionara livros desde a infância, parte da biblioteca atravessara o Atlântico, fora famoso como fotógrafo e homem de letras.

- Quem é?
- É um fidalgo da capital.
- Quer o quê?
- Traz uma máquina, quer tirar fotografias.

As portas da biblioteca nunca estiveram fechadas, prolongavas-lhe o espaço em livros escondidos, para leres o proibido: a primeira vez? Inexistia essa memória, a rotina da escrita há muito suplantara a recordação, tornara-se uma espécie de impressão do vazio, entroncamento entre nada e coisa nenhuma. Sentias profundamente, no teu ego de escritor, a ausência desse episódio lapidar (decerto o fora).

- Não seja ridículo, a vida não se justifica na escrita de ficção, poderá sempre escrever as suas memórias. Mas primeiro terá de vivê-las. Nesta família temos responsabilidades maiores: a pátria não se conserva com romances e novelas. Seguirá a carreira militar.
- Mas...
- Como?

Chamava-se Rosa, eu só tinha olhos para ela mas... disfarçava. Isso mudou. Depois de ela partir, para longe e o meu coração, levou muito tempo, meses, quase um ano até perceber... a ausência de resposta às minhas cartas... não era um problema postal. Mas era um problema. A vergonha invadira o meu imaginário, destruíra as utopias. Nem uma palavra. A cabra. Deixou-me espaço para as suposições, inventei-lhe desculpas... percebi-me esquecido, não importante. Com o tempo, habituei-me, o embaraço passou: aprendi a golpear.

- As fotografias foram todas queimadas, porque falas nisso?
- O menino perguntou como era a avó... disse-lhe que era uma senhora.
- Mais bonita do que um sonho, uma visão, como canta a Amália...

Não escapaste ao redil da família, mesmo longe – hoje consegues admiti-lo, foste uma repetição actualizada: atenuada pelo exílio. A partida clandestina foi a tua frase não dita à imposição paterna, o argumento irrefutável contra a velha ordem, a quebra da assombração. A pena seria mais forte do que a espada. Não o voltaste a ver com vida, tão pouco lhe telefonaste ou escreveste, fora peremptório em considerar-te defunto. Quando ela te telefonou a anunciar o pai morto, almoçavas com os companheiros de exílio, aproximava-se o mês de Abril.

- Vais voltar para Portugal? É seguro?
- Engoli o orgulho e volto para casa da família.
- É uma pena...
- Está na hora de voltar à pátria, o país precisa de homens como nós, temos responsabilidades.

A família da ordem e nada de filhos, um casamento morno, distância e hábitos comuns: não queriamos ser como os outros. Quando a separação se tornou inevitável, veio o fantasma e culpei-a, dificultei-lhe a vida: as solidariedades masculinas, mesmo revolucionárias e progressistas, ajudaram. Depois do fim, a meia-idade. Integrei a sabedoria adquirida (as ingénuas abrem-se à poesia, as belas à compaixão, as tolas ao dinheiro) em noites insones, com as alcateias - restaurantes e bares, palcos e praças, camarins e camarotes, pensões e hotéis –, colinas acima e abaixo. Rodopiei. Cada vez mais sábio.

- Os meus pêsames, era uma verdadeira matriarca.
- Filho único, resta-me concordar, padre.
- Uma senhora de respeito e muito devota, contribuía religiosamente para a paróquia.
- Deus a tenha em descanso.

Desconhecias a divisão. O empreiteiro confirmara-te a sua descoberta, anos atrás, numas obras encomendadas por teu pai mas como, uma semana após o início da empreitada, ele falecera e tua mãe se recusara a financiar a obra, optara-se pelo emparedamento em estuque: a divisão tornara-se fantasma. A morte dela incentivara-te a descobrir o outro lado: quando desemparedaram o quarto, fizeste questão em estar presente; mal o pó branco assentara surgira o espaço, o espanto também: pasmados. Os trabalhadores verbalizaram, em criativo vernáculo, a admiração pelos frescos nas paredes. Tu nem articulavas: sem léxico ou sintaxe.

Ontem não escrevi, nem sequer tentei, tinha a cabeça presa às realidades... além da parede falsa... no espaço misterioso, uma mesa comprida, nove cadeiras, uma série de livros no tampo. O candelabro. Uma inusitada cama, na parede do fundo, camadas imensas de pó: sobre tudo. Não reparei com muita atenção, tal como os homens ficaram a olhar os frescos, boca caída e olhos arregalados, sem compreenderem os significados, impressionados pela grafia, assim fiquei eu. Corpos nús. O imaginário império lusitano numa orgia de formas e cores.

  1. Lisboa: 2014

    Particularidade em jazigo no Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

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