Estás
velho, sobram-te motivos para balanço, agradece ao mundo ter-te
permitido voltar: as palavras da cigana; no momento da chegada, foras
surpreendido à saída do aeroporto, olhos rasgados de azul cinzento,
ela olhara-te as palmas para soltar a frase. Devolveste uma
gargalhada e puxaste de uma nota, divertido com a perspicácia, mas
ela recusou o dinheiro para te voltar a dizer o mesmo: sê grato.
- Por
que é que não há fotografias da avó?
- Ela
morreu antes de o seu avô ter vindo para Portugal.
- E
como é que ela era?
- Uma
senhora.
Talvez
o meu destino fosse o ponto de partida, como um livro requisitado
numa biblioteca – sai, comunica, volta à latência -, talvez... o
ponto de partida fosse o meu destino. Tantos anos depois, sou o mesmo
mas... ao contrário. A casa permanece como se soubesse que eu
voltaria: o fantasma também. Tenho de escrever isto, o meu bloco? No
carro...
- Vai
voltar para a metrópole? E as fazendas?
- Engoli
o orgulho e negociei-as com ingleses.
- É
uma pena...
- Está
na hora de voltar à pátria, a capital precisa de homens como nós,
eles que eduquem os selvagens.
A
casa ficava sobranceira à praça da igreja, o outro exemplo
arquitectónico do poder, autoridade e exemplo; reconstruída no
último quartel do século XIX, eternamente nobre, era imponente.
Referiam-se-lhe como “casa grande”, criança, pensavas que era
chamada assim por causa do seu tamanho, entretanto cresceste. Não
foste um jovem extrovertido, o estatuto privilegiado permitiu-te o
ensino público... na universidade; antes disso, perceptores que
veneravam o teu pai.
- São
uns miseráveis, casas com chão de terra batida, nem sapatos
usam...
- Que
sentido terá o estudo para essas criaturas?
- Tem
toda a razão, eu próprio me interrogo, que utilidade tem a
instrução?
- Meu
caro, convenhamos, é a sua profissão...
- Claro,
claro... mas estou a referir-me à instrução pública, repare...
se alguém nasce destinado a andar descalço... para quê
mostrar-lhe sapatos?
A
biblioteca nunca me intimidou. Os visitantes espantavam-se com a
quantidade de livros – lombadas imensas, debruadas a ouro,
impressas a negro –, dispostos em prateleiras, tocando o tecto.
Inevitável a pergunta: para quê tanto livro?, consequente a
explicação. O meu avô colecionara livros desde a infância, parte
da biblioteca atravessara o Atlântico, fora famoso como fotógrafo e
homem de letras.
- Quem
é?
- É
um fidalgo da capital.
- Quer
o quê?
- Traz
uma máquina, quer tirar fotografias.
As
portas da biblioteca nunca estiveram fechadas, prolongavas-lhe o
espaço em livros escondidos, para leres o proibido: a primeira vez?
Inexistia essa memória, a rotina da escrita há muito suplantara a
recordação, tornara-se uma espécie de impressão do vazio,
entroncamento entre nada e coisa nenhuma. Sentias profundamente, no
teu ego de escritor, a ausência desse episódio lapidar (decerto o
fora).
- Não
seja ridículo, a vida não se justifica na escrita de ficção,
poderá sempre escrever as suas memórias. Mas primeiro terá de
vivê-las. Nesta família temos responsabilidades maiores: a pátria
não se conserva com romances e novelas. Seguirá a carreira
militar.
- Mas...
- Como?
Chamava-se
Rosa, eu só tinha olhos para ela mas... disfarçava.
Isso mudou. Depois de
ela partir, para longe e o meu coração, levou muito tempo, meses,
quase um ano até perceber... a ausência de resposta às minhas
cartas... não era um problema postal. Mas era um problema. A
vergonha invadira o meu imaginário, destruíra as utopias. Nem uma palavra. A cabra.
Deixou-me espaço para as suposições, inventei-lhe desculpas...
percebi-me esquecido, não importante. Com o tempo, habituei-me, o
embaraço passou: aprendi a golpear.
- As
fotografias foram todas queimadas, porque falas nisso?
- O
menino perguntou como era a avó... disse-lhe que era uma senhora.
- Mais
bonita do que um sonho, uma visão, como canta a Amália...
Não
escapaste ao redil da família, mesmo longe – hoje consegues
admiti-lo, foste uma repetição actualizada: atenuada pelo exílio.
A partida clandestina foi a tua frase não dita à imposição
paterna, o argumento irrefutável contra a velha ordem, a quebra da
assombração. A pena seria mais forte do que a espada. Não o
voltaste a ver com vida, tão pouco lhe telefonaste ou escreveste,
fora peremptório em considerar-te defunto. Quando ela te telefonou a
anunciar o pai morto, almoçavas com os companheiros de exílio,
aproximava-se o mês de Abril.
- Vais
voltar para Portugal? É seguro?
- Engoli
o orgulho e volto para casa da família.
- É
uma pena...
- Está
na hora de voltar à pátria, o país precisa de homens como nós,
temos responsabilidades.
A
família da ordem e nada de filhos, um casamento morno, distância e
hábitos comuns: não queriamos ser como os outros. Quando a
separação se tornou inevitável, veio o
fantasma e culpei-a, dificultei-lhe a vida: as solidariedades
masculinas, mesmo revolucionárias e progressistas, ajudaram. Depois
do fim, a meia-idade. Integrei a sabedoria adquirida (as ingénuas
abrem-se à poesia, as belas à compaixão, as tolas ao dinheiro) em
noites insones, com as alcateias - restaurantes e bares, palcos e
praças, camarins e camarotes, pensões e hotéis –, colinas acima
e abaixo. Rodopiei. Cada vez mais sábio.
- Os
meus pêsames, era uma verdadeira matriarca.
- Filho
único, resta-me concordar, padre.
- Uma
senhora de respeito e muito devota, contribuía religiosamente para
a paróquia.
- Deus a tenha em descanso.
Desconhecias a divisão. O empreiteiro confirmara-te a sua
descoberta, anos atrás, numas obras encomendadas por teu pai mas
como, uma semana após o início da empreitada, ele falecera e tua
mãe se recusara a financiar a obra, optara-se pelo emparedamento em
estuque: a divisão tornara-se fantasma. A morte dela incentivara-te
a descobrir o outro lado: quando desemparedaram o quarto, fizeste
questão em estar presente; mal o pó branco assentara surgira o
espaço, o espanto também: pasmados. Os trabalhadores verbalizaram,
em criativo vernáculo, a admiração pelos frescos nas paredes. Tu
nem articulavas: sem léxico ou sintaxe.
Ontem
não escrevi, nem sequer tentei, tinha a cabeça presa às
realidades... além da parede falsa... no espaço misterioso, uma mesa
comprida, nove cadeiras, uma série de livros no tampo. O candelabro.
Uma inusitada cama, na parede do fundo, camadas imensas de pó: sobre
tudo. Não reparei com muita atenção, tal como os homens ficaram a olhar os frescos, boca caída e olhos
arregalados, sem compreenderem os significados, impressionados pela
grafia, assim fiquei eu. Corpos nús. O imaginário império lusitano numa orgia de
formas e cores.
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