quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Geração de 70 - A criança (ainda)

A caridade municipal era o seu espaço de liberdade, as regras eram simples e muito claras, a ordem confortava-as, permitia-lhes ascender a outra condição: podiam ser sublimes. Conceição, nome da chefe, via em seu nome o destino: cumpri-lo-ia. As estrelas nos mantos sempre a fascinaram, miúda era aí onde prendia o olhar, na missa, procurando mensagens: Maria, uma técnica. Aos dezasseis anos, meses depois de ter ido servir para a cidade, nomeara uma estrela. Nunca mais tricotara. Fátima, outra técnica, também conseguira a sua vida, lutara por ela com fé, a necessária para nunca mais ter fome.

- Ela dizia que o filho não se lembrava de nada...
- Mesmo que se lembre... ninguém o ouvirá.
- Os outros vão ser institucionalizados.

A criança percebeu o perigo, o olhar daquelas três mulheres, não havia margem para dúvidas, tinha a violência do ódio. Tentou voltar-se para a escadaria mas uma delas prendeu-lhe os braços, junto ao tronco. O seu corpo tremia apavorado, olhou-te numa interrogação: esboçaste um sorriso. Conceição aproximou-se, colocou uma mordaça na criança, amarrou-lhe os pulsos, as outras duas – Maria e Fátima, ataram-lhe as pernas. O silêncio pesava tanto como a noite. Não te mexeste. Olhaste-as, carregando os olhos do inadaptado, emudeceste. Mandaram-te embora.

- Tem toda a razão, é uma questão bastante pertinente e deve, sem dúvida, integrar o nosso programa eleitoral.
- Até por uma questão de salubridade, aquela gente vive em condições miseráveis, não se trata apenas de requalificar a zona, a nossa preocupação também são as pessoas.
- Claro, são bairros auto-construídos e...
- Como?
- Bairros... construções ilegais...
- Precisamente, caro amigo, precisamente.

Voltaste a descer a escadaria, tal como a subiras, oito a oito, pausa para oração. E aconteceu outra vez. A infalibilidade da visão repetida. A justiça do combate infinito. Cegaste com a luz. A invisibilidade do propósito. Atordoou-te o brilho. A inevitabilidade da batalha perpétua. Voltaste ao corpo para seres a mesma coisa. Abriste os olhos e estavas, de novo, na praça com a criança segurando-te a mão.

- Podemos ir comer um gelado?

M. Lisboa: 2014

Particularidade em jazigo no Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

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