A
caridade municipal era o seu espaço de liberdade, as regras eram
simples e muito claras, a
ordem confortava-as, permitia-lhes ascender a outra condição:
podiam ser sublimes. Conceição, nome da chefe, via em seu nome o
destino: cumpri-lo-ia. As estrelas nos mantos sempre a fascinaram,
miúda era aí onde prendia o olhar, na missa, procurando mensagens:
Maria, uma técnica. Aos dezasseis anos, meses depois de ter ido
servir para a cidade, nomeara uma estrela. Nunca mais tricotara.
Fátima, outra técnica, também conseguira a sua vida, lutara por
ela com fé, a necessária para nunca mais ter fome.
- Ela dizia que o
filho não se lembrava de nada...
- Mesmo que se
lembre... ninguém o ouvirá.
- Os outros vão ser
institucionalizados.
A
criança
percebeu o perigo, o olhar daquelas três mulheres, não havia margem
para dúvidas, tinha a violência do ódio. Tentou voltar-se para a
escadaria mas uma delas prendeu-lhe os braços, junto ao tronco. O
seu corpo tremia apavorado, olhou-te numa interrogação: esboçaste
um sorriso. Conceição aproximou-se, colocou uma mordaça na
criança, amarrou-lhe os pulsos, as outras duas – Maria e Fátima,
ataram-lhe as pernas. O silêncio pesava tanto como a noite. Não te
mexeste. Olhaste-as, carregando os olhos do inadaptado, emudeceste.
Mandaram-te embora.
- Tem
toda a razão, é uma questão bastante pertinente e deve, sem
dúvida, integrar o nosso programa eleitoral.
- Até
por uma questão de salubridade, aquela gente vive em condições
miseráveis, não se trata apenas de requalificar a zona, a nossa
preocupação também são as pessoas.
- Claro,
são bairros auto-construídos e...
- Como?
- Bairros... construções ilegais...
- Precisamente,
caro amigo, precisamente.
Voltaste
a descer a escadaria, tal como a subiras, oito a oito, pausa para
oração. E aconteceu outra vez. A infalibilidade da visão repetida.
A justiça do combate infinito. Cegaste com a luz. A invisibilidade
do propósito. Atordoou-te o brilho. A inevitabilidade da batalha
perpétua. Voltaste ao corpo para seres a mesma coisa. Abriste os
olhos e estavas, de novo, na praça com a criança segurando-te a
mão.
-
Podemos ir comer um gelado?
M.
Lisboa: 2014
Particularidade em jazigo no Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor) |
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