O
Martim escreveu-me duas cartas, também me mandou uma fotografia, por
isso, a sua perda foi uma viuvez. Conhecerás o amargo do luto,
invariavelmente. Uma noite, estava deitada na cama, acabara de rezar
por uma orientação – um caminho, algo para preencher o vazio. Vi
aparecer o Martim, estava fardado e tinha uma barba comprida, envolto
numa luz baça. Falou-me, sem abrir a boca, consegui percebê-lo. No
dia seguinte, conheci o teu pai:
apresentou-se.
A minha família
concordou com a proposta de casamento, quando eu soube já era facto
consumado, seis meses depois. A boda teve convidados vindos de
Lisboa, familiares e membros do governo, outras chefias militares, os
corporativos industriais e todas as autoridades locais, religiosas ou
não. O teu pai impõe respeito, tu farás o mesmo.
Vais ser o nosso
princípe. Aquela tonta, vai perceber qual é o seu lugar, a querer
ser mais, a disputar-me o afeto. Os dias no Alentejo darão frutos.
Verás como é belo o montado, a Primavera preenche os campos. Os
sentidos. Vai deixar de ser a menina do papá.
Sou
a senhora da casa, tenho as chaves de
tudo, todos precisam de mim. Também sou invisível. Não preciso
de atenção para fazer o meu trabalho, tempo preenchido para o
movimento, rodopio pela normalidade, sã tradição. Sem sombras não
há luz, sem mim não há casa grande: só pedaços. Sou a cola
agregadora da ordem, a união submissa, flexível, subtilmente
impiedosa. Mãe. Só falhei com a tua irmã, estouvada pelos mimos,
cabeça de vento. O teu pai só caça na herdade: temos um acordo.
Foi numa manhã
clara e solarenga, tinha aberto as janelas do salão para arejar,
quando vi uma jovem ser posta fora do pátio, a barriga ovalada
baloiçando. O teu pai arrastou-a até ao portão e ameaçou soltar
os cães. Depois entrou dentro de casa, nem me deixou fechar as
janelas. Não importa. Tu existes. O varão. A mulher nasceu para
sofrer, redentora de pecados. A tua irmã não é diferente. Vai
passar pelo mesmo. É da nossa condição.
Tenho
fé. Não sinto dores. Sou a senhora da casa,
tenho tudo, todos precisam de mim. A dor é invisível. Não preciso
de atenção para cumprir o meu destino, tens-me o tempo preenchido:
sem movimento. Acredito. O jantar vai trazer-nos a normalidade,
tradição. Importa escolher o nome. Amanhã o médico vem. Sem
imobilidade não há movimento. Vida. Martim, hoje vou pronunciar-me, propôr Martim. Amanhã vem o médico.
M.
Lisboa: 2014
Particularidade em jazigo - cidade de Lisboa (fotografia dulcecor) |
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