sábado, 6 de dezembro de 2014

Geração de 70 - Segunda figura (ainda)


O Martim escreveu-me duas cartas, também me mandou uma fotografia, por isso, a sua perda foi uma viuvez. Conhecerás o amargo do luto, invariavelmente. Uma noite, estava deitada na cama, acabara de rezar por uma orientação – um caminho, algo para preencher o vazio. Vi aparecer o Martim, estava fardado e tinha uma barba comprida, envolto numa luz baça. Falou-me, sem abrir a boca, consegui percebê-lo. No dia seguinte, conheci o teu pai: apresentou-se.

A minha família concordou com a proposta de casamento, quando eu soube já era facto consumado, seis meses depois. A boda teve convidados vindos de Lisboa, familiares e membros do governo, outras chefias militares, os corporativos industriais e todas as autoridades locais, religiosas ou não. O teu pai impõe respeito, tu farás o mesmo.

Vais ser o nosso princípe. Aquela tonta, vai perceber qual é o seu lugar, a querer ser mais, a disputar-me o afeto. Os dias no Alentejo darão frutos. Verás como é belo o montado, a Primavera preenche os campos. Os sentidos. Vai deixar de ser a menina do papá.

Sou a senhora da casa, tenho as chaves de tudo, todos precisam de mim. Também sou invisível. Não preciso de atenção para fazer o meu trabalho, tempo preenchido para o movimento, rodopio pela normalidade, sã tradição. Sem sombras não há luz, sem mim não há casa grande: só pedaços. Sou a cola agregadora da ordem, a união submissa, flexível, subtilmente impiedosa. Mãe. Só falhei com a tua irmã, estouvada pelos mimos, cabeça de vento. O teu pai só caça na herdade: temos um acordo.

Foi numa manhã clara e solarenga, tinha aberto as janelas do salão para arejar, quando vi uma jovem ser posta fora do pátio, a barriga ovalada baloiçando. O teu pai arrastou-a até ao portão e ameaçou soltar os cães. Depois entrou dentro de casa, nem me deixou fechar as janelas. Não importa. Tu existes. O varão. A mulher nasceu para sofrer, redentora de pecados. A tua irmã não é diferente. Vai passar pelo mesmo. É da nossa condição.

Tenho fé. Não sinto dores. Sou a senhora da casa, tenho tudo, todos precisam de mim. A dor é invisível. Não preciso de atenção para cumprir o meu destino, tens-me o tempo preenchido: sem movimento. Acredito. O jantar vai trazer-nos a normalidade, tradição. Importa escolher o nome. Amanhã o médico vem. Sem imobilidade não há movimento. Vida. Martim, hoje vou pronunciar-me, propôr Martim. Amanhã vem o médico.

M. Lisboa: 2014

Particularidade em jazigo - cidade de Lisboa (fotografia dulcecor)

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