Não
regressei a casa depois da oficialização do divórcio, alguns
amigos e familiares, os poucos que a tal se atreveram,
transportaram-me os pertences permitidos para uma pensão – vivi
meses num quarto atafulhado. Fui obrigada a recorrer à caridade,
engoli lágrimas e orgulho para me passar a incluir na fila matinal,
terças-feiras, à porta da paróquia. A minha família, movida pela
sociedade e a tradição, limpara a consciência do meu futuro,
abandonara-me gradualmente, sossegada pela sorte que me cabia: eu
carregava a cruz que o Senhor me destinava.
- A
senhora também vem aqui?
- Preciso
de comer.
- Tem
um marido rico...
- Não
sou um saco de pancada, divorciei-me.
- Por
isso é que está aqui... só tem o seu estômago para alimentar...
Salvou-me
a escrita compulsiva, por ser concentrada, longe de todo o antes:
escrevi para me sentir pessoa, viva a sangrar por dentro, mascarada
ser normal numa vida diferente. O meu amigo editor justificou a
impossibilidade da edição, fracasso anunciado, e submeti-me a outro
exílio, dentro da minha cidade, em passeios pelas ruelas, leituras
em jardins e praças. Surgiram algumas traduções de poesia sueca,
recomecei a trabalhar. Retomei a escrita para me despedir da
ingenuidade e da pensão, para arrumar as ilusões dos sonhos
escondidos e as idas à caridade; escrevi para me refazer, decidida a
ser suavemente feroz, impiedosa.
- Numa pensão do Intendente e...
- É melhor reunirmos cá em casa, almoças connosco, traz o manuscrito.
Sentada
ao centro da mesa, sob o palco, percebi como a sala estava cheia,
amigos e amigas, colegas de trabalho, camaradas solidários e
respectivas esposas, simpatizantes e oscilatórios(as), escritores e
escritoras, narradores e narradoras, curiosos e curiosas, colunáveis,
críticos(as) profissionais e afins... sorri para celebrar o poder da
poesia, tinha um discurso ensaiado, politicamente correcta. As elites
culturais auto-designadas, atribuídas, revolucionárias, as contra,
as mais ou menos, as de coisa nenhuma, os intelectuais de cima,
baixo, esquerda, direita, rectaguarda e sentido proibido, o
mecenato... em filas sucessivas, acomodavam-se para o lançamento do
meu segundo livro.
- É
muito bom, consegues retratar na perfeição o quotidiano daquelas
mulheres...
- Vivi no meio delas, é natural.
- Não sejas modesta, a forma como descreves os detalhes mais intímos, a linguagem, a escrita na primeira pessoa, a forma em diário... quem lê sente-se na pele de uma delas. É brilhante.
- Vivi no meio delas, é natural.
- Não sejas modesta, a forma como descreves os detalhes mais intímos, a linguagem, a escrita na primeira pessoa, a forma em diário... quem lê sente-se na pele de uma delas. É brilhante.
O
profissional encarregue da apresentação do livro, professor
universitário na área das ciências sociais e humanas, fê-lo, com
uma elegância discreta, poupando nas emoções. Enquanto a voz
(preparada) se espalhava pela sala, vi-o: o pintor do Índico. Fiz a
devida apresentação, assinei exemplares até chegar a sua vez – o
último, os sorrisos impediram-nos a concentração na sociabilidade
necessária, valeu-nos o esforço. Nos dias seguintes, a cidade como
mapa, mostrámo-nos um ao outro pelas ruas, contámo-nos caminhos
percorridos, dentro e fora: o mar fora uma ilusão igual à da
utopia. O tempo era outra.
- A
senhora paga-me?
- Compro-te
a passagem para França, não me disseste que tens lá família?
- São
coisas que me passam pela cabeça... escrevo-as quando venho dormir,
às vezes...
- ...
nem te lembras do que escreveste no dia anterior?
- Sim,
é isso... mas tem dinheiro para me pagar?
- Daqui
a dois meses, se me deixares levar os cadernos, estás a voar para
Paris.
As
primeiras ameaças aconteceram de madrugada, o telefone tocava e
atendias para ouvires uma voz rouca – agressiva, ofegante – a
proferir barbaridades; passaste a desligar o aparelho durante a
noite, resultou temporariamente, a decência exigia acção e foste
registar queixa na esquadra. Os telefonemas terminaram: começaram as
cartas, vinham com o jornal, quando resolveste contar-lhe... já
tinhas entregue uma dúzia.
- Por
que não me disseste mais cedo?
- Não
mudaria nada, não quis preocupar-te.
- Por
que me contas agora?
- Tenho
ido à polícia, é melhor saberes por mim.
- Querida,
esses são os piores...
Moçambique.
Ele queria levar-me consigo. Disse-lhe que ia pensar. O que me
prendia? Podia escrever outras realidades, vivê-las. Por que não?
Viveria numa casa que ele mandaria construir, se nenhuma outra me
agradasse, teria a minha independência. Mas teria de respeitar a
cultura tradicional, acima de tudo: cumprir o meu papel. Não
estaríamos em solo europeu, explicou-me. Mas a terra é uma só,
disse eu, são palavras – respondeu-me, olhos profundos,
identidade. Primeiro, respeitaria os seus antepassados, insistiu.
Quais, perguntei eu, tu não entendes – replicou, mitos
subterrâneos, identidade. Eu decidi ficar.
A
última carta chegou com o jornal da manhã. Abriste o envelope,
leste a frase de sempre, rasgaste-o e à carta: deitaste ambos no
lixo. Ele desceu para o pequeno-almoço, beijo na testa, tu sorriste,
para quê preocupá-lo? As cartas eram uma brincadeira de mau gosto,
dissera-te o chefe da polícia, nada mais: não há razão para
ralações, as celebridades já deviam contar com isso. Esteve no
funeral, um mês depois, fizeste-te muda aos seus pêsames - tinhas
desculpa na dor de viúva, são os piores... lembraste-te. Mas não
podias gritar. Suportaste os assassinos fardados e os mandantes
engalanados, diziam-te, um pintor tão famoso, o orgulho da pátria:
a voz iluminada do exílio, clamavam-te, o traço luminoso da
revolução.
- Por
que não ligou mais cedo?
- Não
tinha a confirmação da identidade.
- E
agora?
- Não
há dúvidas, fui à polícia, está feito. O velho não uiva mais
nos nossos ouvidos, acabaram aquelas ladaínhas do antigamente.
- Tudo
tem o seu tempo.
- Este
é o nosso, agora é o nosso tempo.
- Outros
tempos virão.
- O meu é que
importa.
- O
nosso.
- Foi
isso que eu disse.
Descobriste
os primeiros poemas, estava ele em viagem pela Europa, escondidos no
interior de um livro. Obra estrangeira, não fora a lombada colorida,
nunca lhe terias pegado. Mas as folhas, tom rosa cronológico,
espalharam-se pelo chão. Viste a mancha gráfica fluída, uma
caligrafia apertada e esguia, nervosa. Era português. O amor pelos
poemas. Dela. Nenhuma fotografia, nenhuma imagem: sossegaste e
voltaste a guardar a poesia no livro. Esqueceste-a.
No
Cais das Colunas, as minhas mãos repousaram sobre o jornal, inspirei
a brisa fresca do azul Lisboa: o pintor morrera. Lembrei-me
imediatamente da música, já passara tanto tempo... estamos todos
mortos, pensei, uns sabem e outros não. Não senti culpa: fora a
descendentes dos seus antepassados que eu passara as informações.
M.
Lisboa: 2014
Particularidade em jazigo no Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor) |
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