terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Geração de 70 - O grupo (ainda)

Não regressei a casa depois da oficialização do divórcio, alguns amigos e familiares, os poucos que a tal se atreveram, transportaram-me os pertences permitidos para uma pensão – vivi meses num quarto atafulhado. Fui obrigada a recorrer à caridade, engoli lágrimas e orgulho para me passar a incluir na fila matinal, terças-feiras, à porta da paróquia. A minha família, movida pela sociedade e a tradição, limpara a consciência do meu futuro, abandonara-me gradualmente, sossegada pela sorte que me cabia: eu carregava a cruz que o Senhor me destinava.

- A senhora também vem aqui?
- Preciso de comer.
- Tem um marido rico...
- Não sou um saco de pancada, divorciei-me.
- Por isso é que está aqui... só tem o seu estômago para alimentar...

Salvou-me a escrita compulsiva, por ser concentrada, longe de todo o antes: escrevi para me sentir pessoa, viva a sangrar por dentro, mascarada ser normal numa vida diferente. O meu amigo editor justificou a impossibilidade da edição, fracasso anunciado, e submeti-me a outro exílio, dentro da minha cidade, em passeios pelas ruelas, leituras em jardins e praças. Surgiram algumas traduções de poesia sueca, recomecei a trabalhar. Retomei a escrita para me despedir da ingenuidade e da pensão, para arrumar as ilusões dos sonhos escondidos e as idas à caridade; escrevi para me refazer, decidida a ser suavemente feroz, impiedosa. 
 
- Estás a viver onde?
- Numa pensão do Intendente e...
- É melhor reunirmos cá em casa, almoças connosco, traz o manuscrito.

Sentada ao centro da mesa, sob o palco, percebi como a sala estava cheia, amigos e amigas, colegas de trabalho, camaradas solidários e respectivas esposas, simpatizantes e oscilatórios(as), escritores e escritoras, narradores e narradoras, curiosos e curiosas, colunáveis, críticos(as) profissionais e afins... sorri para celebrar o poder da poesia, tinha um discurso ensaiado, politicamente correcta. As elites culturais auto-designadas, atribuídas, revolucionárias, as contra, as mais ou menos, as de coisa nenhuma, os intelectuais de cima, baixo, esquerda, direita, rectaguarda e sentido proibido, o mecenato... em filas sucessivas, acomodavam-se para o lançamento do meu segundo livro.

- É muito bom, consegues retratar na perfeição o quotidiano daquelas mulheres...
- Vivi no meio delas, é natural.
- Não sejas modesta, a forma como descreves os detalhes mais intímos, a linguagem, a escrita na primeira pessoa, a forma em diário... quem lê sente-se na pele de uma delas. É brilhante.

O profissional encarregue da apresentação do livro, professor universitário na área das ciências sociais e humanas, fê-lo, com uma elegância discreta, poupando nas emoções. Enquanto a voz (preparada) se espalhava pela sala, vi-o: o pintor do Índico. Fiz a devida apresentação, assinei exemplares até chegar a sua vez – o último, os sorrisos impediram-nos a concentração na sociabilidade necessária, valeu-nos o esforço. Nos dias seguintes, a cidade como mapa, mostrámo-nos um ao outro pelas ruas, contámo-nos caminhos percorridos, dentro e fora: o mar fora uma ilusão igual à da utopia. O tempo era outra.

- A senhora paga-me?
- Compro-te a passagem para França, não me disseste que tens lá família?
- São coisas que me passam pela cabeça... escrevo-as quando venho dormir, às vezes...
- ... nem te lembras do que escreveste no dia anterior?
- Sim, é isso... mas tem dinheiro para me pagar?
- Daqui a dois meses, se me deixares levar os cadernos, estás a voar para Paris.

As primeiras ameaças aconteceram de madrugada, o telefone tocava e atendias para ouvires uma voz rouca – agressiva, ofegante – a proferir barbaridades; passaste a desligar o aparelho durante a noite, resultou temporariamente, a decência exigia acção e foste registar queixa na esquadra. Os telefonemas terminaram: começaram as cartas, vinham com o jornal, quando resolveste contar-lhe... já tinhas entregue uma dúzia.

- Por que não me disseste mais cedo?
- Não mudaria nada, não quis preocupar-te.
- Por que me contas agora?
- Tenho ido à polícia, é melhor saberes por mim.
- Querida, esses são os piores...

Moçambique. Ele queria levar-me consigo. Disse-lhe que ia pensar. O que me prendia? Podia escrever outras realidades, vivê-las. Por que não? Viveria numa casa que ele mandaria construir, se nenhuma outra me agradasse, teria a minha independência. Mas teria de respeitar a cultura tradicional, acima de tudo: cumprir o meu papel. Não estaríamos em solo europeu, explicou-me. Mas a terra é uma só, disse eu, são palavras – respondeu-me, olhos profundos, identidade. Primeiro, respeitaria os seus antepassados, insistiu. Quais, perguntei eu, tu não entendes – replicou, mitos subterrâneos, identidade. Eu decidi ficar.

A última carta chegou com o jornal da manhã. Abriste o envelope, leste a frase de sempre, rasgaste-o e à carta: deitaste ambos no lixo. Ele desceu para o pequeno-almoço, beijo na testa, tu sorriste, para quê preocupá-lo? As cartas eram uma brincadeira de mau gosto, dissera-te o chefe da polícia, nada mais: não há razão para ralações, as celebridades já deviam contar com isso. Esteve no funeral, um mês depois, fizeste-te muda aos seus pêsames - tinhas desculpa na dor de viúva, são os piores... lembraste-te. Mas não podias gritar. Suportaste os assassinos fardados e os mandantes engalanados, diziam-te, um pintor tão famoso, o orgulho da pátria: a voz iluminada do exílio, clamavam-te, o traço luminoso da revolução.

- Por que não ligou mais cedo?
- Não tinha a confirmação da identidade.
- E agora?
- Não há dúvidas, fui à polícia, está feito. O velho não uiva mais nos nossos ouvidos, acabaram aquelas ladaínhas do antigamente.
- Tudo tem o seu tempo.
- Este é o nosso, agora é o nosso tempo.
- Outros tempos virão.
- O meu é que importa.
- O nosso.
- Foi isso que eu disse.

Descobriste os primeiros poemas, estava ele em viagem pela Europa, escondidos no interior de um livro. Obra estrangeira, não fora a lombada colorida, nunca lhe terias pegado. Mas as folhas, tom rosa cronológico, espalharam-se pelo chão. Viste a mancha gráfica fluída, uma caligrafia apertada e esguia, nervosa. Era português. O amor pelos poemas. Dela. Nenhuma fotografia, nenhuma imagem: sossegaste e voltaste a guardar a poesia no livro. Esqueceste-a.

No Cais das Colunas, as minhas mãos repousaram sobre o jornal, inspirei a brisa fresca do azul Lisboa: o pintor morrera. Lembrei-me imediatamente da música, já passara tanto tempo... estamos todos mortos, pensei, uns sabem e outros não. Não senti culpa: fora a descendentes dos seus antepassados que eu passara as informações.

M. Lisboa: 2014

Particularidade em jazigo no Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

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