segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Geração de 70 - A morte

A biblioteca era espaçosa o suficiente para que todos estivessem sentados e confortáveis; a mesa comprida tinha, no topo, o responsável pela reunião; do lado esquerdo, acompanhadas pelo provedor da misericórdia, também padre da freguesia, estavam as duas sobrinhas da falecida, vindas há uma semana do estrangeiro e entretanto ocupadas em descobrir as raízes; ao seu lado, mais a fascinante secretária, o presidente da junta, homem baixo - calvo e apagado, encantos ocultos -, intuindo ganhos políticos, calculando importâncias, cogitando estratégias.

O lado direito da mesa estava ocupado, primeiro, por um funcionário do partido a que a falecida pertencera, jovem de barba cerrada e óculos graduados; depois, a empregada doméstica de há trinta anos, agarrada à mão do filho, advogado recém-formado; por fim, o casal de empregados, mais que entrados na idade, à beira da reforma e intimidados pela mesa: não era hábito partilharem-na com senhores e senhoras.

O homem do topo, distinto na forma e nos gestos, esperou o relógio bater o meio-dia: através das janelas abertas para a praça, chegaram as badaladas da igreja à biblioteca; pigarreou, um momento de silêncio, prolongou o suspenso sorrindo. Rasgou o lacre do sobrescrito, retirou folhas dobradas do seu interior: o testamento. Leu pausadamente.

A casa grande e a tua cidade. Tentaste explicar sem sucesso, às tuas colegas do magistério, a importância daqueles espaços na tua rotina diária: sentias-lhes falta. O rio não chegava. Querias o estuário. Mas ainda não, ainda não: faltava pouco. Sobre as manhãs claras, segredo. Absoluto. Aprenderas a sua importância, numas férias de Verão, quando a primeira bofetada paterna te atingira, responderas indignada às perguntas sobre determinadas amizades em Coimbra, também compreenderas o alcance e a justiça da luta. Não te deixaste intimidar, acautelaste pistas e provas, mas quebram-se laços: denunciada, interrogada, solta por falta de provas, vigiada. Depois veio Abril.

- Uma benemérita, santa senhora!, sempre a pensar nas necessidades dos outros, no seu bem estar, uma verdadeira alma caridosa, pronta a estender a mão a quem precisa...
- Uma camarada excepcional, durante a ditadura fascista trabalhou na clandestinidade, distribuiu o jornal do partido, colaborou de forma activa na luta, por um amanhã diferente, por melhores condições de vida.
- Não estamos num comício...
- Nem na igreja...
- A última frase do testamento, penso eu, é reveladora da vontade da falecida.
- As anteriores não contam, é? Os parágrafos onde ela manifesta, de forma explícita, que são os ideais do partido o motor para a doação...
- Deixe-se lá dessas coisas, você é um rapazinho. Nem viveu a revolução, mesmo que a tivesse vivido... já foi há tanto tempo, ninguém se lembra.
-... 
- Além disso, falar em revolução... não sei para que vos servem as universidades...
- Inacreditável, a forma ligeira como suprime momentos históricos... 
- Tenho mais de duas mil razões para o fazer...
- Francamente...
- Meus senhores, por favor, alguma assertividade...

Reconheceste-lhe a voz, nunca a esquecerias, mas obrigaste-te a não olhar, mantiveste a cabeça baixa – concentrada na ementa. O inspector. O teu corpo, estranhaste, não respondeu ao estímulo (na prisão, bastava seres chamada, era o terror), permaneceste fixa no catálogo alimentar, ele e a companhia, uma mulher – perfume forte, ocuparam a mesa atrás de ti. Dois anos, passaram dois anos e... vem jantar fora, seduz. Comeste devagar, em silêncio, para seres escuta ativa, clandestina. Foi fácil elaborares um plano.

- Eu... estou sem palavras, é uma honra imensa para a freguesia, como seu presidente... o imóvel está classificado, não é verdade? 
- Sim, faz parte do património da cidade, tem valor concelhio. 
- Graças a Deus, a casa grande sempre foi importante. 
- Sobretudo do ponto de vista jesuíta... 
- Ouça lá... 
- Meus senhores, o motivo da nossa reunião é cumprir com os desejos da falecida, o texto é um pouco dúbio, é certo, mas não estamos aqui para discutir os pontos de vista, ou os ideais de cada um. Aliás, não estamos aqui, sequer, para discutir.

Compraste uma peruca. Aprendeste a dançar rumbas e boleros. Tango. O inspector convidou-te para jantar, dois meses depois. Finda a refeição e já no bar dançante, repleto de funcionários públicos sedentos de adrenalina, comprovaste o esperado: era um marialva urbano, insignificante, um misógeno quarentão... um sádico a quem o regime dera carta branca. Adaptara-se: deixara crescer a barba e o cabelo, aprendera a vomitar teses democratas, apregoava a moderação conciliatória, unidade. Insinuara-se enquanto dançavam: já o esperavas. Em casa dele, depois de o teres manietado – os perversos supõem, quase sempre, cumplicidade -, surpreendeste-o. Justiça.

- Também há a questão dos terrenos junto da Estrada Militar...
- A falecida é bastante clara na sua resolução, devem ser doados às comunidades que habitam os bairros.
- São terrenos bastante valiosos...

  1. Lisboa: 2014

    Particularidade em jazigo no Cemitério dos Prazeres - (fotografia: dulcecor)



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