A
biblioteca era espaçosa o suficiente para que todos estivessem
sentados e confortáveis; a mesa comprida tinha, no topo, o
responsável pela reunião; do lado esquerdo, acompanhadas pelo
provedor da misericórdia, também padre da freguesia, estavam as
duas sobrinhas da falecida, vindas há uma semana do estrangeiro e
entretanto ocupadas em descobrir as raízes; ao seu lado, mais a
fascinante secretária, o presidente da junta, homem baixo - calvo e
apagado, encantos ocultos -, intuindo ganhos políticos, calculando
importâncias, cogitando estratégias.
O
lado direito da mesa estava ocupado, primeiro, por um funcionário do
partido a que a falecida pertencera, jovem de barba cerrada e óculos
graduados; depois, a empregada doméstica de há trinta anos,
agarrada à mão do filho, advogado recém-formado; por fim, o casal
de empregados, mais que entrados na idade, à beira da reforma e
intimidados pela mesa: não era hábito partilharem-na com senhores e
senhoras.
O
homem do topo, distinto na forma e nos gestos, esperou o relógio
bater o meio-dia: através das janelas abertas para a praça,
chegaram as badaladas da igreja à biblioteca; pigarreou, um momento
de silêncio, prolongou o suspenso sorrindo. Rasgou o lacre do
sobrescrito, retirou folhas dobradas do seu interior: o testamento.
Leu pausadamente.
A
casa grande e a tua cidade. Tentaste explicar sem sucesso, às tuas
colegas do magistério, a importância daqueles espaços na tua
rotina diária: sentias-lhes falta. O rio não chegava. Querias o
estuário. Mas ainda não, ainda não: faltava pouco. Sobre as manhãs
claras, segredo. Absoluto. Aprenderas a sua importância, numas
férias de Verão, quando a primeira bofetada paterna te atingira,
responderas indignada às perguntas sobre determinadas amizades em
Coimbra, também compreenderas o alcance e a justiça da luta. Não
te deixaste intimidar, acautelaste pistas e provas, mas quebram-se
laços: denunciada, interrogada, solta por falta de provas, vigiada.
Depois veio Abril.
-
Uma benemérita, santa senhora!, sempre a pensar nas necessidades dos
outros, no seu bem estar, uma verdadeira alma caridosa, pronta a
estender a mão a quem precisa...
-
Uma camarada excepcional, durante a ditadura fascista trabalhou na
clandestinidade, distribuiu o jornal do partido, colaborou de forma
activa na luta, por um amanhã diferente, por melhores condições de
vida.
-
Não estamos num comício...
-
Nem na igreja...
-
A última frase do testamento, penso eu, é reveladora da vontade da
falecida.
-
As anteriores não contam, é? Os parágrafos onde ela manifesta, de
forma explícita, que são os ideais do partido o motor para a
doação...
-
Deixe-se lá dessas coisas, você é um rapazinho. Nem viveu a
revolução, mesmo que a tivesse vivido... já foi há tanto tempo,
ninguém se lembra.
-...
- Além
disso, falar em revolução... não sei para que vos servem as
universidades...
- Inacreditável,
a forma ligeira como suprime momentos históricos...
- Tenho
mais de duas mil razões para o fazer...
- Francamente...
- Meus
senhores, por favor, alguma assertividade...
Reconheceste-lhe
a voz, nunca a esquecerias, mas obrigaste-te a não olhar, mantiveste
a cabeça baixa – concentrada na ementa. O inspector. O teu corpo,
estranhaste, não respondeu ao estímulo (na prisão, bastava seres
chamada, era o terror), permaneceste fixa no catálogo alimentar, ele
e a companhia, uma mulher – perfume forte, ocuparam a mesa atrás
de ti. Dois anos, passaram dois anos e... vem jantar fora, seduz.
Comeste devagar, em silêncio, para seres escuta ativa, clandestina.
Foi fácil elaborares um plano.
- Sim, faz parte do património da cidade, tem valor concelhio.
- Graças a Deus, a casa grande sempre foi importante.
- Sobretudo do ponto de vista jesuíta...
- Ouça lá...
- Meus senhores, o motivo da nossa reunião é cumprir com os desejos da falecida, o texto é um pouco dúbio, é certo, mas não estamos aqui para discutir os pontos de vista, ou os ideais de cada um. Aliás, não estamos aqui, sequer, para discutir.
Compraste
uma peruca. Aprendeste a dançar rumbas e boleros. Tango. O inspector
convidou-te para jantar, dois meses depois. Finda a refeição e já
no bar dançante, repleto de funcionários públicos sedentos de
adrenalina, comprovaste o esperado: era um marialva urbano,
insignificante, um misógeno quarentão... um sádico a quem o regime
dera carta branca. Adaptara-se: deixara crescer a barba e o cabelo,
aprendera a vomitar teses democratas, apregoava a moderação
conciliatória, unidade. Insinuara-se enquanto dançavam: já o
esperavas. Em casa dele, depois de o teres manietado – os perversos
supõem, quase sempre, cumplicidade -, surpreendeste-o. Justiça.
- Também
há a questão dos terrenos junto da Estrada Militar...
- A
falecida é bastante clara na sua resolução, devem ser doados às
comunidades que habitam os bairros.
- São
terrenos bastante valiosos...
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