Na
minha infância passei muito tempo numa casa como esta, também
tinha uma biblioteca com muitos livros, ficava longe da cidade, só
lá ia nas férias. Sempre gostei de ler. Li muito. Tens muita sorte,
vais poder ler todos estes livros e viajar sem... ler é como viajar,
não é? Criamos imagens daquilo que lemos, na nossa cabeça,
imaginamos – é uma palavra bonita. Este sempre foi o meu problema,
sabes? Não conseguir imaginar, não perceber beleza em tudo o que
existe... nas coisas pequenas sucedendo-se, no sempre construído à
nossa volta... mas eu não sabia. Primeiro, aprendi a ver com os
olhos dos outros: julgava serem os meus.
- São
uns selvagens...
- ...
- ...
revoltarem-se contra quem lhes faz bem, contra quem lhes traz a
civilização...
- E
se tivesse sido ao contrário?
- Ao
contrário?! O quê?
- Se
tivessem sido eles a ir para Portugal... a mãe não se revoltava?
- Cala-te
com essas conversas, rapaz, não sabes o que dizes. Isso faz algum
sentido?
No
mundo existe uma beleza quase invisível... alguns vêem, outros não
ultrapassam o aprendido e adquirido... são cegos de olhos abertos:
eu vi assim muito tempo. Tarde, percebi-me cego a ver maravilhas onde
muitos não vêem coisa nenhuma, precisei de atravessar o mar,
enlatado num navio, para saber. A beleza transparece, não se
consegue explicar, por que não existem línguas para expressá-la,
sensação muda de espanto, involuntária, suspende-nos: podem ser
minutos ou fracções de segundo, sentimo-la, podemos não a
compreender de imediato. Mas sentimo-la.
- A
guerra é sempre injusta, acontece assim... matamos e morremos.
- Mata
quem dispara arma, morre quem recebe bala: arma sem pessoa não
dispara.
Queria
viajar e suspender a universidade, escrever sobre o périplo, mas os
planos familiares eram outros; a responsabilidade, meu rapaz,
dizia-me o meu pai, a obrigação do nome... alistei-me como
voluntário para a guerra: xeque-mate. Não conhecia África, tenho
família é no outro lado do Atlântico, mas sabia-a da leitura dos
atlas, como esse, e das conversas dos amigos da família –
terratenentes e altas patentes. Estava convencido da justiça da minha
atitude, confrontava a autoridade paterna, para conquistar respeito.
Queria provar-lhe ser um homem, eu sabia tudo e podia decidir o meu
destino, ter razão. Não sabia nada da verdade sobre a guerra. Só
me importava partir e ser um herói.
A
viagem foi longa, observei e ouvi os outros, escrever tornou-se
rotina: ocupava-me em poemas embarcadiços, sossegado pela conversa
mansa dos oficiais e pela rotina diária, prolongamento do quartel
sob as ondas. Parágrafos, descrições e imagens literárias, não
me preparariam para o futuro; pensava ir viver uma campanha gloriosa,
recolher matéria de inspiração para um futuro romance, uma
aventura em África... não. Não foi nada disso.
Depressa
passei a incluir-me no grupo de sargentos que preferia o bar dos
praças, como escrevia muito, ganhei a alcunha de Camões: o poeta;
depois das primeiras operações... passei a escrever (e a beber)
compulsivamente: exorcizava-me. A guerra não é aventura. É sangue,
carne em pedaços, explosão, injustiça, acaso, sofrimento. Quem
imagina a guerra não diz. Morre muita gente. Morremos muitos.
Morremos todos: nós e eles. Quem imagina a guerra manda matar. Muita
gente acredita. Continuamos a matar. Morremos todos: nós e eles.
Escrevi
palavras terríveis, preferia não as ter vivido e não as ter
sentido, mas tornou-se uma obrigação: guardava-lhes as vidas no
papel, prendia-lhes as saudades, as esperanças e os medos, em azul
caneta. Naquela noite... esperámos a ordem para avançar com a
aurora, a operação fora ordenada pela hierarquia, como retaliação.
Não conseguiram defender-se. Quando o sol iluminou o lugar,
terminámos. Corpos, negros, mulatos e brancos. Mulheres. Crianças.
Deram-me uma medalha, nem consigo olhar para ela... não, não é uma
condecoração. Compraram-me o silêncio, ainda não compreendes,
pois não? Não faz mal. Foi isso, rapaz: compraram-me o silêncio.
Não
fiz nada sem autorização, cumpri ordens – digo isso, a mim
próprio, todos os dias. Estava a escrever, no hospital, quando o
tenente apareceu – conhecido da família, como o teu pai. Bastou-me
entregar-lhe os cadernos. A guerra não é honra. Eu não queria
voltar, queria escrever, deixei-me comprar: saí do mato,
colocaram-me numa vila. Passei a auxiliar a polícia militar,
escrevia relatórios, apenas isso, não assistia a interrogatórios
nem a depoimentos. O meu sentimento de culpa tinha estacionado,
convenci-me da neutralidade do meu serviço. Um dia, acordaram-me de
madrugada, era uma emergência: não pude recusar.
Foram
oito horas de interrogatório, um furriel mulato acusado de agitador,
quando começou a falar... mal lhe compreendia as palavras. Na
urgência seguinte, foi um tipógrafo. Depois uma professora primária
– Alva Luz, nunca esqueci a ironia do nome. A cor do sangue é
igual em todos, vermelho espesso que esguicha e fica nas paredes, cai
no chão. Também houve um padre protestante. Não deves estar a
perceber. Talvez não percebas nada do que digo: não importa, os
amigos também se fazem assim. Nas cumplicidades improváveis. No que
não entendemos. Um amigo não se escolhe, aprendi isso lá.
Vemos
morrer muita gente, ouvimos a morte de outros, bombas de napalm
rebentam no mato: queimam tudo. Como eu, outros vivos já estiveram
mortos, ao caminhar na terra incendiada... o silêncio, ficamos em
silêncio, antes e depois. Calamos para tudo terminar mais depressa,
fechamos os olhos aos crimes, somos militares. Voltamos sem ser
inteiros e o nosso medo desaparece. Mas continuamos calados. Quem
imagina a guerra não sabe de nós por que não quer saber. Eu pareço
inteiro. Talvez seja. Ou possa ser. Quem imagina a guerra não fala.
Nós não falamos. Quem nos conhece, se falarmos, nunca mais será o
mesmo.
Já
não consigo escrever: guerra nunca mais será só palavra, nem
confissão um nome, ou disparar um verbo. Tu és uma criança... não
tenhas pressa em aprender para os outros. Não queiras provar nada a
ninguém. Nós não somos os nossos pais, entendes? Escuta com
atenção, é importante: nós não somos os nossos pais. Outra
coisa. Somos outra coisa, a soma deles, mais os nossos sonhos. E eles
podem existir. Os sonhos podem ser reais. Não tenhas medo, nunca
tenhas medo de ti próprio. Não dês, aos outros, o poder sobre a
tua vida. Conhece o teu passado para poderes seguir as tuas vontades:
não faças como eu, recusa as representações, vê e pensa por ti
próprio.
Antes
de partir, o rapaz descobriu-o na manhã
seguinte, o herói substituira-lhe os livros rasteiros da biblioteca.
Podemos escrever um ao outro, tinha-lhe dito na
véspera. Meses depois, Martim finalmente esgotara lágrimas
desapontadas, nenhuma carta. Todas as semanas, a mãe dizia-lhe:
não há correspondência para o menino... como sempre.
E sorria.
O
padre bendizera o licor, apoiado tanto pelo chefe Belarmino, corado,
como pelo presidente da junta, sorridente. Os três copos
ergueram-se, depois, para celebrar a importância (e pertinência) do
seu trabalho conjunto: a senhora não bebia. Não aprecio, dissera ao
servi-los e antes de entregar mais uma carta, pela comunidade e a bem
da nação (reuniam todos os domingos).
M.
Lisboa: 2014
Particularidade em fachada - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor) |
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