sábado, 13 de dezembro de 2014

Geração de 70 - O herói (ainda)

Na minha infância passei muito tempo numa casa como esta, também tinha uma biblioteca com muitos livros, ficava longe da cidade, só lá ia nas férias. Sempre gostei de ler. Li muito. Tens muita sorte, vais poder ler todos estes livros e viajar sem... ler é como viajar, não é? Criamos imagens daquilo que lemos, na nossa cabeça, imaginamos – é uma palavra bonita. Este sempre foi o meu problema, sabes? Não conseguir imaginar, não perceber beleza em tudo o que existe... nas coisas pequenas sucedendo-se, no sempre construído à nossa volta... mas eu não sabia. Primeiro, aprendi a ver com os olhos dos outros: julgava serem os meus.

- São uns selvagens...
- ...
- ... revoltarem-se contra quem lhes faz bem, contra quem lhes traz a civilização...
- E se tivesse sido ao contrário?
- Ao contrário?! O quê?
- Se tivessem sido eles a ir para Portugal... a mãe não se revoltava?
- Cala-te com essas conversas, rapaz, não sabes o que dizes. Isso faz algum sentido?

No mundo existe uma beleza quase invisível... alguns vêem, outros não ultrapassam o aprendido e adquirido... são cegos de olhos abertos: eu vi assim muito tempo. Tarde, percebi-me cego a ver maravilhas onde muitos não vêem coisa nenhuma, precisei de atravessar o mar, enlatado num navio, para saber. A beleza transparece, não se consegue explicar, por que não existem línguas para expressá-la, sensação muda de espanto, involuntária, suspende-nos: podem ser minutos ou fracções de segundo, sentimo-la, podemos não a compreender de imediato. Mas sentimo-la.

- A guerra é sempre injusta, acontece assim... matamos e morremos.
- Mata quem dispara arma, morre quem recebe bala: arma sem pessoa não dispara.

Queria viajar e suspender a universidade, escrever sobre o périplo, mas os planos familiares eram outros; a responsabilidade, meu rapaz, dizia-me o meu pai, a obrigação do nome... alistei-me como voluntário para a guerra: xeque-mate. Não conhecia África, tenho família é no outro lado do Atlântico, mas sabia-a da leitura dos atlas, como esse, e das conversas dos amigos da família – terratenentes e altas patentes. Estava convencido da justiça da minha atitude, confrontava a autoridade paterna, para conquistar respeito. Queria provar-lhe ser um homem, eu sabia tudo e podia decidir o meu destino, ter razão. Não sabia nada da verdade sobre a guerra. Só me importava partir e ser um herói.

A viagem foi longa, observei e ouvi os outros, escrever tornou-se rotina: ocupava-me em poemas embarcadiços, sossegado pela conversa mansa dos oficiais e pela rotina diária, prolongamento do quartel sob as ondas. Parágrafos, descrições e imagens literárias, não me preparariam para o futuro; pensava ir viver uma campanha gloriosa, recolher matéria de inspiração para um futuro romance, uma aventura em África... não. Não foi nada disso.

Depressa passei a incluir-me no grupo de sargentos que preferia o bar dos praças, como escrevia muito, ganhei a alcunha de Camões: o poeta; depois das primeiras operações... passei a escrever (e a beber) compulsivamente: exorcizava-me. A guerra não é aventura. É sangue, carne em pedaços, explosão, injustiça, acaso, sofrimento. Quem imagina a guerra não diz. Morre muita gente. Morremos muitos. Morremos todos: nós e eles. Quem imagina a guerra manda matar. Muita gente acredita. Continuamos a matar. Morremos todos: nós e eles.

Escrevi palavras terríveis, preferia não as ter vivido e não as ter sentido, mas tornou-se uma obrigação: guardava-lhes as vidas no papel, prendia-lhes as saudades, as esperanças e os medos, em azul caneta. Naquela noite... esperámos a ordem para avançar com a aurora, a operação fora ordenada pela hierarquia, como retaliação. Não conseguiram defender-se. Quando o sol iluminou o lugar, terminámos. Corpos, negros, mulatos e brancos. Mulheres. Crianças. Deram-me uma medalha, nem consigo olhar para ela... não, não é uma condecoração. Compraram-me o silêncio, ainda não compreendes, pois não? Não faz mal. Foi isso, rapaz: compraram-me o silêncio.

Não fiz nada sem autorização, cumpri ordens – digo isso, a mim próprio, todos os dias. Estava a escrever, no hospital, quando o tenente apareceu – conhecido da família, como o teu pai. Bastou-me entregar-lhe os cadernos. A guerra não é honra. Eu não queria voltar, queria escrever, deixei-me comprar: saí do mato, colocaram-me numa vila. Passei a auxiliar a polícia militar, escrevia relatórios, apenas isso, não assistia a interrogatórios nem a depoimentos. O meu sentimento de culpa tinha estacionado, convenci-me da neutralidade do meu serviço. Um dia, acordaram-me de madrugada, era uma emergência: não pude recusar.

Foram oito horas de interrogatório, um furriel mulato acusado de agitador, quando começou a falar... mal lhe compreendia as palavras. Na urgência seguinte, foi um tipógrafo. Depois uma professora primária – Alva Luz, nunca esqueci a ironia do nome. A cor do sangue é igual em todos, vermelho espesso que esguicha e fica nas paredes, cai no chão. Também houve um padre protestante. Não deves estar a perceber. Talvez não percebas nada do que digo: não importa, os amigos também se fazem assim. Nas cumplicidades improváveis. No que não entendemos. Um amigo não se escolhe, aprendi isso lá.

Vemos morrer muita gente, ouvimos a morte de outros, bombas de napalm rebentam no mato: queimam tudo. Como eu, outros vivos já estiveram mortos, ao caminhar na terra incendiada... o silêncio, ficamos em silêncio, antes e depois. Calamos para tudo terminar mais depressa, fechamos os olhos aos crimes, somos militares. Voltamos sem ser inteiros e o nosso medo desaparece. Mas continuamos calados. Quem imagina a guerra não sabe de nós por que não quer saber. Eu pareço inteiro. Talvez seja. Ou possa ser. Quem imagina a guerra não fala. Nós não falamos. Quem nos conhece, se falarmos, nunca mais será o mesmo.

Já não consigo escrever: guerra nunca mais será só palavra, nem confissão um nome, ou disparar um verbo. Tu és uma criança... não tenhas pressa em aprender para os outros. Não queiras provar nada a ninguém. Nós não somos os nossos pais, entendes? Escuta com atenção, é importante: nós não somos os nossos pais. Outra coisa. Somos outra coisa, a soma deles, mais os nossos sonhos. E eles podem existir. Os sonhos podem ser reais. Não tenhas medo, nunca tenhas medo de ti próprio. Não dês, aos outros, o poder sobre a tua vida. Conhece o teu passado para poderes seguir as tuas vontades: não faças como eu, recusa as representações, vê e pensa por ti próprio.

Antes de partir, o rapaz descobriu-o na manhã seguinte, o herói substituira-lhe os livros rasteiros da biblioteca. Podemos escrever um ao outro, tinha-lhe dito na véspera. Meses depois, Martim finalmente esgotara lágrimas desapontadas, nenhuma carta. Todas as semanas, a mãe dizia-lhe: não há correspondência para o menino... como sempre. E sorria.

O padre bendizera o licor, apoiado tanto pelo chefe Belarmino, corado, como pelo presidente da junta, sorridente. Os três copos ergueram-se, depois, para celebrar a importância (e pertinência) do seu trabalho conjunto: a senhora não bebia. Não aprecio, dissera ao servi-los e antes de entregar mais uma carta, pela comunidade e a bem da nação (reuniam todos os domingos).

M. Lisboa: 2014

Particularidade em fachada - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

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