Ainda
não escolhemos o teu nome, falamos serões inteiros sem conseguir
consenso, estou farta disto. Um nome assumir tal importância?
Ridícula, é ridícula, a atitude dos teus avós... como se o nome
te definisse ou fosse um molde para a tua vida, substrato da tua
personalidade. Estou zangada. A memória tem a sua importância, mas
já tens o apelido para prolongar a história desta família, o meu
desapareceu: uma questão de honra. O teu pai tem brio. Aprenderás,
como a outras coisas importantes, as verdadeiramente importantes –
que um verdadeiro homem não dispensa -, através da sua disciplina.
A fé providenciará o resto.
O
jantar vai prolongar-se, sabes como são os teus avós, mas teremos
desculpa para nos retirarmos, após a sobremesa. A gravidez da tua
irmã também foi difícil, amaldiçoei-a por não ter nascido homem,
sabia ter de passar pelo mesmo, outra vez... Importa pensar no seu
futuro, um bom marido, como o teu pai. Quando ele soube de ti, é um
menino, olhou-me com falsa indiferença, vamos ver, sentenciou sério.
Não disse mais nada. Estava feliz. Também aprenderás a importância
do silêncio. Teremos pouco tempo juntos, a casa devora a luz do dia,
alimento-lhe as tarefas, é importante ter um lar.
A
tua avó já estava viúva, eu era quase uma menina – afastada da
família, estranha em terra estranha -, quis ver nela uma mãe. Nos
primeiros tempos, ocupou-se na minha instrução: ensinar-me como
agradar ao filho e tratar da casa, aprender ordens. Autoridade mansa,
molestava-me nas ausências do teu pai, desautorizava-me em sombras.
A partida para África... ele falou-me nas províncias ultramarinas,
da proposta irrecusável... fingi escutá-lo. Previa os tempos
futuros: ele estaria longe muito tempo. Tratei dela sem
ressentimentos. Coitada. Ter caído nas escadas, com aquela idade...
esteve acamada até expirar.
Martim
é um bom nome, nunca o sugeri
mas gosto. Também gosto de flores, aqueles canteiros e a estufa do
jardim?, são obra minha. A estufa é outra casa
dentro da casa. É a minha. Morei
sempre na vila, em casa dos meus pais, até ao casamento. Parece-me
ter sido outra vida, protagonizada por alguém querido, ausente: hoje
sou um reflexo do teu pai. Tenho um motor para esta existência
rigorosa, a minha segurança, posso parir. Arranquei
a tua irmã do fundo das minhas entranhas, o mesmo sangue e a mesma
carne, fi-la em mim.
Têm
ido para o Alentejo, ao fim-de-semana, voltam ao domingo – depois
da hora de jantar, invariavelmente. O médido recomendou-me repouso
total, ele vai caçar javalis e eu fico: nós ficamos. Ela também
vai, assim está com os padrinhos, convive com os filhos deles –
diz o teu pai. Eu aceito.
Não gosto, mas prefiro o silêncio, já to disse. A uma mulher basta
resignar-se. Tu serás o varão, ela será obrigada a reconhecer a
sua condição: nunca me ouviu, mais sofrerá. Acredita no amor. A
culpa é daquela biblioteca, são demasiados livros, bastavam duas
dúzias.
Eu e o Martim com a
mesma idade, perto da fonte de pedra, olhando-nos, sem palavras. Ele
sorriu, poucos tinham a audácia de sorrir-me, aprenderás sobre a
estranheza das mulheres?, e encontrou os meus olhos. Nunca mais o vi,
partiu para a guerra e não voltou. Só o corpo. A família nunca se
recompôs, a mãe enlouqueceu. O funeral teve honras nacionais,
discursos, banda militar e salva. Um evento. Recortei, para guardar,
os artigos da imprensa.
A
tua avó detestava a biblioteca mas mantinha as portas abertas, de
par em par, para a poder ignorar; era a única divisão da casa que
desprezava ostensivamente. Quando soube que a neta lia novelas... eu
já disse à tua irmã: foi isso que a matou.
M. Lisboa: 2014
Particularidade em jazigo - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor) |
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