sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Geração de 70 - Segunda figura


Ainda não escolhemos o teu nome, falamos serões inteiros sem conseguir consenso, estou farta disto. Um nome assumir tal importância? Ridícula, é ridícula, a atitude dos teus avós... como se o nome te definisse ou fosse um molde para a tua vida, substrato da tua personalidade. Estou zangada. A memória tem a sua importância, mas já tens o apelido para prolongar a história desta família, o meu desapareceu: uma questão de honra. O teu pai tem brio. Aprenderás, como a outras coisas importantes, as verdadeiramente importantes – que um verdadeiro homem não dispensa -, através da sua disciplina. A fé providenciará o resto.

O jantar vai prolongar-se, sabes como são os teus avós, mas teremos desculpa para nos retirarmos, após a sobremesa. A gravidez da tua irmã também foi difícil, amaldiçoei-a por não ter nascido homem, sabia ter de passar pelo mesmo, outra vez... Importa pensar no seu futuro, um bom marido, como o teu pai. Quando ele soube de ti, é um menino, olhou-me com falsa indiferença, vamos ver, sentenciou sério. Não disse mais nada. Estava feliz. Também aprenderás a importância do silêncio. Teremos pouco tempo juntos, a casa devora a luz do dia, alimento-lhe as tarefas, é importante ter um lar.

A tua avó já estava viúva, eu era quase uma menina – afastada da família, estranha em terra estranha -, quis ver nela uma mãe. Nos primeiros tempos, ocupou-se na minha instrução: ensinar-me como agradar ao filho e tratar da casa, aprender ordens. Autoridade mansa, molestava-me nas ausências do teu pai, desautorizava-me em sombras. A partida para África... ele falou-me nas províncias ultramarinas, da proposta irrecusável... fingi escutá-lo. Previa os tempos futuros: ele estaria longe muito tempo. Tratei dela sem ressentimentos. Coitada. Ter caído nas escadas, com aquela idade... esteve acamada até expirar.

Martim é um bom nome, nunca o sugeri mas gosto. Também gosto de flores, aqueles canteiros e a estufa do jardim?, são obra minha. A estufa é outra casa dentro da casa. É a minha. Morei sempre na vila, em casa dos meus pais, até ao casamento. Parece-me ter sido outra vida, protagonizada por alguém querido, ausente: hoje sou um reflexo do teu pai. Tenho um motor para esta existência rigorosa, a minha segurança, posso parir. Arranquei a tua irmã do fundo das minhas entranhas, o mesmo sangue e a mesma carne, fi-la em mim.

Têm ido para o Alentejo, ao fim-de-semana, voltam ao domingo – depois da hora de jantar, invariavelmente. O médido recomendou-me repouso total, ele vai caçar javalis e eu fico: nós ficamos. Ela também vai, assim está com os padrinhos, convive com os filhos deles – diz o teu pai. Eu aceito. Não gosto, mas prefiro o silêncio, já to disse. A uma mulher basta resignar-se. Tu serás o varão, ela será obrigada a reconhecer a sua condição: nunca me ouviu, mais sofrerá. Acredita no amor. A culpa é daquela biblioteca, são demasiados livros, bastavam duas dúzias.

Eu e o Martim com a mesma idade, perto da fonte de pedra, olhando-nos, sem palavras. Ele sorriu, poucos tinham a audácia de sorrir-me, aprenderás sobre a estranheza das mulheres?, e encontrou os meus olhos. Nunca mais o vi, partiu para a guerra e não voltou. Só o corpo. A família nunca se recompôs, a mãe enlouqueceu. O funeral teve honras nacionais, discursos, banda militar e salva. Um evento. Recortei, para guardar, os artigos da imprensa.

A tua avó detestava a biblioteca mas mantinha as portas abertas, de par em par, para a poder ignorar; era a única divisão da casa que desprezava ostensivamente. Quando soube que a neta lia novelas... eu já disse à tua irmã: foi isso que a matou.

M. Lisboa: 2014

Particularidade em jazigo - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

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