terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Geração de 70 - A morte (ainda)


- A última frase é, na realidade, passível de ser interpretada de duas formas, a saber: a primeira, pode significar que os herdeiros devem cumprir com a vontade da falecida, entregar a casa à junta de freguesia e os terrenos a quem os habita, deixando a utilização do imóvel ser a que aprouver ao órgão; e a segunda, os herdeiros devem cumprir com a vontade da falecida, mas estabelecer determinados princípios e valores, por forma a preservar a sua memória. É claro?

O silêncio imediato, alguns farejando uma possível mudança de rumo na situação, tornou as palavras do advogado pesadas, definitivas. Silvestre apertava a boina sob os joelhos, ombros curvados pelo hábito de servir, sem perceber que diabo estavam, ele e a sua senhora, a fazer ali; ela pensava o mesmo mas divertia-se, por saber tudo sobre todos, sem o demonstrar.

- A sua presença aqui, tal como a da sua esposa, pretende esclarecer as intenções da falecida, entende?
- Entender eu entendo, senhor doutor, mas continuo sem perceber. Quem sou eu para saber das intenções da senhora? A minha mulher, então, nem se fala...
- Senhor Silvestre, talvez não tenha utilizado a expressão mais adequada, quis dizer, para justificar a sua presença, e a da sua senhora, que a conheciam bem. Não é verdade?
- Sim, senhor, já servimos a senhora há quarenta anos. Que Deus a tenha em descanso.
- Quarenta anos?
- Sim, senhor, vivemos naquela casa há muitos anos. Como disse o meu marido.
- Como era a vossa relação com a senhora? Digo, o trato?
- Era bom, a senhora nunca nos faltou com nada. Pagou os estudos aos rapazes.
- Aos vossos filhos, é isso?
- Sim, senhor, é isso.
- Era costume a senhora fazer esse tipo de coisas?
- Desculpe, senhor doutor, não percebo a pergunta: ela era boa pessoa.

O homem tinha a camisa suja, faltavam-lhe dois botões, olhos como o céu sob o Tejo, foi deixar-te a filha à porta de casa. Era noite, a rapariga, envergonhada, fitava o chão. O pai mandara-a sair da carrinha, cumprimentara-te – a senhora fica mesmo com ela?, agora estava ali sozinha; falaste-lhe, sem demasiado afecto ou compaixão, nenhuma pergunta sobre a barriga proeminente.

- O doutor desculpe a interrupção, mas o pobre do homem não sabe o que dizer. Eu conheço o Silvestre há muitos anos, todos os domingos nos encontramos na igreja, não é verdade? É escusado. Todos sabemos que a falecida era uma boa alma.
- Além disso, todos sabemos também que a senhora era uma benemérita, amava a sua freguesia, ainda em vida criou uma biblioteca, as bolsas de estudo. Era uma boa alma, como disse o senhor padre. Temos uma fotografia dela na sede da junta.

Nunca compareceste às reuniões da misericórdia, mantiveste as contribuições enquanto tradição de família, recebias todos os convites e prestígio inerente. A morte do inspector não veio nos jornais, não passou na rádio nem na televisão. Deixaste de conversar sobre política e religião, passaram a ser temas proibidos na casa grande; no exterior, a condição social empoderava-te, estendia-se a proibição. Não ias à missa. Pagavas a um médico para residir na freguesia, consolidava a desculpa da debilidade: uma senhora, saúde frágil.

- A nossa tia não era uma pessoa religiosa, era uma pessoa espiritual, right? Ok, devemos cumprir a sua vontade.
- Com o devido respeito, a falecida era uma lutadora, foi uma combatente do fascismo em Portugal, acreditava na criação de uma sociedade sem classes e na libertação dos oprimidos.
- Com o devido respeito, jovem, depois de ter vindo de Coimbra, pouco depois do golpe militar, a falecida levou sempre uma vida pacata e recatada. Contribuiu sempre para as festas da freguesia, apoiou a preservação da procissão à ermida, cedeu terrenos para a construção de bairros. Desse passado, a que o jovem se refere, ninguém a ouvia falar...
- Aposto que não ia à missa.
- Deus está sempre connosco.

Agora sonhavas vermelho denso, um sonho repetido, o teu corpo começava a falhar, gasto pelo tempo; mas a memória escapava ao destino da embalagem, rejuvenescia. Existem pessoas sem humanidade. Era um monstro. O mesmo sangue. Os olhos fechados: um cobarde. Cheiro a ferro. Os olhos cerrados: um segredo pesado e constante (sem partilha).

- Peço desculpa, senhor doutor, posso falar?
- Diga, Maria, por favor.
- Não estou a desdizer o senhor padre, mas a senhora, às vezes, pedia para eu me sentar junto a ela, na biblioteca, para me falar do passado. Mas estávamos só as duas. Mais ninguém.

O silêncio voltou à sala, alguns moveram os músculos, incomodados, mexendo-se nas cadeiras, outros serviram-se de água, o resto nada. Maria, trinta e cinco anos, vinte ao serviço da senhora, a mesma idade do filho, sentado ao seu lado – a patroa também lhe pagara os estudos, sentiu os olhares concentrados nela. Empertigou-se, acto pouco habitual, na sua pessoa e falou.

- Nos últimos tempos, quando começou a ficar doente e lhe custava andar, as nossas conversas foram sendo mais longas. Iam noite dentro.
- Qual era o tema, os assuntos, nessas conversas?
- Eram muitos... a senhora falava da sua infância na casa, dos bisavós, dos avós... às vezes, mostrava-me fotografias ou pedia para eu ler. Cartas. Livros de poesia.
- Maria, a senhora falou-lhe, alguma vez, sobre o testamento?
- Sim, senhor doutor. Várias vezes. Nos últimos tempos, por causa da doença, falava nisso todos os dias.
- Sim?
- A senhora dizia que tinha vivido uma vida feliz, completa.
- E sobre o testamento?
- Que os familiares deviam decidir o que fazer aos bens, dizia que nada lhe pertencia, só a alma.
- Like I said, a tia era espiritual...

A reunião, tal como previsto no jantar da semana anterior, em casa do padre, na companhia do presidente da junta – solitário, tinha alocado a secretária noutra tarefa -, prolongara-se durante horas; será um jogo de “mostra e esconde”, cabe-nos a manipulação subtil dos argumentos, afirmara o advogado. Também telefonara a Maria para lhe garantir que seria patrono do seu filho. 

- Somando, ao testemunho da Dona Maria, os testemunhos do senhor e da sua esposa, encontramos uma linha segura para a interpretação da vontade da falecida. Cabe aos herdeiros, passando o imóvel e os terrenos para a junta de freguesia, estabelecer os valores e os princípios que regerão a sua utilização. Importa acrescentar um novo detalhe, também pertinente para esta reunião, sob a forma de questão. Como todos os herdeiros estão presentes, poder-se-á elaborar uma declaração dos ditos valores e princípios?

M. Lisboa: 2014

Particularidade em jazigo no Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

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