sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Geração de 70 - O velho sábio (ainda)

Fiquei encostado, olhando pela montra do café, o caminho de betão terminava o urbano e começava o bairro, procurando coragem para subir: senti um aperto no estômago, as memórias latejando, percebi a existência de um muro invisível. Tem morro e muro no mundo todo. Paguei minha água, decidido a cumprir meu objetivo: subiria até outro dos mundos dessa cidade de Lisboa, conheceria a família da moça, seus filhos.

- Deixei a escola cedo, estudou o irmão mais velho, comecei logo a trabalhar.
- Seu irmão estudou?
- É médico, deixou o bairro faz tempo.
- ...

Olho o grupo de velhos sentados, em cadeiras tão antigas quanto eles, estão num espaço aberto entre os escombros: recebem quem chega no bairro. O reconheci de imediato, tanto tempo depois e tantas vidas passadas, meu amigo: seria possível? Paro para lhe olhar, sua pele está curtida pelo tempo passado no sol tropical, as rugas traçam suas rotas atlânticas, ele me fita: seus olhos são silêncio de desconhecido.

- Doutor, encontrei uma caixa cheia de envelopes antigos, parecem cartas.
- Pode deixar aí, eu dou uma olhada mais tarde.

Eu partira da casa grande para procurar o impossível na viagem, mas minha companhia fora sempre o desencanto, sem acreditar. A cada gesto brusco dessa vida... correspondi com força, fui rasgando meus laços, esquecendo o menino que fui. O tempo roubado me trouxe até na entrada do bairro, mas a violência do presente imprevisto, o fantasma aparecido... meu coração, intermitente durante tanto tempo, explodiu numa dor aguda. Quis inspirar o ar frio, parecendo rarefeito me faltava, caindo no chão – repentino. Meus olhos cerrados, o corpo falhando uma e outra vez, rumo ao impossível.

M. Lisboa: 2014

Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

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