Fiquei
encostado, olhando pela montra do café, o
caminho de betão terminava o urbano e começava
o bairro, procurando coragem para subir: senti um aperto no
estômago, as memórias latejando, percebi a existência de um muro
invisível. Tem morro e muro no mundo todo. Paguei minha água, decidido a
cumprir meu objetivo: subiria até outro dos mundos dessa
cidade de Lisboa, conheceria a família da moça, seus filhos.
- Deixei a escola cedo, estudou o irmão mais velho, comecei logo a trabalhar.
- Seu
irmão estudou?
- É
médico, deixou o bairro faz tempo.
- ...
Olho
o grupo de velhos sentados, em cadeiras tão antigas quanto eles, estão num espaço aberto entre os escombros: recebem quem chega no
bairro. O reconheci de imediato, tanto tempo depois e tantas vidas
passadas, meu amigo: seria possível? Paro para lhe olhar, sua pele está
curtida pelo tempo passado no sol tropical, as rugas traçam suas
rotas atlânticas, ele me fita: seus olhos são
silêncio de desconhecido.
- Doutor,
encontrei uma caixa cheia de envelopes antigos, parecem cartas.
- Pode
deixar aí, eu dou uma olhada mais tarde.
Eu
partira da casa grande para procurar o impossível na viagem, mas
minha companhia fora sempre o desencanto, sem acreditar. A cada gesto
brusco dessa vida... correspondi com força, fui rasgando meus laços,
esquecendo o menino que fui. O tempo roubado me trouxe até na
entrada do bairro, mas a violência do presente imprevisto, o
fantasma aparecido... meu coração, intermitente
durante tanto tempo, explodiu numa dor aguda. Quis inspirar o ar
frio, parecendo rarefeito me faltava, caindo no chão – repentino.
Meus olhos cerrados, o corpo falhando uma e outra vez, rumo ao
impossível.
M.
Lisboa: 2014
Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor) |
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