Dois
copos: morango e baunilha. A criança quis sentar-se na relva, sob um
freixo, para escapar ao sol ardente; fizeste-lhe outra vontade, o
gelado fora a primeira, sem palavras. O pequeno jardim ocupava parte
da praça antiga, encerrada ao trânsito desde há décadas, um oásis
no tecido urbano. Silêncio. Dispersaste o olhar, ignoravas
(intencionalmente) a criança: teria de ser ela a quebrar o silêncio.
-
É vida que nos escolhe.
-
Quem te disse isso?
-
A minha mãe.
-
Gostas muito dela.
-
Também gosto muito do mar.
-
É lindo.
-
O mar são muitos ribeiros, todos juntos, como se fossem uma família.
Mas a água é salgada.
-
A tua mãe?
-
Sim.
Fingiste
desinteressar-te, deixaste a árvore, num salto; depois olhaste a
criança, em desafio, percebeste-lhe as lágrimas silenciosas,
voltaste a sentar-te. E agora? Nada de atitudes precipitadas, não
deitarias tudo a perder, seguirias o protocolo – sem hesitações.
Respiraste profundamente, escolheste as palavras certas: sabias o
motivo do choro. A criança,
limitada na sua expressão, alienada numa vida imprevista, não
percebia o luto: estava desprotegida.
-
Parece que vieram de África, o homem é pedreiro, vivem nas
barracas.
-
Que lhe terá passado pela cabeça?
-
A verdadeira miséria humana, padre... atirar-se para a linha do
metro.
-
São tantos filhos, pobre homem... ficar assim, sem a mulher, ainda
por cima.
-
Vai ter de lhes dar destino, aquilo não é sítio para viverem
crianças.
-
As nossas portas estão sempre abertas.
A
criança misturava lágrimas e muco, soluçava baixinho, continuaste
a falar-lhe: outro discurso, pensaste as palavras desde o mar. E
propuseste uma solução, vamos à ermida!, agarraste no rapazinho
pelo braço; ele fungava mas seguia tropeçando-se: uma oração e
poderia ver o mar. A mãe sereia.
Antes
de iniciarem a subida da colina, o altar estava lá no cimo, voltaste
a explicar-lhe: a santa ouvia, com mais atenção, as preces dos
inocentinhos e simples. Como ele. O sol adormecia com a brisa fresca,
não vos custou subir, até à base da escadaria que conduzia à
ermida. A criança olhou para as dezenas de degraus, pareceu vacilar.
Falaste da importância do sacrifício, de como a virgem atende, com
maior prontidão, quanto maior for o fervor, a sua prova. Viste o seu
rosto iluminar-se.
Criança, subiras a
escadaria, em loucas correrias, galgando os degraus, para ganhar:
ultrapassarias os meninos da casa grande, ali tinham as mesmas
oportunidades. Os pulmões ardiam-te, sempre, quando chegavas ao
cimo. Ao adro. E vencias. A cada dez degraus, disseste à criança no
oitavo, devemos descer dois e orar: olhou-te sorrindo. Prosseguiram.
O
pedreiro chegara ao bairro fazia um par de anos, a casa que lhe
tinha cabido para morar, e albergar a família, pedira cobertura e
telhas novas. Muita cal. Mesa e bancos corridos. No
dia em que as três senhoras da segurança social, incólumes
e perfumadas, visitaram o bairro, na casa do pedreiro estava a sua
mulher, os seis filhos. A criança estava junto da mãe, estendeu-lhe
a mão, assim as senhoras desceram da carrinha. A mãe convidou as
senhoras a entrar, desculpou-se pela ausência de cadeiras, mostrou
os bancos corridos. O rapazinho ficou na soleira da porta, alheado, o
sol trespassando-o. Aconteceu de repente.
O corpo do rapaz deu
um esticão, uma corrente de energia invisível, perdeu o equilíbrio
e estatelou-se no chão, a mãe gritou para todos se afastarem. As
outras crianças, encostadas à parede, nem esbugalhavam os olhos, só
viam. O corpo impulsionava-se, quebrava. Súbito, ele ergueu o
tronco, levantou o braço direito, ergueu o punho, a luz quase o
queimava, apontou as mulheres e proferiu palavras terríveis.
Terríveis. Quando a voz se extinguiu, caíu para trás, adormeceu.
Houve
um silêncio pesado, as outras crianças sairam para a rua, só o
respirar profundo dele se ouvia, a mãe explicou a condição do
filho. Os medicamentos. Quando acordasse não se recordaria de nada.
As senhoras fixas, numa expressão híbrida
- medo e desprezo, estavam sem palavras. Houve chá
em canecas de esmalte. A respiração dele pesava no espaço.
Despediram-se. Foi o início da inquietação, provocada pelas palavras de uma criança, a
insónia na tríade avançada do
apoio social camarário: o medo que a sua presença lhes provocava.
M.
Lisboa: 2014
Particularidade em jazigo no Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor) |
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