terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Geração de 70 - A criança

Dois copos: morango e baunilha. A criança quis sentar-se na relva, sob um freixo, para escapar ao sol ardente; fizeste-lhe outra vontade, o gelado fora a primeira, sem palavras. O pequeno jardim ocupava parte da praça antiga, encerrada ao trânsito desde há décadas, um oásis no tecido urbano. Silêncio. Dispersaste o olhar, ignoravas (intencionalmente) a criança: teria de ser ela a quebrar o silêncio.

- É vida que nos escolhe.
- Quem te disse isso?
- A minha mãe.
- Gostas muito dela.
- Também gosto muito do mar.
- É lindo.
- O mar são muitos ribeiros, todos juntos, como se fossem uma família. Mas a água é salgada.
- A tua mãe?
- Sim.

Fingiste desinteressar-te, deixaste a árvore, num salto; depois olhaste a criança, em desafio, percebeste-lhe as lágrimas silenciosas, voltaste a sentar-te. E agora? Nada de atitudes precipitadas, não deitarias tudo a perder, seguirias o protocolo – sem hesitações. Respiraste profundamente, escolheste as palavras certas: sabias o motivo do choro. A criança, limitada na sua expressão, alienada numa vida imprevista, não percebia o luto: estava desprotegida.

- Parece que vieram de África, o homem é pedreiro, vivem nas barracas.
- Que lhe terá passado pela cabeça?
- A verdadeira miséria humana, padre... atirar-se para a linha do metro.
- São tantos filhos, pobre homem... ficar assim, sem a mulher, ainda por cima.
- Vai ter de lhes dar destino, aquilo não é sítio para viverem crianças.
- As nossas portas estão sempre abertas.

A criança misturava lágrimas e muco, soluçava baixinho, continuaste a falar-lhe: outro discurso, pensaste as palavras desde o mar. E propuseste uma solução, vamos à ermida!, agarraste no rapazinho pelo braço; ele fungava mas seguia tropeçando-se: uma oração e poderia ver o mar. A mãe sereia.

Antes de iniciarem a subida da colina, o altar estava lá no cimo, voltaste a explicar-lhe: a santa ouvia, com mais atenção, as preces dos inocentinhos e simples. Como ele. O sol adormecia com a brisa fresca, não vos custou subir, até à base da escadaria que conduzia à ermida. A criança olhou para as dezenas de degraus, pareceu vacilar. Falaste da importância do sacrifício, de como a virgem atende, com maior prontidão, quanto maior for o fervor, a sua prova. Viste o seu rosto iluminar-se.

Criança, subiras a escadaria, em loucas correrias, galgando os degraus, para ganhar: ultrapassarias os meninos da casa grande, ali tinham as mesmas oportunidades. Os pulmões ardiam-te, sempre, quando chegavas ao cimo. Ao adro. E vencias. A cada dez degraus, disseste à criança no oitavo, devemos descer dois e orar: olhou-te sorrindo. Prosseguiram.

O pedreiro chegara ao bairro fazia um par de anos, a casa que lhe tinha cabido para morar, e albergar a família, pedira cobertura e telhas novas. Muita cal. Mesa e bancos corridos. No dia em que as três senhoras da segurança social, incólumes e perfumadas, visitaram o bairro, na casa do pedreiro estava a sua mulher, os seis filhos. A criança estava junto da mãe, estendeu-lhe a mão, assim as senhoras desceram da carrinha. A mãe convidou as senhoras a entrar, desculpou-se pela ausência de cadeiras, mostrou os bancos corridos. O rapazinho ficou na soleira da porta, alheado, o sol trespassando-o. Aconteceu de repente.

O corpo do rapaz deu um esticão, uma corrente de energia invisível, perdeu o equilíbrio e estatelou-se no chão, a mãe gritou para todos se afastarem. As outras crianças, encostadas à parede, nem esbugalhavam os olhos, só viam. O corpo impulsionava-se, quebrava. Súbito, ele ergueu o tronco, levantou o braço direito, ergueu o punho, a luz quase o queimava, apontou as mulheres e proferiu palavras terríveis. Terríveis. Quando a voz se extinguiu, caíu para trás, adormeceu.

Houve um silêncio pesado, as outras crianças sairam para a rua, só o respirar profundo dele se ouvia, a mãe explicou a condição do filho. Os medicamentos. Quando acordasse não se recordaria de nada. As senhoras fixas, numa expressão híbrida - medo e desprezo, estavam sem palavras. Houve chá em canecas de esmalte. A respiração dele pesava no espaço. Despediram-se. Foi o início da inquietação, provocada pelas palavras de uma criança, a insónia na tríade avançada do apoio social camarário: o medo que a sua presença lhes provocava.

M. Lisboa: 2014

Particularidade em jazigo no Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

Sem comentários:

Enviar um comentário