Interrompi
as obras durante duas semanas e combinei, com o empreiteiro,
prosseguir após as festividades. Encontrámos um baú debaixo da
cama, repleto de cadernos e manuscritos, em folhas soltas, muitas
fotografias. O meu ego de escritor rejubilou, mas procurei não dar
importância ao assunto, pedi para depositarem o baú na biblioteca,
dei por terminada a jornada matinal. Não consegui almoçar e a
tarde, obrigado a passá-la com os pedreiros e o mestre, demorou anos
até findar: queria estar só com a descoberta, tinha uma chave para
o meu passado, na biblioteca, tal como antes.
- O
avô deve estar a dar voltas no túmulo...
- Porquê?
Não foi esse que fez a casa e trouxe a bilioteca?
O
conteúdo do baú não se resumia a retratos paisagísticos da zona
saloia. Cadernos datados, textos soltos numerados, fotografias do
passado atlântico. Outras imagens fotografadas. Narrativas ocultas.
Viagens desconhecidas. Escondidas. Veio a surpresa: em nada se
assemelhava ao semblante austero e envelhecido da foto tradição,
quem teria sido aquele homem esguio, o teu avô? Preencheras parte da
adolescência com páginas de parágrafos impressos, agora...
seguravas os pensamentos escondidos de um homem. O velho senhor da
casa grande, prestígio aristocrata nascido, pelo engenho do pai,
além mar.
- Não
lhe perguntei, diz que nos paga.
- Pelas
fotografias? Mau...
- Quer
ir connosco até ao sul, diz que fotografa nas paragens.
Olhei
as páginas manuscritas, algumas eram cartas, outras pareciam
fragmentos de ideias, soltas. Não era obra publicada, nem fazia
parte do património oficial da família. Tinha, nas mãos, os
sentimentos do meu avô, o seu mundo: não estava revisto para
editar, nem sequer ensaiado para ser lido, inexistia o filtro dos
outros. Tocava, com as pontas dos dedos, um passado verdade: esqueci
o ego.
- Onde
está o pai do teu filho?
- O
menino faz cada pergunta...
Incrédulo.
Olhaste outra vez a fotografia, no verso leras o número dezanove,
ela estava ali, como na tua memória. Um lenço enrolado no cabelo e
uma saia comprida, na fotografia antepassada: Rosa. Por segundos,
deixaste de existir como sempre, perdeste o sentido comum... pode uma
pessoa repetir-se? Podemos viver-nos noutros tempos? Somos os mesmos
corpos, tempos diferentes? Procuraste, dentro do baú, a folha solta
com o número correspondente, mãos trémulas, coração estridente.
- Se escolheres abandonar-nos... não há regresso.
- São
as leis... eu sei.
- As
nossas leis estão escritas nas estrelas, não basta saber-lhes o
nome para vivê-las.
- Quero
um céu sem segredos.
- Visto
pela janela dos outros?
Disciplinei-me
para não vasculhar, concentrei a mente nos músculos, relaxar os
ombros, soltar os braços, as mãos, os dedos: outras fotos,
paisagens, cartas, excertos, dezanove... um poema. Um poema? Um
poema. Levantei-me com a folha na mão, acometido por uma súbita
ansiedade... impossível pousar os olhos na caligrafia cuidada: não
consegui. Deixei a biblioteca, saí para caminhar, precisava de
espaço: não existem repetições.
Pelo
espaço vim ao teu encontro, senhora de minha alma,
Trouxe-te
a espada e o respeito.
Pelo
espaço vou ao teu encontro, ama do meu querer,
Trago-te
a alma e o peito.
Estás
na cama e as palavras do poema adormecem-te. Sonhas: estás fora da
casa, olhas o céu e vês as estrelas transformarem-se em pássaros,
soltam-se dos corpos celestes como farrapos de luz, voam em direção
à lua e extinguem-se; uma voz grossa obriga-te a trocar o olhar, não
queres, sentes ter de fazê-lo, é um homem esguio, não o conheces
mas é-te familiar, não tens medo; os pássaros, quando explodem,
deixam crateras na lua; o homem quer tirar-te o retrato, tens
vergonha, é segredo, diz ele, não vamos contar a ninguém. Acordas.
Guardei a folha
solta e a fotografia, com tudo o resto, dentro do baú: para que me
servem os sonhos e as coincidências? O regresso, as palavras da
cigana, as minhas memórias de velho, as velhas memórias do outro,
os segredos da família, tudo isto... serve para quê? Estou a morrer, tenho mais
dez anos de vida independente, o resto vai ser um prolongamento
dispendioso: medicamentos e cuidados paliativos. O passado verdade
não me importa, vou mandar repôr a parede de estuque, quero lá
saber das origens: servem-me as mentiras. Nas estantes da biblioteca,
mantida conforme a tradição, está o necessário ao meu próximo
romance: “O Patriarca”.
M. Lisboa: 2014
Particularidade em jazigo no Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor) |
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