quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Geração de 70 - Primeira figura (ainda)

Interrompi as obras durante duas semanas e combinei, com o empreiteiro, prosseguir após as festividades. Encontrámos um baú debaixo da cama, repleto de cadernos e manuscritos, em folhas soltas, muitas fotografias. O meu ego de escritor rejubilou, mas procurei não dar importância ao assunto, pedi para depositarem o baú na biblioteca, dei por terminada a jornada matinal. Não consegui almoçar e a tarde, obrigado a passá-la com os pedreiros e o mestre, demorou anos até findar: queria estar só com a descoberta, tinha uma chave para o meu passado, na biblioteca, tal como antes.

- O rapaz passa o tempo enfiado na biblioteca, com o nariz nos livros...
- O avô deve estar a dar voltas no túmulo...
- Porquê? Não foi esse que fez a casa e trouxe a bilioteca?

O conteúdo do baú não se resumia a retratos paisagísticos da zona saloia. Cadernos datados, textos soltos numerados, fotografias do passado atlântico. Outras imagens fotografadas. Narrativas ocultas. Viagens desconhecidas. Escondidas. Veio a surpresa: em nada se assemelhava ao semblante austero e envelhecido da foto tradição, quem teria sido aquele homem esguio, o teu avô? Preencheras parte da adolescência com páginas de parágrafos impressos, agora... seguravas os pensamentos escondidos de um homem. O velho senhor da casa grande, prestígio aristocrata nascido, pelo engenho do pai, além mar.

- Para que quer ele tirar fotografias?
- Não lhe perguntei, diz que nos paga.
- Pelas fotografias? Mau...
- Quer ir connosco até ao sul, diz que fotografa nas paragens.

Olhei as páginas manuscritas, algumas eram cartas, outras pareciam fragmentos de ideias, soltas. Não era obra publicada, nem fazia parte do património oficial da família. Tinha, nas mãos, os sentimentos do meu avô, o seu mundo: não estava revisto para editar, nem sequer ensaiado para ser lido, inexistia o filtro dos outros. Tocava, com as pontas dos dedos, um passado verdade: esqueci o ego.

- Onde está o pai do teu filho?
- O menino faz cada pergunta...

Incrédulo. Olhaste outra vez a fotografia, no verso leras o número dezanove, ela estava ali, como na tua memória. Um lenço enrolado no cabelo e uma saia comprida, na fotografia antepassada: Rosa. Por segundos, deixaste de existir como sempre, perdeste o sentido comum... pode uma pessoa repetir-se? Podemos viver-nos noutros tempos? Somos os mesmos corpos, tempos diferentes? Procuraste, dentro do baú, a folha solta com o número correspondente, mãos trémulas, coração estridente.
 
- Se escolheres abandonar-nos... não há regresso.
- São as leis... eu sei.
- As nossas leis estão escritas nas estrelas, não basta saber-lhes o nome para vivê-las.
- Quero um céu sem segredos.
- Visto pela janela dos outros?

Disciplinei-me para não vasculhar, concentrei a mente nos músculos, relaxar os ombros, soltar os braços, as mãos, os dedos: outras fotos, paisagens, cartas, excertos, dezanove... um poema. Um poema? Um poema. Levantei-me com a folha na mão, acometido por uma súbita ansiedade... impossível pousar os olhos na caligrafia cuidada: não consegui. Deixei a biblioteca, saí para caminhar, precisava de espaço: não existem repetições.
Pelo espaço vim ao teu encontro, senhora de minha alma,
Trouxe-te a espada e o respeito.
Pelo espaço vou ao teu encontro, ama do meu querer,
Trago-te a alma e o peito.

Estás na cama e as palavras do poema adormecem-te. Sonhas: estás fora da casa, olhas o céu e vês as estrelas transformarem-se em pássaros, soltam-se dos corpos celestes como farrapos de luz, voam em direção à lua e extinguem-se; uma voz grossa obriga-te a trocar o olhar, não queres, sentes ter de fazê-lo, é um homem esguio, não o conheces mas é-te familiar, não tens medo; os pássaros, quando explodem, deixam crateras na lua; o homem quer tirar-te o retrato, tens vergonha, é segredo, diz ele, não vamos contar a ninguém. Acordas.

Guardei a folha solta e a fotografia, com tudo o resto, dentro do baú: para que me servem os sonhos e as coincidências? O regresso, as palavras da cigana, as minhas memórias de velho, as velhas memórias do outro, os segredos da família, tudo isto... serve para quê? Estou a morrer, tenho mais dez anos de vida independente, o resto vai ser um prolongamento dispendioso: medicamentos e cuidados paliativos. O passado verdade não me importa, vou mandar repôr a parede de estuque, quero lá saber das origens: servem-me as mentiras. Nas estantes da biblioteca, mantida conforme a tradição, está o necessário ao meu próximo romance: “O Patriarca”.

M. Lisboa: 2014

Particularidade em jazigo no Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

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