sábado, 12 de dezembro de 2015

40 anos: os remanescentes


O deputado esticou as pernas e os braços, estava só no seu largo gabinete, podia dar-se a esse luxo sem quebrar a imagem de incansável lutador pelos direitos e liberdades dos concidadãos, afinal... pertencia a um partido liberal e o cumprimento escrupuloso do "para ser" imperava: arreganhar sempre os dentes e lutar até ao fim, nunca esquecer o próprio mérito, evidentemente. Ponderou se seria sensato acender um charuto mas acabou por fumar sem remorsos, um libertário sem complexos, tolerante.

- Somos vítimas de uma crise financeira global...
- O capitalismo não subsiste sem crises.
- Nenhum "ismo" sobrevive sem crises.
- Engana-se.
- Ah, sim?
- O populismo, meu caro, o populismo.

A ministra deixou a leitura do relatório para o final do dia, preferia tratar dos assuntos menos agradáveis nessa altura, sem agitação; primeiro, telefonou à empregada para lhe ditar a ementa do jantar, confirmar o cumprimento das tarefas diárias – com as imigrantes nunca se sabe... não era xenófoba, já perdera a conta aos afilhados entre a criadagem, prova da sua tolerância. E também era sensível a baptismos. Depois de terminar a chamada, sossegada pela supervisão impecável da economia doméstica, começou a leitura do documento: gráficos, tabelas, quadros. Suspirou. O ministério exigia viagens, conferências a toda a hora, reuniões intermináveis e relatórios sucessivos. Uma chatice.

- Cada vez percebo menos o mundo...
- É natural, sucede o mesmo com a maioria das pessoas.
- A nossa tradição é eleger representantes que prometem mas não cumprem e se desculpam...
- As mudanças estruturais exigem tempo, somos uma democracia recente e a nossa sociedade civil...

O professor pousou o livro na secretária e encarou a turma, no olhar duro estava marcado um desprezo profundo, as alunas e os alunos retribuíam a mirada com a indiferença dos adolescentes, na última fila alguns reprimiam sorrisos. Quando o contratara, a directora do colégio fora bastante clara quanto ao nível de exigência: a avaliação deveria corresponder aos parâmetros estabelecidos e estar de acordo com a estratificação social. Determinados alunos não eram classificados com nível negativo. O professor combatera o colonialismo com a força das armas, guerrilheiro pela independência, prescindira das recompensas pela vitória para educar e preparar o futuro. Utópico, sobrevivia ao presente por que sonhava o optimismo, deixara-se de guerras com carnificina: combatia a iliteracia.

- Estes artigos na imprensa internacional incomodam...
- Acha mesmo?
- Claro, os interesses no exterior, sabe como é... os direitos humanos e a publicidade negativa associada.
- Aos direitos humanos?
- ...

O grupo dividia-se em conversas, palavras de transformação soltavam-se das bocas dos homens, quando o som de automóveis no exterior os despertou para lá da troca de ideias e a existência do circundante se impôs. As forças policiais invadiram o espaço abruptamente, coordenadas na execução da violência rápida e eficaz, inquestionáveis. Transformados em prisioneiros, os homens foram conduzidos pelo circuito dos criminosos face à justiça do seu país - um estado de direito.

- Quanto vale a liberdade?
- Não sei se tem preço... mas é valiosa.
- Tem valor?
- Depende.

O jornalista carregou "play" e a voz da entrevistada encheu a sala outra vez, recordou-se de quando iniciara a profissão – a ânsia pela justiça, a busca da verdade, a ingenuidade de que as palavras podem transformar; acendeu um cigarro para afastar as memórias inúteis, concentrou-se nas recomendações do editor. O ruído da cidade morria nos vidros duplos da redacção, por isso as frases proferidas pela jovem mãe ampliavam-se, o jornalista desligou o gravador e abriu uma das janelas.

- Greve de fome.
- Não sei se terá impacto.
- A notícia?
- Ambas.


M. Lisboa: 2015

Movimento no céu - São Roque do Pico, Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor)

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

40 anos: os antecedentes


O grumete tentava não tremer mas o seu corpo não lhe respondia, a sensação da terra firme, a areia fina entre os pés... deixou-se cair na praia, os joelhos num balanço diferente do ritmo marítimo, enterrou as mãos para não as levar ao rosto: chorava. Duas semanas atrás, tinha perdido a esperança, desesperara pelo excesso de azul salgado, deixara de sonhar para ter pesadelos. A culpa fora dos peixes voadores. Os outros dois sobreviventes do naufrágio também estavam estendidos na praia, era impossível trocarem palavras entre si, partilhavam as mesmas emoções.

- ...
- Que lenda?
- São estórias de marinheiros e navegantes, não quero assustar-te, vais viajar e...
- Não tenho medo, quero saber.
- Nessa parte do mundo... o Sol é tão forte que torna os homens pretos.

O rapaz deixou-se ficar atrás dos outros, preferia não se aproximar dos estranhos, mirava a diferença desconfiado e distante. Por que vestiam tanta roupa? Não os protegeria dos mosquitos e para caçar... abanou a cabeça mas sentiu o olhar reprovador da mãe (que o observava) e recordou-se: um príncipe não julga pela aparência. Decidido a controlar os juízos fáceis, permaneceu no mesmo lugar, enquanto os seus irmãos e irmãs observavam os forasteiros, interrogou-se: seriam machos ou fêmeas? A brancura confundia-o, não se assemelhavam a outros homens, e a sua língua... incompreensível.

- Como é possível não sentir compaixão por aquelas pessoas?
- Não seja ridículo...
- Ridículo? Tem a noção de que vivemos no final do século XIX?
- Somos uma nação europeia e civilizada...
- Considera a escravatura um gesto civilizador, portanto.

O escritor relia a carta todos os dias, embarcara na viagem pelas ilhas desconhecidas para as transformar em ficção, a cada leitura pautada pelo vento forte... as palavras assumiam o tamanho da montanha que lhe invadia o horizonte. As frases arrumadas em parágrafos manuscritos contrastavam com a intensidade do conteúdo, o aparo da caneta registara em tinta azul o ódio pelo sangue da mesma cor, privilégios contestados e dívidas enumeradas em tom de denúncia, injustiças seculares.

- Uma revolução, de facto... Este doce de araçá está divinal!
- Obrigada. Tudo será diferente... acredita nisso?
- Não tenho motivos para acreditar no contrário.
- Muda a gramática mas a sintaxe é a mesma.
- Costurou bandeiras, suportou a causa... porquê este súbito cepticismo?
- Também corrigi panfletos.

A mulher não queria apresentar queixa, tinha o lábio rebentado e o nariz inchado, o rosto era prova da violência a que fora submetida, o agente policial voltou a explicar-lhe os direitos mas a senhora insistia na justiça da punição pelo marido. Enquanto falava, amparava a cabeça entre as mãos, bamboleava o corpo magro. Estavam ambos na soleira da porta, o barulho da telefonia chegava abafado pelas paredes, ela irredutível. O polícia suspirou, como em vezes anteriores – eram poucas as mulheres que denunciavam os companheiros, e não insistiu.

- A guerra não pode ser a única solução, existem outras formas de luta, vamos continuar a insistir nos contactos com o exterior, não desistimos de pressionar na O.N.U. e...
- E vamos continuar na mesma. Não muda nada, são conversas de branco.
- Tu és branco...
- É uma forma de expressão.

A velha tentou gritar mas o som ficou preso na garganta, só o peito soluçava e doía, os ombros subindo e descendo; a aldeia dera lugar a um terreiro queimado, havia corpos empilhados e nem os animais haviam sido poupados, a rapariga olhava tudo sem largar a mão da anciã, o seu braço soluçava como ela, o espanto consumia tudo. As décadas seguintes apagariam as marcas da presença humana, a aldeia só viveria nos episódios contados pela mais velha.

- Quando as árvores engoliram as cinzas da povoação cresceram-lhes ramos torcidos, as suas sombras são as memórias dos antigos habitantes...
- Há memórias nas sombras?
- Como nas nuvens, a magia é sempre a mesma.

Ela deixou cair o alvião quando percebeu que o homem fardado caminhava na sua direcção, a realidade imaginada acontecia; cerrou os punhos e os dentes, baixou o queixo mas não deixou os olhos no chão, explicou que não sabia ler quando o militar lhe entregou um envelope, ouviu-o e então... percebeu o sonho. Um deserto com socalcos feitos de areia vermelha e movidos pelo vento em dunas insustentáveis, um Sol maior a queimar desde o céu iluminado até ao solo. Atravessou o caminho com a folha de papel entre as mãos, rumo à adega onde o marido cochilava, o impossível a acontecer-lhe em cada passo, sem coragem para trabalhar mais. Mas voltaria no dia seguinte.

- A avó perdeu dois filhos durante a guerra.
- Morreram lá fora.
- Ficou sozinha com o avô.
- Fui sempre viúva.


M. Lisboa: 2015


Araçá - S. Roque do Pico, Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor)

terça-feira, 28 de julho de 2015

Poemas de verão...

fado ter

e tristeza transformada em beleza inusitada
pela construção de um interior triste, vê-la 
subversão ou amor em riste,
nas esquinas das palavras em serpentinas ou lavras...

M. Lisboa: 2015
Ponte 25 de Abril - sob o Tejo, cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Poemas de verão

pOeXIa querer

invenções concretas: tradições e metas
os direitos humanos são preceitos mundanos
(as fadas, o bem e o mal, tão queridas!)
as datas – o sem ou o sal nas feridas

fábulas humanizadas: rábulas ensinadas
os direitos humanos são preceitos profanos
(nação patriótica, valores permanentes...)
ilusão de óptica – os senhores de sempre
 
verdades encerradas: grades “civilizadas”
sem direitos humanos são perfeitos os danos
imposições em perpetuadas epopeias
humilhações mediatizadas: europeias

M. Lisboa: 2015

Particularidade em escultura - Largo Camões, cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

sábado, 11 de julho de 2015

Poemas de verão...

poesia ler

na inexistência de um todo pela coincidência do lodo
com a água benta - a mágoa assenta na persistência do jogo multiplicado
na frequência do fogo aniquilado
na sub vivência oficial e
na consciência amoral da narrativa ensinada Lisboa
numa prerrogativa anunciada pessoa

M. Lisboa: 2015

Particularidade em fachada - Rua dos Mouros, cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Poemas de verão...

poesia ter

penas aladas na insubmissão crítica
apenas veladas (não à política da sobranceria)
pela filosofia do ar onde mora o som:
cantar fora de tom

M. Lisboa: 2015

Ribeira das Naus - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

terça-feira, 16 de junho de 2015

Poemas de verão...

poesia ver

em traços humanos nos espaços urbanos
em qualquer lugar (sem sequer esperar)
visões recuperadas invisíveis ou emoções aladas
impossíveis supostos e a postos

na partida vida - imagem escolhida, viagem esquecida
memórias de tempos: glórias, momentos
construção de humanidade (invenção de verdade)

no imaginário tormenta que insiste (ter abecedário)
e aumenta e resiste o necessário

olhar de dentro para fora: ficar no momento (demora)

M. Lisboa: 2015

Movimento no céu - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

domingo, 7 de junho de 2015

Poemas de verão...

poesia ser

extraordinário momento atenção
imaginário alento comoção (expressões intuídas
decifrar) emoções percebidas para encontrar
carne viva impressão parte vida imperfeição
água embalada humano mágoa emprestada dano
fontes ancestrais padrão pontes irreais ou não
imagens alheias estórias viagens esteiras memórias
alegria ressonância surda e um dia a distância muda
som mágico silêncio escutas
tom trágico lamento (culpas alheias
transformações) ameias e construções

M. Lisboa: 2015
Ponte 25 de Abril - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

sábado, 23 de maio de 2015

Presente, passado, futuro

Futuro

Fora um encontro casual, numa grande superfície, véspera de Natal, as palavras trocadas dentro do espírito: sem cobranças ou acusações, o fantasma de Amílcar como ponte. Separaram-se no parque de estacionamento, seguiram destinos diferentes, cada um na sua viatura – aliviados pela inexistência de uma reaproximação. A morte das avós tinha tornado mais fácil a separação definitiva, o realojamento confirmara-a: tinham apagado o bairro das suas vidas, tinham deixado as casas e as coisas da infância morrer.

- Teu amigo? Curioso... não me lembro de falares nele.
- Coisas antigas, dos tempos de criança, fomos vizinhos.
- Estudaram juntos?
- Ele deixou a escola mais cedo, depois perdemos contacto.
- E agora, faz o quê?
- Não sei.

Longe do céu azul da ilha, o emprego deixado para trás, sentou-se na sala de hemodiálise, deixou o olhar vaguear pelo branco hospitalar, sentia saudades da família e do sol quente. Para não o ver cair na mesma tristeza cantava-lhe o mar azul, o país distante... só chorava quando chegava no bairro, aí rezava por um amanhã em que o filho pudesse não ser doente, demasiado exausta para sonhar um futuro diferente.

- Na ilha não, a única solução é ir para fora, aqui não há tratamento para o menino.
- Ir para fora?
- A senhora tem família no estrangeiro, certo?
- A irmã da minha mãe, viveu em Portugal, faz muitos anos.

Olhou para os escombros sem conseguir sentir revolta, incapaz pelo quotidiano inteiramente dedicado à sobrevivência, abriu a porta da sua casa – os vizinhos substituídos por entulho, refugiados nas casas de outras famílias, um pedaço do chão abandonado feito escombros. Sem tempo para perceber a consciência necessária, no meio (ou no fundo) do mar o ponto de partida, os dias divididos em passes obrigatórios para poder ficar, ilusões de esperança: êxodo perpétuo.

- Nasceu cá? Que engraçado... mas a sua família não é portuguesa, pois não?
- É sim, nascemos todos em Portugal.
- Portugueses?! Mas tem ascendência africana, certo?
- Africana de Portugal.
- Das ex-colónias?
- Não, de Santa Filomena.

M. Lisboa: 2015
Bairro de Santa Filomena - Amadora: em torno da cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

sábado, 16 de maio de 2015

Presente, passado, futuro

Passado

Amílcar, o mais velho que lhes contava estórias da terra distante, tinha chegado no bairro desde o princípio e sabia a origem de cada tijolo, a história de cada pedaço de chão. Com ele tinham aprendido os laços e os nós de uma ilha distante, tinham descoberto as pontes invisíveis para um continente desconhecido, a beleza da cor impressa na pele.

- Na aula de hoje, vamos falar sobre a Declaração dos Direitos do Homem.
- Já ouvi falar, professora.
- Ah, sim?
- A declaração apareceu primeiro no Mali.
- Que disparate! Onde é que ouviu essa barbaridade?
- Tem um senhor lá no bairro...
- Logo vi... tamanho disparate! Fique sabendo que a Declaração dos Direitos do Homem nasceu em França, aqui na Europa: o continente dos povos e das civilizações.

A amizade de ambos não resistiu à escolaridade; um escolheu viver com o bairro dentro, contra as professoras e assistentes sociais, recusou a caridade: quis ter uma voz, foi institucionalizado. Bairro ou carreira militar? Depois dos dezoito anos, eram essas as opções. Escolheu a segunda, habituado às rotinas dos grupos: calar e aguentar, regras explícitas. Formatou a raiva para ser dos melhores. E foi. Concluído o serviço militar, uma carreira: o corpo especial de intervenção. 

- Mamã, onde está a casa do Amílcar? Só tem ruína...
- Vieram as máquinas, manhã cedo, você já estava no curso.
- Máquinas de quem?
- Dos políticos. Também vieram polícias.
- E Amílcar, mamã, onde está?
- Protestou, está na esquadra.

O outro tinha aprendido a ser mudo, silêncio atrás de silêncio nas aulas e nas conversas, recusara o poder das palavras: tinha trocado a escola pela construção civil, o debate de ideias pela discussão doméstica, a raiva pela aceitação. Passaram anos sem ver-se, o chão do bairro foi crescendo em casas feitas com o suor acrescentado, trabalho comunitário e auto-construção: ultrapassagem das barreiras sociais e económicas.

- Ainda te lembras do cota Amílcar?
- Contava aquelas cenas da terra... tinha paciência para nós...
- Morreu faz tempo... as ruínas da casa dele ainda lá estão?
- Não, tem ruínas novas.
- Há coisas que nunca mudam...
- Outras mudam para sempre.

M. Lisboa: 2015
Bairro de Santa Filomena - Amadora: em torno da cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

sábado, 9 de maio de 2015

Presente, passado, futuro

Presente

Chovera todos os dias, durante dois meses, desde o seu primeiro dia em Lisboa: lembrou o céu seco da ilha, sentia saudades da família, salvaram-na a barriga pontiaguda e as memórias das vizinhas. O amor existe, tornara-se o seu credo, repetia as palavras todos os dias para não cair na tristeza: cantava... pouco com o rádio, procurava música da terra mas não encontrava sempre, muito sozinha. O bairro tornou-se pedaço do chão abandonado e família alargada, esperava o marido vir do trabalho como esperava a criança, um futuro.

- Mamã, por que eu sou cabo-verdiano? Nasci cá em Portugal.
- É a lei.
- Mas o meu amigo é português.
- O pai é português, por isso ele teve direito à nacionalidade.
- Português?! Mas vive no bairro que nem nós...

A nacionalidade nunca fora um problema, amigos desde o nascimento, as suas avós africanas da Guiné, de Cabo-Verde e de Angola, tinham-se tornado irmãs no bairro: eram as suas mães segundas, a cola nas famílias partidas pelo quotidiano da cidade. Irmãs nos filhos enterrados sem justiça, nos lamentos e ausências, viúvas do mesmo sangue derramado, incapazes de contrariar a violência a que estavam sujeitas.

- A senhora não pode estar aqui, quantas vezes já foi avisada?
- Se não vender torresmo... família não come.
- Esse é um problema seu, não temos nada a ver com isso. Percebe?
- Senhor polícia, não faço mal a ninguém, só fico aqui e vendo minhas coisas.
- Venda as suas coisas no bairro, aqui não. É o último aviso.

As suas mães, africanas de Santa Filomena, Estrela de África, 6 de Maio, pavimentaram a Estrada Militar todas as madrugadas, deram lucro aos transportes urbanos, engordaram a Segurança Social dos automobilistas e contribuintes de cidadania portuguesa. Olhadas como estranhas, consideradas estrangeiras, por quem lhes roubava os direitos dia a dia, perderam o crescimento dos filhos para lhes garantir um futuro.

- Não se esqueça de esfregar bem o chão.
- Sim, senhora.
- É chão flutuante, custou uma fortuna, tem de ser esfregado à mão.
- Sim, senhora.
- No domingo vamos receber visitas, vou precisar de si.
- Meu filho faz aniversário...
- Ah, sim? Muitos parabéns. Quantos anos faz?
- Quinze, senhora.
- Como o tempo passa! Quinze anos... quando começou a trabalhar para nós estava grávida dele, não é verdade?
- Sim, senhora.
- Seria uma pena ficar sem este trabalho, não é?

M. Lisboa: 2015

Bairro de Santa Filomena - Amadora: em torno da cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)
 

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Árvores

Outras flores
 
A luz solar rasgou as amplas janelas, ampliou-lhe os pensamentos, sentiu-se envolta numa esfera brilhante, não sentiu o tempo passar; estremeceu com as pancadas na porta, o bebé também. E se...? Abriu a porta, olhos encontrados, a pergunta desapareceu; caminhou ao seu encontro, relativizou o mundo interior, sorriu.

Não conquistou de ânimo leve, nem se deixou conquistar de outra forma. Sério sempre. O colégio jesuíta moldou-lhe o discurso para o ensinar a ler, disciplinou-o na gramática emocional, ensinou-lhe o subterfúgio da erudição. Encarnou o bom selvagem até desembarcar em Lisboa: construiu-se homem novo.

- Quando conheço a rapariga?
- No próximo domingo, já está tudo preparado, ela encontrava-se com o camarada no Jardim da Estrela, procederão da mesma forma. Chama-se Rosa. Não levantarão suspeitas, a notícia do casamento já circula pelo bairro, o preconceito vai jogar a nosso favor.
- Somos todos iguais, não é verdade?
-...

Viu-a mal o eléctrico parou, estupefacto, e seguiu-lhe os passos, incrédulo, cada vez mais próximo do inevitável, pasmado, a distância entre ambos (definitivamente) eliminada. Criança, dez ou onze anos, a avó tinha-lhe contado sobre como seria a sua mulher: tinha sonhado com ela, segundo os preceitos dos antepassados. Ninguém discordara da palavra anciã, décadas imensuráveis autorizaram-na perante os mais cépticos, mesmo sem lhe perceberem sentido – ele vai atravessar o mar, pelo céu, até ela mas... seu filho chegará primeiro.

Certo dia, sentada na berma da estrada a vender mandioca, a velha surda negou resposta a um polícia e foi metralhada; viveu o tempo do sol desaparecer num horizonte (para aparecer noutro). Morta, a avó tinha-lhe ensinado o colonialismo, a importância da memória, e agora a realidade do sonho. Quantos podem dizer ter visto um sonho realidade? Ser? Existir? Caminhar na nossa direcção? O olhar de reconhecimento, sem espaço ou tempo, ultrapassou-o; a sublime, ou momentânea, estranheza estacou ambos. Aconteceu: decerto, a avó sorriu, na berma do céu.

Os senhores partiram para a província, as serviçais encarregues da manutenção do apartamento, varanda para o Largo do Carmo, repetiram a frase a cada entrada militar. Porque as fardas se reconhecem umas às outras, a rapariga e a velhota ficaram ambas encostadas ao centenário aparador, os homens de uniforme dialogavam entre si e ignoravam as criadas.

- Não vamos ficar aqui especadas, Liberdade, vamos mas é lá para dentro. É preciso fazer qualquer coisa para estes homens comerem, já o meu falecido pai dizia: “onde falta o pão não há razão”.
- Temos tempo?
- Tempo?
- Eles são tantos...
- Temos tempo, não te apoquentes, como o meu falecido avô dizia: “tempo é intento”.
- Como é que sabe?
- Já meu falecido bisavô dizia,“ver para crer”, tenho visto muito.
- As tropas estão aqui em casa...
- Quando eu tinha a tua idade, a revolução demorou semanas até chegar a Lisboa..
- Mas nós já estamos em Lisboa.
- Sem pão... não há revolução.
- E essa frase é de quem?
- Minha, ora essa!

M. Lisboa: 2015

Largo do Carmo, 25 de Abril de 2014 - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

terça-feira, 21 de abril de 2015

Árvores

Folhas

Conseguia passar dias inteiros sem ouvir a própria voz, habituara-se ao silêncio na prisão: durante anos não pudera confiar em ninguém, a memória dos serões entre grades... ainda feria insuportavelmente; no exílio, longe do maldito jardim à beira-mar plantado, apagara os laços insistentes, declarara o óbito da família: a raiva tão funda, sempre a escoar-se dor, amainara então.

- Mas a madrinha ainda não se tinha reformado quando... está viúva há quanto tempo?
- Quase onze anos.
- Pois... você não consegue estar sem fazer nada, a casa é grande, a idade pesa...
- Tenho o trabalho da legião, as tarefas da congregação... a energia já não é a mesma.
- Amanhã telefono aos meus pais, lá na aldeia encontra-se uma rapariga.
- Alguém de confiança.
- Lá da aldeia? Ninguém sabe o que é política...

Quando a afilhada se despediu, insistira em preparar-lhe o jantar e tagarelara o tempo todo, à sensação de alívio juntou-se uma leve apreensão: estaria disposta a que lhe quebrassem o silêncio? Talvez seja apenas falta de hábito, pensou já deitada na cama – fria, habituei-me à companhia do passado e ao luto lento. A rapariga prometida, esguia como uma espiga, chegou num domingo solarengo e acompanhou-a à missa; deve ter mais ou menos a idade dela, lembrou-se a dado momento, mas afastou o pensamento súbito.

- O que trazes aí?
- A patroa escreveu-me este papel.
- Para quê?!
- Para eu não me esquecer das coisas.
- Coisas? Quais coisas?
- Ora, o trabalho!, o que havia de ser?
- Deixa cá ver isso, Nossa Senhora de Fátima!, a tua patroa tem cá uma letra...
- Também não percebi metade..., não te rias!, lá por trabalhares numa biblioteca...

Finda a cerimónia, a caminho de casa, perguntou à rapariga o essencial sobre a família; depois do almoço – aceitável para quem vinha da província, transmitiu-lhe a rotina, explicou-lhe as tarefas, escreveu-lhas numa folha de papel – para evitar futuros dissabores, as regras também. Mandou-a para a cozinha, sentou-se na biblioteca e permitiu-se voltar ao passado recente; recordou como tinha espalhado, diante do inspector (queres casar com um preto?), a propaganda anti-colonialista que encontrara no quarto da filha (achas que não o consigo impedir?).

- Mamã?
- Diga, querida.
- Não percebo... a princesa conseguiu sentir a ervilha?

  1. Lisboa: 2015

    Particularidade em árvores - Parque das Nações: cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

sábado, 18 de abril de 2015

Árvores

Troncos e ramos

Submeteu-se, alternativa à misoginia paterna, ao serviço em casa de uma viúva: o senhor fora médico, a senhora fazia caridade, tinha-lhe dito a madrinha na estação dos comboios; como está o teu pai?, está bem, obrigado – (quem usa calças são as putas, para viveres aqui é como eu quero, estás a ouvir?), manda cumprimentos.

- Que idade tem o rapaz?
- Dez anos, esteve na escola, sabe ler e escrever.
- Preciso de alguém para ajudar lá na fazenda, só se pode confiar na família...
- É bom rapaz e trabalhador.

Tinha pousado o esfregão, soltos os braços do tampo marmoreado da mesa, as faces vermelhas pela raiva invasora e o olhar trovão – (a minha roupa não é para aqui chamada: sou maior e vacinada, não devo nada a ninguém!), com o soco caíra desamparada; a mãe, sentada no canto da cozinha, silêncio, como sempre.

- Em África... as coisas eram diferentes.
- Sempre a mesma conversa... bebe mais um copo!
- Um gajo trabalhava de manhã à noite... mas tinha a recompensa. 
- Poupava-se no ordenado dos empregados, certo?
 
O nariz e os olhos inchados impediram-na de madrugar para a vinha, a mãe mandara recado pelo irmão mais novo: diz-lhes que ela está com febre, não te demores. Sentira-a sentar-se na cadeira: estás acordada, eu sei, não fales, vou dizer-te coisas importantes, demorei a vida inteira a aprendê-las. Poupa as lágrimas, a vida é longa. O teu pai nasceu homem, o destino dele é outro. Podes saber ler e escrever mas ele é o primeiro cá da casa, em tudo. Sempre foi assim e sempre assim será. Esta é a primeira coisa importante.

- Ele vai recuperar?
- O senhor doutor disse... o lado esquerdo deixou de funcionar.
- Nunca funcionou.
- Filha, não digas essas coisas.

A notícia da morte dele convidou-a ao regresso temporário, a patroa imediatamente lhe concedera uma semana; aproveita para estares com a família, obrigada minha senhora, ele estava doente?, não minha senhora: era um homem como os outros, atirar-se assim... para dentro de um poço, foi a vontade de Deus, ninguém está livre do seu destino, pois não minha senhora, podes até ficar mais um ou dois dias: não há problema, obrigada minha senhora, toma leva isto: depois fazemos contas, obrigada minha senhora, sentimentos à tua mãe, obrigada minha senhora.


- Julguei que não viesses.

- É a minha obrigação.

- A tua obrigação era estar presente.

- Não, essa obrigação foi sempre sua.


M. Lisboa: 2015

Particularidade em árvore - Parque das Nações: cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)