Passado
Amílcar,
o mais velho que lhes contava estórias da terra distante, tinha
chegado no bairro desde o princípio e sabia a origem de cada tijolo,
a história de cada pedaço de chão. Com ele tinham aprendido os
laços e os nós de uma ilha distante, tinham descoberto as pontes
invisíveis para um continente desconhecido, a beleza da cor impressa
na pele.
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Na aula de hoje, vamos falar sobre a Declaração dos Direitos do
Homem.
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Já ouvi falar, professora.
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Ah, sim?
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A declaração apareceu primeiro no Mali.
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Que disparate! Onde é que ouviu essa barbaridade?
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Tem um senhor lá no bairro...
-
Logo vi... tamanho disparate! Fique sabendo que a Declaração dos
Direitos do Homem nasceu em França, aqui na Europa: o continente dos
povos e das civilizações.
A
amizade de ambos não resistiu à escolaridade; um escolheu viver com
o bairro dentro, contra as professoras e assistentes sociais, recusou
a caridade: quis ter uma voz, foi institucionalizado.
Bairro ou carreira
militar? Depois dos dezoito anos, eram essas as opções. Escolheu a
segunda, habituado às rotinas dos grupos: calar e aguentar, regras
explícitas. Formatou a raiva para ser dos melhores. E foi. Concluído
o serviço militar, uma carreira: o
corpo especial de intervenção.
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Mamã, onde está a casa do Amílcar? Só tem ruína...
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Vieram as máquinas, manhã cedo, você já estava no curso.
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Máquinas de quem?
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Dos políticos. Também vieram polícias.
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E Amílcar, mamã, onde está?
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Protestou, está na esquadra.
O
outro tinha aprendido a ser mudo, silêncio atrás de silêncio nas
aulas e nas conversas, recusara o poder das palavras: tinha trocado a
escola pela construção civil, o debate de ideias pela discussão
doméstica, a raiva pela aceitação. Passaram anos sem ver-se, o
chão do bairro foi crescendo em casas feitas com o suor
acrescentado, trabalho comunitário e auto-construção:
ultrapassagem das barreiras sociais e económicas.
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Ainda te lembras do cota Amílcar?
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Contava aquelas cenas da terra... tinha paciência para nós...
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Morreu faz tempo... as ruínas da casa dele ainda lá estão?
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Não, tem ruínas novas.
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Há coisas que nunca mudam...
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Outras mudam para sempre.
M.
Lisboa: 2015
Bairro de Santa Filomena - Amadora: em torno da cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor) |
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