sábado, 16 de maio de 2015

Presente, passado, futuro

Passado

Amílcar, o mais velho que lhes contava estórias da terra distante, tinha chegado no bairro desde o princípio e sabia a origem de cada tijolo, a história de cada pedaço de chão. Com ele tinham aprendido os laços e os nós de uma ilha distante, tinham descoberto as pontes invisíveis para um continente desconhecido, a beleza da cor impressa na pele.

- Na aula de hoje, vamos falar sobre a Declaração dos Direitos do Homem.
- Já ouvi falar, professora.
- Ah, sim?
- A declaração apareceu primeiro no Mali.
- Que disparate! Onde é que ouviu essa barbaridade?
- Tem um senhor lá no bairro...
- Logo vi... tamanho disparate! Fique sabendo que a Declaração dos Direitos do Homem nasceu em França, aqui na Europa: o continente dos povos e das civilizações.

A amizade de ambos não resistiu à escolaridade; um escolheu viver com o bairro dentro, contra as professoras e assistentes sociais, recusou a caridade: quis ter uma voz, foi institucionalizado. Bairro ou carreira militar? Depois dos dezoito anos, eram essas as opções. Escolheu a segunda, habituado às rotinas dos grupos: calar e aguentar, regras explícitas. Formatou a raiva para ser dos melhores. E foi. Concluído o serviço militar, uma carreira: o corpo especial de intervenção. 

- Mamã, onde está a casa do Amílcar? Só tem ruína...
- Vieram as máquinas, manhã cedo, você já estava no curso.
- Máquinas de quem?
- Dos políticos. Também vieram polícias.
- E Amílcar, mamã, onde está?
- Protestou, está na esquadra.

O outro tinha aprendido a ser mudo, silêncio atrás de silêncio nas aulas e nas conversas, recusara o poder das palavras: tinha trocado a escola pela construção civil, o debate de ideias pela discussão doméstica, a raiva pela aceitação. Passaram anos sem ver-se, o chão do bairro foi crescendo em casas feitas com o suor acrescentado, trabalho comunitário e auto-construção: ultrapassagem das barreiras sociais e económicas.

- Ainda te lembras do cota Amílcar?
- Contava aquelas cenas da terra... tinha paciência para nós...
- Morreu faz tempo... as ruínas da casa dele ainda lá estão?
- Não, tem ruínas novas.
- Há coisas que nunca mudam...
- Outras mudam para sempre.

M. Lisboa: 2015
Bairro de Santa Filomena - Amadora: em torno da cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

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