sábado, 9 de maio de 2015

Presente, passado, futuro

Presente

Chovera todos os dias, durante dois meses, desde o seu primeiro dia em Lisboa: lembrou o céu seco da ilha, sentia saudades da família, salvaram-na a barriga pontiaguda e as memórias das vizinhas. O amor existe, tornara-se o seu credo, repetia as palavras todos os dias para não cair na tristeza: cantava... pouco com o rádio, procurava música da terra mas não encontrava sempre, muito sozinha. O bairro tornou-se pedaço do chão abandonado e família alargada, esperava o marido vir do trabalho como esperava a criança, um futuro.

- Mamã, por que eu sou cabo-verdiano? Nasci cá em Portugal.
- É a lei.
- Mas o meu amigo é português.
- O pai é português, por isso ele teve direito à nacionalidade.
- Português?! Mas vive no bairro que nem nós...

A nacionalidade nunca fora um problema, amigos desde o nascimento, as suas avós africanas da Guiné, de Cabo-Verde e de Angola, tinham-se tornado irmãs no bairro: eram as suas mães segundas, a cola nas famílias partidas pelo quotidiano da cidade. Irmãs nos filhos enterrados sem justiça, nos lamentos e ausências, viúvas do mesmo sangue derramado, incapazes de contrariar a violência a que estavam sujeitas.

- A senhora não pode estar aqui, quantas vezes já foi avisada?
- Se não vender torresmo... família não come.
- Esse é um problema seu, não temos nada a ver com isso. Percebe?
- Senhor polícia, não faço mal a ninguém, só fico aqui e vendo minhas coisas.
- Venda as suas coisas no bairro, aqui não. É o último aviso.

As suas mães, africanas de Santa Filomena, Estrela de África, 6 de Maio, pavimentaram a Estrada Militar todas as madrugadas, deram lucro aos transportes urbanos, engordaram a Segurança Social dos automobilistas e contribuintes de cidadania portuguesa. Olhadas como estranhas, consideradas estrangeiras, por quem lhes roubava os direitos dia a dia, perderam o crescimento dos filhos para lhes garantir um futuro.

- Não se esqueça de esfregar bem o chão.
- Sim, senhora.
- É chão flutuante, custou uma fortuna, tem de ser esfregado à mão.
- Sim, senhora.
- No domingo vamos receber visitas, vou precisar de si.
- Meu filho faz aniversário...
- Ah, sim? Muitos parabéns. Quantos anos faz?
- Quinze, senhora.
- Como o tempo passa! Quinze anos... quando começou a trabalhar para nós estava grávida dele, não é verdade?
- Sim, senhora.
- Seria uma pena ficar sem este trabalho, não é?

M. Lisboa: 2015

Bairro de Santa Filomena - Amadora: em torno da cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)
 

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