Presente
Chovera
todos os dias, durante dois meses, desde o seu primeiro dia em
Lisboa: lembrou o céu seco da ilha, sentia saudades da família,
salvaram-na a barriga pontiaguda e as memórias das vizinhas. O amor
existe, tornara-se o seu credo, repetia as palavras todos os dias
para não cair na tristeza: cantava... pouco com o rádio, procurava
música da terra mas não encontrava sempre, muito sozinha. O bairro
tornou-se pedaço do chão abandonado e família alargada, esperava o
marido vir do trabalho como esperava a criança, um futuro.
-
Mamã, por que eu sou cabo-verdiano? Nasci cá em Portugal.
-
É a lei.
-
Mas o meu amigo é português.
-
O pai é português, por isso ele teve direito à nacionalidade.
-
Português?! Mas vive no bairro que nem nós...
A
nacionalidade nunca fora um problema, amigos desde o nascimento, as
suas avós africanas da Guiné, de Cabo-Verde e de Angola, tinham-se
tornado irmãs no bairro: eram as suas mães segundas, a cola nas
famílias partidas pelo quotidiano da cidade. Irmãs nos filhos
enterrados sem justiça, nos lamentos e ausências, viúvas do mesmo
sangue derramado, incapazes de contrariar a violência a que estavam
sujeitas.
-
A senhora não pode estar aqui, quantas vezes já foi avisada?
-
Se não vender torresmo... família não come.
-
Esse é um problema seu, não temos nada a ver com isso. Percebe?
-
Senhor polícia, não faço mal a ninguém, só fico aqui e vendo
minhas coisas.
-
Venda as suas coisas no bairro, aqui não. É o último aviso.
As
suas mães, africanas de Santa Filomena, Estrela de África, 6 de
Maio, pavimentaram a Estrada Militar todas as madrugadas, deram lucro
aos transportes urbanos, engordaram a Segurança Social dos
automobilistas e contribuintes de cidadania portuguesa. Olhadas como
estranhas, consideradas estrangeiras, por quem lhes roubava os
direitos dia a dia, perderam o crescimento dos filhos para lhes
garantir um futuro.
-
Não se esqueça de esfregar bem o chão.
-
Sim, senhora.
-
É chão flutuante, custou uma fortuna, tem de ser esfregado à mão.
-
Sim, senhora.
-
No domingo vamos receber visitas, vou precisar de si.
-
Meu filho faz aniversário...
-
Ah, sim? Muitos parabéns. Quantos anos faz?
-
Quinze, senhora.
-
Como o tempo passa! Quinze anos... quando começou a trabalhar para
nós estava grávida dele, não é verdade?
-
Sim, senhora.
-
Seria uma pena ficar sem este trabalho, não é?
M. Lisboa: 2015
Bairro de Santa Filomena - Amadora: em torno da cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor) |
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