Futuro
Fora
um encontro casual, numa grande superfície, véspera de Natal, as
palavras trocadas dentro do espírito: sem cobranças ou acusações,
o fantasma de Amílcar como ponte. Separaram-se no parque de
estacionamento, seguiram destinos diferentes, cada um na sua viatura
– aliviados pela inexistência de uma reaproximação. A morte das
avós tinha tornado mais fácil a separação definitiva, o
realojamento confirmara-a: tinham apagado o bairro das suas vidas,
tinham deixado as casas e as coisas da infância morrer.
-
Teu amigo? Curioso... não me lembro de falares nele.
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Coisas antigas, dos tempos de criança, fomos vizinhos.
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Estudaram juntos?
-
Ele deixou a escola mais cedo, depois perdemos contacto.
-
E agora, faz o quê?
-
Não sei.
Longe
do céu azul da ilha, o emprego deixado para trás, sentou-se na sala
de hemodiálise, deixou o olhar vaguear pelo branco hospitalar,
sentia saudades da família e do sol quente. Para não o ver cair na
mesma tristeza cantava-lhe o mar azul, o país distante... só
chorava quando chegava no bairro, aí rezava por um amanhã em que o
filho pudesse não ser doente, demasiado exausta para sonhar um
futuro diferente.
-
Na ilha não, a única solução é ir para fora, aqui não há
tratamento para o menino.
-
Ir para fora?
-
A senhora tem família no estrangeiro, certo?
-
A irmã da minha mãe, viveu em Portugal, faz muitos anos.
Olhou
para os escombros sem conseguir sentir revolta, incapaz pelo
quotidiano inteiramente dedicado à sobrevivência, abriu a porta da
sua casa – os vizinhos substituídos por entulho, refugiados nas
casas de outras famílias, um pedaço do chão abandonado feito
escombros. Sem tempo para perceber a consciência necessária, no
meio (ou no fundo) do mar o ponto de partida, os dias divididos em
passes obrigatórios para poder ficar, ilusões de esperança: êxodo
perpétuo.
-
Nasceu cá? Que engraçado... mas a sua família não é portuguesa,
pois não?
-
É sim, nascemos todos em Portugal.
-
Portugueses?! Mas tem ascendência africana, certo?
-
Africana de Portugal.
-
Das ex-colónias?
-
Não, de Santa Filomena.
M.
Lisboa: 2015
Bairro de Santa Filomena - Amadora: em torno da cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor) |
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