sábado, 23 de maio de 2015

Presente, passado, futuro

Futuro

Fora um encontro casual, numa grande superfície, véspera de Natal, as palavras trocadas dentro do espírito: sem cobranças ou acusações, o fantasma de Amílcar como ponte. Separaram-se no parque de estacionamento, seguiram destinos diferentes, cada um na sua viatura – aliviados pela inexistência de uma reaproximação. A morte das avós tinha tornado mais fácil a separação definitiva, o realojamento confirmara-a: tinham apagado o bairro das suas vidas, tinham deixado as casas e as coisas da infância morrer.

- Teu amigo? Curioso... não me lembro de falares nele.
- Coisas antigas, dos tempos de criança, fomos vizinhos.
- Estudaram juntos?
- Ele deixou a escola mais cedo, depois perdemos contacto.
- E agora, faz o quê?
- Não sei.

Longe do céu azul da ilha, o emprego deixado para trás, sentou-se na sala de hemodiálise, deixou o olhar vaguear pelo branco hospitalar, sentia saudades da família e do sol quente. Para não o ver cair na mesma tristeza cantava-lhe o mar azul, o país distante... só chorava quando chegava no bairro, aí rezava por um amanhã em que o filho pudesse não ser doente, demasiado exausta para sonhar um futuro diferente.

- Na ilha não, a única solução é ir para fora, aqui não há tratamento para o menino.
- Ir para fora?
- A senhora tem família no estrangeiro, certo?
- A irmã da minha mãe, viveu em Portugal, faz muitos anos.

Olhou para os escombros sem conseguir sentir revolta, incapaz pelo quotidiano inteiramente dedicado à sobrevivência, abriu a porta da sua casa – os vizinhos substituídos por entulho, refugiados nas casas de outras famílias, um pedaço do chão abandonado feito escombros. Sem tempo para perceber a consciência necessária, no meio (ou no fundo) do mar o ponto de partida, os dias divididos em passes obrigatórios para poder ficar, ilusões de esperança: êxodo perpétuo.

- Nasceu cá? Que engraçado... mas a sua família não é portuguesa, pois não?
- É sim, nascemos todos em Portugal.
- Portugueses?! Mas tem ascendência africana, certo?
- Africana de Portugal.
- Das ex-colónias?
- Não, de Santa Filomena.

M. Lisboa: 2015
Bairro de Santa Filomena - Amadora: em torno da cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

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