sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Ocorrências

Ocorrência 5

O escritor terminou o romance numa sexta-feira à tarde, escrevera durante horas e vira o sol nascer através das vidraças embutidas, nas janelas altas, agora tinha sono e precisava de dormir. O gato continuava deitado aos seus pés, apenas o calor do corpo do bicho denunciara a sua presença durante a noite; depois o astro rei aparecera e a luz tinha invadido a divisão, revelara tudo. A sensação de alívio prazeirento espalhou-se pelo corpo de ambos, homem e animal, por que se esticaram em simultâneo, surpreendidos entreolharam-se. Sincronia.

- É um livro muito bonito.
- Obrigado.
- Tem parágrafos como poemas.
- As palavras apareceram assim, a escrita foi fugindo para a poesia, criações.
- África como cenário, invariavelmente.
- África, não. O cenário é um país em África, não é o continente inteiro.

O dia cinzento tornava o espaço de construção ainda mais parecido com um jogo de vídeo; várias máquinas, homens de capacetes coloridos e impermeáveis garridos, tudo em movimento constante na companhia da chuva miudinha. Os dois homens deram por si, lado a lado, durante o seu turno para almoço, já se tinham cruzado no local de trabalho mas nunca haviam trocado palavra. Nunca. Nenhum deles era conhecido por ser conversador, pelo contrário, tinham fama de pensativos e silenciosos, eram ambos respeitados dentro dos seus grupos. Comeram calados, outros conversavam para encher o silêncio, mas no final da refeição encararam-se e perceberam-se iguais. Não importava a origem de cada um, partilhavam a mesma situação, desafios semelhantes.

- A chuva continua a engrossar.
- Se não parar, vamos ter de deixar o trabalho para amanhã.
- O sol não anda à nossa vontade.
- Os astros também são imprevisíveis.
- Como a vida.
- Não há formas de adivinhar o futuro.
- Podemos imaginar.
- Não será melhor viver?

A palhaça terminou o espetáculo recebendo sucessivas salvas de palmas, as crianças ainda exultavam, gargalhadas haviam quebrado o quotidiano do campo de refugiados; mais tarde, dois meninos, após cuidadosa busca na teia formada pelas ruas entre as tendas, reencontraram-na para lhe fazerem perguntas. Onde se estuda para ser palhaço? Há mais palhaços assim como tu, mulheres? Com quem treinamos as nossas piadas? Como podemos rir quando estamos tristes? O que fazemos quando o público não se ri dos nossos truques? Podemos ser palhaços a vida inteira? Os palhaços têm família? Os palhaços podem comer guloseimas o dia inteiro? Os palhaços também fazem guerra?

- Ganhar a vida a fazer rir os outros?
- Ganha mas é juízo, menina!
- É uma profissão.
- Além disso, onde é que já se viu uma mulher palhaço?
- Eu serei a primeira! Veem como tenho jeito? Veem?

M. Lisboa: 2016

Ilha de Santa Maria - Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor)

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Ocorrências

Ocorrência 4

A mulher pausou a faixa no gravador digital, já tinha enviado a versão final do seu texto no dia anterior, não poderia incluir a entrevista - a confissão de um antigo agente da polícia secreta, tinha conseguido um testemunho incrível! E as implicações judiciais? Foi até à cozinha, decidiu preparar um chá de ervas medicinais, para purgar os chocolates, pensou – onde estaria o número da advogada? De repente, sentiu uma explosão no peito e caiu redonda no chão. Voltou a acordar num quarto muito luminoso, médicos e enfermeiras rodavam em redor de uma cama, havia um frenesim à sua volta. Mas ela não se sentia ali. Intuía ser observadora. Por fim, percebeu-se fora do corpo e surpreendeu-se por não sentir medo, intuitivamente... compreendeu: tudo se passava sem a distracção das sensações físicas. E as memórias? Fracções de segundo.

- Há quanto tempo esconde a sua verdadeira identidade?
- Quarenta anos.
- Por que motivo me contactou? O que o impele a revelar toda a verdade?
- Fontes próximas revelaram-me ter sido contactadas por si, seria uma questão de tempo até que descobrisse a minha identidade, prefiro não ser surpreendido. Branco?
- Obrigada, não vai experimentar? Foi o senhor quem trouxe a caixa.
- Não posso comer chocolate, na minha idade... sigo à risca as instruções dos médicos; além disso, mais não seja por deformação profissional, prezo muito o tempo de vida que me resta.

Quando o interrogatório terminou, uma espécie de euforia contida tomou conta de si, sentiu o sabor da justiça. Fora funcionário público durante dezenas de anos, queriam castigá-lo por ter cumprido o seu dever? Seguira ordens, tentara fazer o seu trabalho da melhor forma e com a maior eficácia, minimizara os danos e flexibilizara a consciência. Também se tornara cuidadoso, criara um arquivo pessoal com documentos "especiais" sobre figuras importantes, tecera uma preciosa rede de contactos. Depois da revolução estivera quinze anos no Brasil, regressara com uma nova identidade, chefe de uma família e integrado num tipo de vida oposto ao passado. Aproveitara os fundos comunitários. Cuido de relógios, trato do tempo – costumava dizer. O silêncio é de ouro. Poderia ter sido outra das suas máximas.

- Tu sabes quem ele foi?
- Não sei muito sobre a vida dele, para mim é apenas o marido da minha mãe. Quando eles casaram eu já vivia sozinha.
- Foi agente da polícia política, trabalhou como inspector durante a ditadura.
- Ele tem uma oficina de ourives...
- Tenho registados vários testemunhos de pessoas que admitem ter sido interrogadas e torturadas por ele.
- Não acredito! O velhote é conservador mas... ter sido agente? Torturar?
- São testemunhos fidedignos. Aconteceu tudo nas ex-colónias.

A velha não quis continuar a visita guiada, abandonou o grupo para sentar-se numa das salas da exposição permanente, preferia descansar as pernas, farta de ouvir tanto disparate contemporâneo. Francamente! Os escravos tinham contribuído para a formação da cultura democrática europeia? Credo! Os pretos nunca souberam falar bem português, murmurou irritada, toda a gente sabe que foram os europeus a ensinar-lhes a civilização, caramba! Esta mania de transformarem verdades absolutas em pontos de vista... a culpa? Propriedade do ensino público, uma miséria! Aprendem as balelas liberais e republicanas como se fossem factos históricos, desconhecem a verdadeira cultura. Olhou à sua volta e inspirou o ar, meticulosamente controlado, da cultura artística das elites europeias.

- Eles não são como nós, somos diferentes, pronto. É isso.
- Mas diferente não quer dizer inferior.
- Lá estás tu, bolas! Sempre a complicar o normal...
- Repara, eu já conheço o teu ponto de vista, estou a tentar explicar-te as minhas ideias.
- O mundo não é justo, para mim é tão simples quanto isso.
- Mas... se contribuímos para a injustiça compactuamos com ela.

M. Lisboa: 2016

Ilha de Santa Maria - Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor)

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Ocorrências

Ocorrência 3

A mulher cantarola baixinho enquanto passa a roupa a ferro; sentada no sofá, a velha controla os canais de televisão e os programas que passam no ecrã; ao toque do telefone, o ferro de engomar pousa e o som do televisor baixa. Cessa o canto, uma leva o telefone à outra e volta à tarefa doméstica. Enquanto o cesto se preenche com roupa engomada, as palavras da conversa telefónica são ampliadas pela sala espaçosa, a convalescente, educada para a invisibilidade das serviçais, troca boatos fundamentais e queixas semanais com a filha: antes eram as sopeiras, agora são as imigrantes, todas iguais. Quando a conversa terminou, a tábua de passar a ferro já estava arrumada e os sons vindos da cozinha emprestavam vida à casa. A velha adormeceu.

- Não imaginas como é difícil escutar aquelas conversas.
- Uma mentira pode ser repetida mil vezes e nunca deixará de ser mentira.
- Ela está a menosprezar a nossa história, a experiência de outras mulheres como nós.
- Tu precisas de trabalhar. Fica só até conseguires algo melhor.
- Sabes que o filho é poeta? Nem sei como...
- Se puxar à mãe deve escrever lindos versos... estás a rir de quê?
- É a ironia... como a realidade ultrapassa a ficção...
- Tem piada, pronto. Não é preciso filosofar.

O professor chegou a casa ainda impressionado com os últimos dois tempos da tarde, uma aula sobre a importância da luta pelos direitos civis, nas sociedades ocidentais, transformara-se numa acesa troca de ideias acerca de religião, estado e política. Estupefacto, o professor constatou que os zombies não só ouviam como até conseguiam argumentar, percebeu: o importante era encontrar o tema certo para lhes soltar a língua e criar debate. Ao ouvir as opiniões de alunos e alunas, o educador tinha experimentado emoções variadas, valera-lhe a sua experiência nos jogos de cartas para parecer imperturbável. Também ficou impressionado com a sua própria ignorância, percebeu o quão longe estava dos valores daqueles jovens e das suas referências culturais.

- Continuas a escrever poesia?
- Tal como tu continuas a ser professor.
- E consegues viver disso?
- Tu vives bem com o teu salário?
- Pago as contas à justa, resta pouco.
- Tal como eu.
- São coisas diferentes.
- Diferentes mas necessárias, ambas.
- Sou forçado a concordar.
- Brindamos a isso?

A menina correu para o outro lado da rua, onde os destroços empilhados formavam a porta de entrada para o bairro sem nome oficial, gritou pela mãe que, ajoelhada junto aos novos pedaços de betão armado e ferros retorcidos, não a ouviu e continuou a chorar. Agora dois grandes montes de entulho, minutos antes a casa, um micro cenário de destruição. Na noite anterior, avisada pela empregada de limpeza do café, tinha conseguido reunir algumas coisas em sacos de plástico, tudo guardado na igreja. O operador da máquina, funcionário autárquico cumpridor e cioso das suas funções, sentiu uma culpa avassaladora ao olhá-las. Foram apenas instantes; as palavras do seu superior voltaram a endurecer-lhe o coração: que voltassem para a terra deles.

- Quanto tempo demorou para a casa cair?
- Eu fechei os olhos e contei até cem.
- Tão pouco?
- Primeiro, contei na nossa língua.
- Então foi pouco tempo.
- Depois contei na língua deles.
- Demora sempre mais.

M. Lisboa: 2016

Ilha de Santa Maria - Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor)

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Ocorrências

Ocorrência 2

O jovem deixou-se ficar calado, palavras para quê?, a formadora debitava toda a sua cartilha institucional: direitos humanos, cidadania, legislação, normas de conduta; olhou em redor e percebeu que os restantes colegas também não prestavam particular atenção ao discurso. Fixou os olhos na mulher, a única dentro da sala, para fingir interesse nas palavras ensaiadas – obviamente, ela nada saberia sobre a vida de um polícia. Conseguia imaginar o pensamento dos seus colegas, partilhavam códigos e obrigações por costume, sem burocracias. Continuaria a fingir prestar atenção às palavras ocas, faria os testes no final da semana, e terminaria a formação com uma classificação acima da média. Depois esqueceria tudo.

- Direitos humanos no exercício da profissão?
- Acha que um criminoso pensa nos direitos humanos?
- Esses gajos vivem como animais nos países deles, sabem lá o que são direitos humanos!
- Se estão no nosso país têm de saber a nossa língua, cumprir as nossas regras.
- E os nossos direitos humanos? Não contam?
- Essas leis são feitas por políticos que nunca andaram nestas ruas.

O professor terminou a sua prelecção, pousou os cartões na secretária, e olhou os estudantes, um silêncio avassalador preencheu a sala, esperou quase dois minutos até suspirar com ruído. Nada. Voltou-se e, de costas para os discentes, registou a palavra maldita no quadro, ao escrever a última sílaba percebeu, esperançoso, algum movimento na plateia. Nada feito. O silêncio persistiu. Amorfos, pensou, incapazes, zombies do admirável mundo novo; encarou-os sem piedade, já não conseguia sequer ser nostálgico, encolheu os ombros e continuou a debitar conteúdos – por momentos, fugazes e plenos de culpa, pensou que talvez tivessem nascido para ser escravos.

- O que achas das aulas?
- Por que perguntas?
- Não deve ser fácil, para alguém como tu...
- Alguém como eu? Não estou a perceber...
- Ouvir aquelas coisas sobre os escravos e sobre o racismo...
- Continuo sem compreender...
- Mas... tu és negro.
- E vivemos no século XXI. Eu não sou escravo.

O poeta tentou evitar o riso mas não foi capaz, os restantes ocupantes da sala ignoravam-no, continuou a rir sem se importar com o incómodo causado, as lágrimas saltavam-lhe dos olhos, em catadupa. A dona da casa deixou de falar para fitar o poeta, a sua expressão alterou-se, uma vermelhidão intensa cobriu-lhe o rosto e convidou o poeta ao silêncio. Ríspida. Ele deixou a sala para levar consigo as gargalhadas sonoras, os convivas regressaram à norma da dependência. Quando parou de rir, no parque de estacionamento, mãos apoiadas no tejadilho do automóvel, arquejante, o poeta não conseguiu evitar as lágrimas. Remorsos. Outra vez.

- Escreveu um livro, imagina!
- Enquanto esteve na clínica de recuperação?
- Ele já não escrevia há mais de dez anos e com as edições anteriores esgotadas...
- É bom?
- Vai ser um sucesso.
- Continua a escrever poesia?
- Ele diz que é a cura para todos os males, mas mantém os vícios.

M. Lisboa: 2016

Ilha de Santa Maria - Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor)

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Ocorrências

Ocorrência 1

Procurava qualquer coisa, faltava-lhe apenas saber o quê, era-lhe impossível identificar, com certeza, o motor daquela ausência sempre presente. Insatisfação? Talvez... mas de quê? Ou de quem. Quem? Recusava sentir-se refém de outrem, fosse quem fosse, nascera só – morreria só, inadmissível sentir a falta do desnecessário. Barreiras sucessivas, muros erguidos na disciplina preventiva do eu, construções baseadas na verdade suprema: o sofrimento existe. Sábio pressuposto.

- Meditação.
- Mestre...
- Tudo existe dentro de nós.
- Mas...
- As respostas que procuras estão contigo.

Um pedaço de terra, rocha feita verde, impressão numa luz difusa: a memória inicial. O princípio seria o fim? Duvidava. Duvidara sempre. Ego? O suficiente para sobreviver aos acréscimos do inevitável: nascer, envelhecer e morrer. Serenidade? A precisa para não sucumbir aos erros comuns: felicidade, esperança e justiça. Preservar a ausência do desnecessário, insistir na suficiência da racionalidade lógica de quem encontrara a chave: não há cura para o sofrimento. Sábio pressuposto.

- Instrospecção.
- Mestre...
- É impossível olhar para fora sem ver por dentro.
- Mas...
- És a medida de todas as coisas.

O mar azul, ilusão de óptica, reflexo do céu inacessível: a metáfora suprema. Os anjos como engenho de uma máquina movida a pó de estrelas? Gigante monstruosidade gerada pelo imaginário da condição humana. Necessidade de aprovação. Desejo de redenção. Diluir a responsabilidade numa axiologia reduzida a ritos e superstições: suspeitava. Suspeitara sempre. História? A impossibilidade de soltar raízes: a inevitabilidade do era uma vez. E outra. Sempre.

M. Lisboa: 2016

Ilha de Santa Maria - Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor)

terça-feira, 12 de julho de 2016

Tempos

Futuro

O mar será uma muralha, outra vez, as ondas rolarão como vagas guerreiras e invasoras. Os peixes perseguirão outros predadores, será uma vez, livres de anzóis e arpões.

- Monstros marinhos?
- O anverso das simbologias.

A terra como um repositório, inesperado, a lava invadirá o passado presente tornado memória apagada. As árvores submersas renascerão rasteiras para outro princípio.

- Uma coisa diferente?
- Restos de vidas irrepetíveis.

O céu esquecerá o azul, incompleto, as nuvens dissipar-se-ão em fragmentos divididos sem forma ou magia. O vento insistirá em espirais incompreensíveis, sem voz.

- Apagar-se-ão os pássaros?
- E as penas também.

O sol empalidecerá na bruma cinzenta e espessa, inusitado, como um holofote coberto para um cenário sem alguém. A luminosidade estará difusa em partículas sombrias.

- Luz e sombra?
- Continuarão.

A lua prateada perderá o valor místico da imaginação, abandono surreal, esquecida pelas vozes tornadas silêncio absoluto. Matéria pura.

- E as fases?
- Serão invisíveis.


M. Lisboa: 2016

São Roque do Pico - Ilha do Pico, Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor)

domingo, 22 de maio de 2016

Tempos

Pretérito mais que perfeito

Não tivera consciência política mas nascera com consciência social: conhecera a miséria. Vivera nela. Com ela. Quisera lutar pela justiça, pela verdade e pela liberdade. Ingénuo, filiara-se num partido, fora um militante de conversas à mesa de café, entre cigarros e bebidas espirituosas. O ímpeto revolucionário esvanecera com a década de oitenta, sedimentara a sua militância num cargo de acessor – área cultural, evidentemente.

- Outra revolução?
- Não há tempo.
- E faltam espaços.

Atirara o dicionário contra a parede, furiosa, e largara a boquilha na secretária. Quisera gritar mas conseguira travar o som na garganta, resfolegara – um animal, a raiva transformara-a num animal, descontroladamente. "Uma senhora que escreve versos", repetira a frase lida, cada palavra no seu tempo certo, definição de poetisa. A ilha, a freguesia, a família, a tradição, a sociedade. Poeta, decidira naquele momento, seria poeta.

- O senhor escreve versos?
- Poesia.
- O meu pai era cantador.

O padre segurara metade da laranja, olhos fechados, concentrara-se para não se deixar embalar pelas ondas, o doce do fruto substituíra o sabor acre do enjôo. Os outros homens, pescadores, por respeito ao seu papel de mediador entre o céu e a terra, haviam deixado de o fitar, ocuparam-se na faina. As nuvens quebraram o céu que ameaçara tornar-se cinzento, tomaram formas insensíveis ao desaparecimento do azul, perpetuaram-se para iniciar a tormenta.

- Teologia da libertação.
- Não estamos no outro lado do Atlântico.
- No meio é que está a virtude.

O poeta integrara um dos catetos, um novo estrato na realidade insular, protegido pelo conforto do funcionalismo público. Conseguira vender-se apenas o suficiente, repetira-o para si próprio, sobrevivera à nação, uma ilha, afastado da metrópole. Sobre viver. Fora essa a sua intenção: tragar a vida, converter em fúria vivente todos os livros, acender todos os poemas no quotidiano – culpa do avô, o anarquista.

- Tem qualidade literária.
- Evidentemente.
- O problema são os protagonistas.
- Obviamente.
- Censura-se, portanto.
- Absolutamente.

Mais uma freguesia, não eram todas iguais mas semelhantes, um adro de igreja como praça central, gente reunida em forma de multidão – roupa escura, muita roupa escura, mulheres com lenço na cabeça e mãos cerradas nos xailes, olhos no chão; os homens adiante. Barbas, bigodes e patilhas – fartos. E as crianças. Seres acumulados em brincadeiras, intransigentes ao redor, luz a quebrar o soturno.


M. Lisboa: 2016

São Roque do Pico, Ilha do Pico - Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor)

terça-feira, 29 de março de 2016

Tempos

Pretérito perfeito

A mulher deixou-se ficar na soleira da porta, braços caídos, a fitar o chão. Teve medo de encarar o homem, sentado à mesa, por não saber esconder o medo: como seria ele? O regedor, quando a chamara, fora peremptório, explicara-lhe a situação com palavras complicadas. Trataria da casa de um aristocrata, homem da nobreza, que não respeitou as suas origens, um traidor, talvez louco. Exilado. Anarquista.

- O que é isso?
- São pessoas que não respeitam a ordem.
- As ordens de quem?

O homem acendeu o cigarro e aspirou o fumo, com prazer, fitou o oceano que lhe invadia a janela. O orgulho encheu-o, como as vagas sucessivas, sentiu-o no movimento contrário ao ar que expirou: tudo pela nação, nada contra a nação. Soltou uma gargalhada, lembrou-se da forma como o pobretanas lhe entregou os panfletos, dois socos bastaram, norma da legião para os interrogatórios, comunistas, pensou, sem classe ou honra.

- Somos todos iguais, camarada, temos os mesmos direitos.
- E os ricos?
- São ricos por que trabalhamos para eles.

A professora segurou a palmatória e tomou-lhe o peso, recordou-se da sua infância, não conseguiu evitar estremecer, rapidamente... voltou a inteirar-se da sua função: a fotografia e o cruxifixo. Avançou para a primeira fila da classe e, sem emoção exterior, ordenou à criança que estendesse a mão: aplicou o castigo sem que as lágrimas e os gritos a comovessem. Silêncio absoluto. Depois.

- Senhora professora, o meu pai é pescador e...
- Alguém lhe deu permissão para falar? No dia do exame deverão trazer sapatos.
- Nosso Senhor Jesus Cristo também andava descalço.

O vento trespassou-lhe o corpo, frio como o azul estendido à sua frente, no sopé da montanha, percebeu-se quase livre. Adjacente. Transformado em ilha. Sem causas ou lutas, sem interlocutores, com a solidão preenchida em livros lidos e relidos, consecutivamente, só.

- O trabalho é simples, limpar a casa, lavar a roupa e preparar as refeições.
- Sim, senhor.
- E contar-me tudo o que vê. Tudo.

A criança quis fugir, sentiu o perigo imediato, o corpo não lhe respondeu; encontraram o cadáver no dia seguinte, foi sepultada na vala comum, não se lhe conhecia família. O cais foi a sua casa, ali mendigou pão e a caridade de alguns – quase sempre forasteiros, os outros viram-na como parte do cenário: um ponto de fuga.


M. Lisboa: 2016

São Roque do Pico, Ilha do Pico - Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor)

quinta-feira, 24 de março de 2016

Tempos

Pretérito imperfeito

O homem procurava encontrar coragem onde sabia que ela não existia, não tinha nada a perder, por isso, entrou na sacristia – a hesitação fora quase imperceptível para quem o observava. Na freguesia nada acontecia sem que, mais cedo ou mais tarde, se soubesse: tudo era domínio público, o privado inexistia, o maldizer disfarçava-se de moral e punha a máscara da tradição.

- É igual à mãe, dali não se pode esperar nada.
- Mas... é uma criança.
- Foi criada no vício do rendimento social: falta-lhe humildade.

Faltava, sobretudo, inteligência – era este o pensamento que a sossegava, já havia ultrapassado a ingenuidade de quem sonha tornar o mundo mais justo - não existem pessoas más, todo o ser humano tem algo de bom, há sempre espaço para a mudança. Tivera apetência pelo sofrimento, um complexo de mártir: isso acabara.

- Para nos levantarmos... precisamos de cair.
- E se escorregarmos?
- O melhor, minha filha, é sabermos onde pomos os pés.

Olhou para as mãos, estavam limpas – aparentemente, o vermelho não desaparecia. A memória do acontecido, há tanto tempo, tornara-se naquela ilusão persistente, uma mancha perene e invisível aos outros. Morna, a cor quase primária insistia em aparecer-lhe, quase sempre, mal ultrapassava o portão do cemitério.

- O sangue lava a honra.
- E a verdade?
- Quando calha.

Nome de santa, a vila tinha nome de santa, o pensamento trespassou-a, inútil. Deixou-se ficar junto ao cais, ignorava os olhares dos homens no café defronte, ciente do seu cheiro a vinho e suor, fitava a outra ilha para fingir poder ser livre. Imaginava-se um peixe ou um pássaro, um animal qualquer, uma coisa com capacidade para sobreviver sem ter de vender o corpo.

- Quero confessar-me.
- É a primeira vez que entras aqui.
- Também pode ser a última.

A criança habituara-se ao desprezo, não estranhava que a pusessem de lado, no pouco que conseguia entender do mundo... intuía. Sabia como mendigar afecto, o corpo ainda não lhe permitia fazer como a mãe, por isso, instigava a pena fitando os adultos nos olhos – lágrimas fingidas à beira do abismo, sempre o mesmo: pedinchava.


M. Lisboa: 2016

São Roque do Pico, Ilha do Pico - Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor)

terça-feira, 15 de março de 2016

Azul

a invisibilidade sustenta
auto-existente tormenta
azul imaginário
miragem ou mapa?
coragem que escapa
azul ao contrário
luz a decifrar
cruz sem lugar
azul desconhecido
nesta guerra silente
desta terra... ente?
azul intuído


M. Lisboa: 2016
Céu - Lisboa (fotografia: dulcecor)