domingo, 22 de maio de 2016

Tempos

Pretérito mais que perfeito

Não tivera consciência política mas nascera com consciência social: conhecera a miséria. Vivera nela. Com ela. Quisera lutar pela justiça, pela verdade e pela liberdade. Ingénuo, filiara-se num partido, fora um militante de conversas à mesa de café, entre cigarros e bebidas espirituosas. O ímpeto revolucionário esvanecera com a década de oitenta, sedimentara a sua militância num cargo de acessor – área cultural, evidentemente.

- Outra revolução?
- Não há tempo.
- E faltam espaços.

Atirara o dicionário contra a parede, furiosa, e largara a boquilha na secretária. Quisera gritar mas conseguira travar o som na garganta, resfolegara – um animal, a raiva transformara-a num animal, descontroladamente. "Uma senhora que escreve versos", repetira a frase lida, cada palavra no seu tempo certo, definição de poetisa. A ilha, a freguesia, a família, a tradição, a sociedade. Poeta, decidira naquele momento, seria poeta.

- O senhor escreve versos?
- Poesia.
- O meu pai era cantador.

O padre segurara metade da laranja, olhos fechados, concentrara-se para não se deixar embalar pelas ondas, o doce do fruto substituíra o sabor acre do enjôo. Os outros homens, pescadores, por respeito ao seu papel de mediador entre o céu e a terra, haviam deixado de o fitar, ocuparam-se na faina. As nuvens quebraram o céu que ameaçara tornar-se cinzento, tomaram formas insensíveis ao desaparecimento do azul, perpetuaram-se para iniciar a tormenta.

- Teologia da libertação.
- Não estamos no outro lado do Atlântico.
- No meio é que está a virtude.

O poeta integrara um dos catetos, um novo estrato na realidade insular, protegido pelo conforto do funcionalismo público. Conseguira vender-se apenas o suficiente, repetira-o para si próprio, sobrevivera à nação, uma ilha, afastado da metrópole. Sobre viver. Fora essa a sua intenção: tragar a vida, converter em fúria vivente todos os livros, acender todos os poemas no quotidiano – culpa do avô, o anarquista.

- Tem qualidade literária.
- Evidentemente.
- O problema são os protagonistas.
- Obviamente.
- Censura-se, portanto.
- Absolutamente.

Mais uma freguesia, não eram todas iguais mas semelhantes, um adro de igreja como praça central, gente reunida em forma de multidão – roupa escura, muita roupa escura, mulheres com lenço na cabeça e mãos cerradas nos xailes, olhos no chão; os homens adiante. Barbas, bigodes e patilhas – fartos. E as crianças. Seres acumulados em brincadeiras, intransigentes ao redor, luz a quebrar o soturno.


M. Lisboa: 2016

São Roque do Pico, Ilha do Pico - Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor)

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