Pretérito
mais que perfeito
Não
tivera consciência política mas nascera com consciência social:
conhecera a miséria. Vivera nela. Com ela. Quisera lutar pela
justiça, pela verdade e pela liberdade. Ingénuo, filiara-se num
partido, fora um militante de conversas à mesa de café, entre
cigarros e bebidas espirituosas. O ímpeto revolucionário esvanecera
com a década de oitenta, sedimentara a sua militância num cargo de
acessor – área cultural, evidentemente.
- Não há tempo.
- E
faltam espaços.
Atirara
o dicionário contra a parede, furiosa, e largara a boquilha na
secretária. Quisera gritar mas conseguira travar o som na garganta,
resfolegara – um animal, a raiva transformara-a num animal,
descontroladamente. "Uma senhora que escreve versos",
repetira a frase lida, cada palavra no seu tempo certo, definição
de poetisa. A ilha, a freguesia, a família, a tradição, a
sociedade. Poeta, decidira naquele momento, seria poeta.
- Poesia.
- O
meu pai era cantador.
O
padre segurara metade da laranja, olhos fechados, concentrara-se para
não se deixar embalar pelas ondas, o doce do fruto substituíra o
sabor acre do enjôo. Os outros homens, pescadores, por respeito ao
seu papel de mediador entre o céu e a terra, haviam deixado de o
fitar, ocuparam-se na faina. As nuvens quebraram o céu que ameaçara
tornar-se cinzento, tomaram formas insensíveis ao desaparecimento do
azul, perpetuaram-se para iniciar a tormenta.
- Não
estamos no outro lado do Atlântico.
- No
meio é que está a virtude.
O
poeta integrara um dos catetos, um novo estrato na realidade insular,
protegido pelo conforto do funcionalismo público. Conseguira
vender-se apenas o suficiente, repetira-o para si próprio,
sobrevivera à nação, uma ilha, afastado da metrópole. Sobre
viver. Fora essa a sua intenção: tragar a vida, converter em fúria
vivente todos os livros, acender todos os poemas no quotidiano –
culpa do avô, o anarquista.
- Evidentemente.
- O
problema são os protagonistas.
- Obviamente.
- Censura-se,
portanto.
- Absolutamente.
Mais
uma freguesia, não eram todas iguais mas semelhantes, um adro de
igreja como praça central, gente reunida em forma de multidão –
roupa escura, muita roupa escura, mulheres com lenço na cabeça e
mãos cerradas nos xailes, olhos no chão; os homens adiante. Barbas,
bigodes e patilhas – fartos. E as crianças. Seres acumulados em
brincadeiras, intransigentes ao redor, luz a quebrar o soturno.
M.
Lisboa: 2016
São Roque do Pico, Ilha do Pico - Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor) |
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