Ocorrência 3
A
mulher cantarola baixinho enquanto passa a roupa a ferro; sentada no
sofá, a velha controla os canais de televisão e os programas que
passam no ecrã; ao toque do telefone, o ferro de engomar pousa e o
som do televisor baixa. Cessa o canto, uma leva o telefone à outra e
volta à tarefa doméstica. Enquanto o cesto se preenche com roupa
engomada, as palavras da conversa telefónica são ampliadas pela
sala espaçosa, a convalescente, educada para a invisibilidade das
serviçais, troca boatos fundamentais e queixas semanais com a filha:
antes eram as sopeiras, agora são as imigrantes, todas iguais.
Quando a conversa terminou, a tábua de passar a ferro já estava
arrumada e os sons vindos da cozinha emprestavam vida à casa. A
velha adormeceu.
- Uma
mentira pode ser repetida mil vezes e nunca deixará de ser mentira.
- Ela
está a menosprezar a nossa história, a experiência de outras
mulheres como nós.
- Tu
precisas de trabalhar. Fica só até conseguires algo melhor.
- Sabes
que o filho é poeta? Nem sei como...
- Se
puxar à mãe deve escrever lindos versos... estás a rir de quê?
- É
a ironia... como a realidade ultrapassa a ficção...
- Tem
piada, pronto. Não é preciso filosofar.
O
professor chegou a casa ainda impressionado com os últimos dois
tempos da tarde, uma aula sobre a importância da luta pelos direitos
civis, nas sociedades ocidentais, transformara-se numa acesa troca de
ideias acerca de religião, estado e política. Estupefacto, o
professor constatou que os zombies não só ouviam como até
conseguiam argumentar, percebeu: o importante era encontrar o tema
certo para lhes soltar a língua e criar debate. Ao ouvir as opiniões
de alunos e alunas, o educador tinha experimentado emoções
variadas, valera-lhe a sua experiência nos jogos de cartas para
parecer imperturbável. Também ficou impressionado com a sua própria
ignorância, percebeu o quão longe estava dos valores daqueles
jovens e das suas referências culturais.
- Tal
como tu continuas a ser professor.
- E
consegues viver disso?
- Tu
vives bem com o teu salário?
- Pago
as contas à justa, resta pouco.
- Tal
como eu.
- São
coisas diferentes.
- Diferentes
mas necessárias, ambas.
- Sou
forçado a concordar.
- Brindamos a isso?
A
menina correu para o outro lado da rua, onde os destroços empilhados
formavam a porta de entrada para o bairro sem nome oficial, gritou
pela mãe que, ajoelhada junto aos novos pedaços de betão armado e
ferros retorcidos, não a ouviu e continuou a chorar. Agora dois
grandes montes de entulho, minutos antes a casa, um micro cenário de
destruição. Na noite anterior, avisada pela empregada de limpeza do
café, tinha conseguido reunir algumas coisas em sacos de plástico,
tudo guardado na igreja. O operador da máquina, funcionário
autárquico cumpridor e cioso das suas funções, sentiu uma culpa
avassaladora ao olhá-las. Foram apenas instantes; as palavras do seu
superior voltaram a endurecer-lhe o coração: que voltassem para a
terra deles.
- Eu
fechei os olhos e contei até cem.
- Tão
pouco?
- Primeiro,
contei na nossa língua.
- Então
foi pouco tempo.
- Depois
contei na língua deles.
- Demora
sempre mais.
M.
Lisboa: 2016
Ilha de Santa Maria - Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor) |
Sem comentários:
Enviar um comentário