terça-feira, 1 de novembro de 2016

Ocorrências

Ocorrência 3

A mulher cantarola baixinho enquanto passa a roupa a ferro; sentada no sofá, a velha controla os canais de televisão e os programas que passam no ecrã; ao toque do telefone, o ferro de engomar pousa e o som do televisor baixa. Cessa o canto, uma leva o telefone à outra e volta à tarefa doméstica. Enquanto o cesto se preenche com roupa engomada, as palavras da conversa telefónica são ampliadas pela sala espaçosa, a convalescente, educada para a invisibilidade das serviçais, troca boatos fundamentais e queixas semanais com a filha: antes eram as sopeiras, agora são as imigrantes, todas iguais. Quando a conversa terminou, a tábua de passar a ferro já estava arrumada e os sons vindos da cozinha emprestavam vida à casa. A velha adormeceu.

- Não imaginas como é difícil escutar aquelas conversas.
- Uma mentira pode ser repetida mil vezes e nunca deixará de ser mentira.
- Ela está a menosprezar a nossa história, a experiência de outras mulheres como nós.
- Tu precisas de trabalhar. Fica só até conseguires algo melhor.
- Sabes que o filho é poeta? Nem sei como...
- Se puxar à mãe deve escrever lindos versos... estás a rir de quê?
- É a ironia... como a realidade ultrapassa a ficção...
- Tem piada, pronto. Não é preciso filosofar.

O professor chegou a casa ainda impressionado com os últimos dois tempos da tarde, uma aula sobre a importância da luta pelos direitos civis, nas sociedades ocidentais, transformara-se numa acesa troca de ideias acerca de religião, estado e política. Estupefacto, o professor constatou que os zombies não só ouviam como até conseguiam argumentar, percebeu: o importante era encontrar o tema certo para lhes soltar a língua e criar debate. Ao ouvir as opiniões de alunos e alunas, o educador tinha experimentado emoções variadas, valera-lhe a sua experiência nos jogos de cartas para parecer imperturbável. Também ficou impressionado com a sua própria ignorância, percebeu o quão longe estava dos valores daqueles jovens e das suas referências culturais.

- Continuas a escrever poesia?
- Tal como tu continuas a ser professor.
- E consegues viver disso?
- Tu vives bem com o teu salário?
- Pago as contas à justa, resta pouco.
- Tal como eu.
- São coisas diferentes.
- Diferentes mas necessárias, ambas.
- Sou forçado a concordar.
- Brindamos a isso?

A menina correu para o outro lado da rua, onde os destroços empilhados formavam a porta de entrada para o bairro sem nome oficial, gritou pela mãe que, ajoelhada junto aos novos pedaços de betão armado e ferros retorcidos, não a ouviu e continuou a chorar. Agora dois grandes montes de entulho, minutos antes a casa, um micro cenário de destruição. Na noite anterior, avisada pela empregada de limpeza do café, tinha conseguido reunir algumas coisas em sacos de plástico, tudo guardado na igreja. O operador da máquina, funcionário autárquico cumpridor e cioso das suas funções, sentiu uma culpa avassaladora ao olhá-las. Foram apenas instantes; as palavras do seu superior voltaram a endurecer-lhe o coração: que voltassem para a terra deles.

- Quanto tempo demorou para a casa cair?
- Eu fechei os olhos e contei até cem.
- Tão pouco?
- Primeiro, contei na nossa língua.
- Então foi pouco tempo.
- Depois contei na língua deles.
- Demora sempre mais.

M. Lisboa: 2016

Ilha de Santa Maria - Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor)

Sem comentários:

Enviar um comentário