Outras flores
A luz solar rasgou as amplas janelas,
ampliou-lhe os pensamentos, sentiu-se envolta numa esfera brilhante,
não sentiu o tempo passar; estremeceu com as pancadas na porta, o
bebé também. E se...? Abriu a porta, olhos encontrados, a pergunta
desapareceu; caminhou ao seu encontro, relativizou o mundo interior,
sorriu.
Não conquistou de ânimo leve, nem se
deixou conquistar de outra forma. Sério sempre. O colégio jesuíta
moldou-lhe o discurso para o ensinar a ler, disciplinou-o na
gramática emocional, ensinou-lhe o subterfúgio da erudição.
Encarnou o bom selvagem até desembarcar em Lisboa: construiu-se
homem novo.
- Quando conheço a rapariga?
- No próximo domingo, já está tudo
preparado, ela encontrava-se com o camarada no Jardim da Estrela,
procederão da mesma forma. Chama-se Rosa. Não levantarão
suspeitas, a notícia do casamento já circula pelo bairro, o
preconceito vai jogar a nosso favor.
- Somos todos iguais, não é verdade?
-...
Viu-a mal o eléctrico parou,
estupefacto, e seguiu-lhe os passos, incrédulo, cada vez mais
próximo do inevitável, pasmado, a distância entre ambos
(definitivamente) eliminada. Criança, dez ou onze anos, a avó
tinha-lhe contado sobre como seria a sua mulher: tinha sonhado com
ela, segundo os preceitos dos antepassados. Ninguém discordara da
palavra anciã, décadas imensuráveis autorizaram-na perante os mais
cépticos, mesmo sem lhe perceberem sentido – ele vai atravessar o
mar, pelo céu, até ela mas... seu filho chegará primeiro.
Certo dia, sentada na berma da estrada a
vender mandioca, a velha surda negou resposta a um polícia e foi
metralhada; viveu o tempo do sol desaparecer num horizonte (para
aparecer noutro). Morta, a avó tinha-lhe ensinado o colonialismo, a
importância da memória, e agora a realidade do sonho. Quantos podem dizer
ter visto um sonho realidade? Ser? Existir? Caminhar na nossa
direcção? O olhar de reconhecimento, sem espaço ou tempo,
ultrapassou-o; a sublime, ou momentânea, estranheza estacou ambos.
Aconteceu: decerto, a avó sorriu, na berma do céu.
Os
senhores partiram para a província, as serviçais encarregues da
manutenção do apartamento, varanda para o Largo do Carmo, repetiram
a frase a cada entrada militar. Porque as fardas se reconhecem umas
às outras, a rapariga e a velhota ficaram ambas encostadas ao
centenário aparador, os homens de uniforme dialogavam entre si e
ignoravam as criadas.
-
Não vamos ficar aqui especadas, Liberdade, vamos mas é lá para
dentro. É preciso fazer qualquer coisa para estes homens comerem, já
o meu falecido pai dizia: “onde falta o pão não há razão”.
-
Temos tempo?
-
Tempo?
-
Eles são tantos...
-
Temos tempo, não te apoquentes, como o meu falecido avô dizia:
“tempo é intento”.
-
Como é que sabe?
-
Já meu falecido bisavô dizia,“ver para crer”, tenho visto
muito.
-
As tropas estão aqui em casa...
-
Quando eu tinha a tua idade, a revolução demorou semanas até
chegar a Lisboa..
-
Mas nós já estamos em Lisboa.
-
Sem pão... não há revolução.
-
E essa frase é de quem?
-
Minha, ora essa!
M.
Lisboa: 2015
Largo do Carmo, 25 de Abril de 2014 - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor) |
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