sexta-feira, 24 de abril de 2015

Árvores

Outras flores
 
A luz solar rasgou as amplas janelas, ampliou-lhe os pensamentos, sentiu-se envolta numa esfera brilhante, não sentiu o tempo passar; estremeceu com as pancadas na porta, o bebé também. E se...? Abriu a porta, olhos encontrados, a pergunta desapareceu; caminhou ao seu encontro, relativizou o mundo interior, sorriu.

Não conquistou de ânimo leve, nem se deixou conquistar de outra forma. Sério sempre. O colégio jesuíta moldou-lhe o discurso para o ensinar a ler, disciplinou-o na gramática emocional, ensinou-lhe o subterfúgio da erudição. Encarnou o bom selvagem até desembarcar em Lisboa: construiu-se homem novo.

- Quando conheço a rapariga?
- No próximo domingo, já está tudo preparado, ela encontrava-se com o camarada no Jardim da Estrela, procederão da mesma forma. Chama-se Rosa. Não levantarão suspeitas, a notícia do casamento já circula pelo bairro, o preconceito vai jogar a nosso favor.
- Somos todos iguais, não é verdade?
-...

Viu-a mal o eléctrico parou, estupefacto, e seguiu-lhe os passos, incrédulo, cada vez mais próximo do inevitável, pasmado, a distância entre ambos (definitivamente) eliminada. Criança, dez ou onze anos, a avó tinha-lhe contado sobre como seria a sua mulher: tinha sonhado com ela, segundo os preceitos dos antepassados. Ninguém discordara da palavra anciã, décadas imensuráveis autorizaram-na perante os mais cépticos, mesmo sem lhe perceberem sentido – ele vai atravessar o mar, pelo céu, até ela mas... seu filho chegará primeiro.

Certo dia, sentada na berma da estrada a vender mandioca, a velha surda negou resposta a um polícia e foi metralhada; viveu o tempo do sol desaparecer num horizonte (para aparecer noutro). Morta, a avó tinha-lhe ensinado o colonialismo, a importância da memória, e agora a realidade do sonho. Quantos podem dizer ter visto um sonho realidade? Ser? Existir? Caminhar na nossa direcção? O olhar de reconhecimento, sem espaço ou tempo, ultrapassou-o; a sublime, ou momentânea, estranheza estacou ambos. Aconteceu: decerto, a avó sorriu, na berma do céu.

Os senhores partiram para a província, as serviçais encarregues da manutenção do apartamento, varanda para o Largo do Carmo, repetiram a frase a cada entrada militar. Porque as fardas se reconhecem umas às outras, a rapariga e a velhota ficaram ambas encostadas ao centenário aparador, os homens de uniforme dialogavam entre si e ignoravam as criadas.

- Não vamos ficar aqui especadas, Liberdade, vamos mas é lá para dentro. É preciso fazer qualquer coisa para estes homens comerem, já o meu falecido pai dizia: “onde falta o pão não há razão”.
- Temos tempo?
- Tempo?
- Eles são tantos...
- Temos tempo, não te apoquentes, como o meu falecido avô dizia: “tempo é intento”.
- Como é que sabe?
- Já meu falecido bisavô dizia,“ver para crer”, tenho visto muito.
- As tropas estão aqui em casa...
- Quando eu tinha a tua idade, a revolução demorou semanas até chegar a Lisboa..
- Mas nós já estamos em Lisboa.
- Sem pão... não há revolução.
- E essa frase é de quem?
- Minha, ora essa!

M. Lisboa: 2015

Largo do Carmo, 25 de Abril de 2014 - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

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