domingo, 12 de abril de 2015

Árvores

Sementes e raízes

Vivia em Lisboa há quase dez anos, tinha vindo para licenciar-se em Agronomia mas desistiu daquele curso e matriculou-se em Letras; à publicação dos primeiros contos em revistas literárias, quando ainda só se intuía o pós-modernismo, sucederam-se poemas esparsos em colectâneas. As críticas tinham-lhe antecipado um romance maldito mas um interrogatório na PIDE, cortesia da vizinha – insensível ao lusotropicalismo, condenou-o à poesia. Até essa altura, aconchegado em tertúlias académicas e bailes de fim-de-semana, faltara-lhe consciência política.

- O senhor tem sido visto em lugares públicos com companhias pouco recomendáveis.
- O senhor agente terá de ser mais específico.
- Refiro-me a alguns dos seus compatriotas...
- Somos todos portugueses.
- ...

Resolveu ir fumar no exterior para desentorpecer as pernas, tinha-se antecipado aos colegas na chegada à biblioteca, merecia um intervalo da leitura obrigatória; ao alívio providenciado pela nicotina, juntou-se um invernal sol: morno, menos astro por não ser o mesmo deste lado do mar, terminou o cigarro quando o grupo chegou. Formavam uma espécie de manta de retalhos do império, provenientes das várias províncias ultramarinas, uniam-se na metrópole em cursos académicos.

- Francamente! Ainda não percebeste?
- Não, ainda não percebi... há sempre espaço para o diálogo.
- Espaço e tempo, mas já passaram quatrocentos anos...
- Houve mudanças, a nossa presença aqui é uma prova disso.
- Mas precisaste de vir viver na metrópole para te descobrires colonizado.

A funcionária da biblioteca insistiu na expressão severa mas isso não os impediu de continuarem a cochichar, por Deus!, alguns até gargalhavam; voltou a lançar os olhos à secretária, irritada folheou a revista feminina, patriótica. Selvagens, pensou: nem sabem estar numa biblioteca, conversas e gargalhadas... por que não estudam na terra deles? E de onde vem tanta alegria? Uma biblioteca é um sítio sério. Nem sequer podia ir até à mesa para os mandar calar, o noivo da melhor amiga integrava o grupo; cerrou mais a expressão, ao recordar a conversa entre ambas, tentara alertar a amiga para o perigo mas a outra rira-se e chamara-lhe provinciana, tolinha. Não voltaram a tocar no assunto.

- Quem é aquela ali?
- Onde? Qual?
- Ao lado da tua miúda.
- Não a reconheces? É a tipa da biblioteca.
- Está diferente.

... vou confessar-lho, já a tinha visto na biblioteca mas foi no baile que a olhei pela primeira vez e, vou confessar-lho também, a sua relutância só fortaleceu o meu propósito de conquistá-la. Parto com a certeza de termos criado boas memórias...”

- Posso convidá-la para dançar? (mão estendida)
- Poder pode, eu não aceito.
- Porquê? (mão recolhida e sorriso aberto)
- Não quero.
- Porquê? (olhos brilhantes)
- Estou cansada.

... os tempos estão a mudar e determinadas circunstâncias já não pesam como antes, eu próprio, crioulo a escrever-lhe esta carta, confirmo essa natureza mutável dos tempos e das mentalidades. Não se apoquente e não tema, palavra de honra, o segredo é só nosso...”

- A menina dança?
- Não posso. (mãos apertadas no regaço)
- Continua cansada?
- Talvez. (palavra incontrolável)

... com muita pena minha, não posso jurar pela ética do meu amigo, com quem partilhei confidências, confesso. Mas decerto não colocará em risco a honra da melhor amiga da sua noiva. Nem sequer tem razões para isso...”

M. Lisboa: 2015

Reflexos - Parque das Nações: cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

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