Sementes
e raízes
Vivia
em Lisboa há quase dez anos, tinha vindo para licenciar-se em
Agronomia mas desistiu daquele curso e matriculou-se em Letras; à
publicação dos primeiros contos em revistas literárias, quando
ainda só se intuía o pós-modernismo, sucederam-se poemas esparsos
em colectâneas. As críticas tinham-lhe antecipado um romance
maldito mas um interrogatório na PIDE, cortesia da vizinha –
insensível ao lusotropicalismo, condenou-o à poesia. Até essa
altura, aconchegado em tertúlias académicas e bailes de
fim-de-semana, faltara-lhe consciência política.
-
O senhor tem sido visto em lugares públicos com companhias pouco
recomendáveis.
-
O senhor agente terá de ser mais específico.
-
Refiro-me a alguns dos seus compatriotas...
-
Somos todos portugueses.
-
...
Resolveu
ir fumar no exterior para desentorpecer as pernas, tinha-se
antecipado aos colegas na chegada à biblioteca, merecia um intervalo
da leitura obrigatória; ao alívio providenciado pela nicotina,
juntou-se um invernal sol: morno, menos astro por não ser o mesmo
deste lado do mar, terminou o cigarro quando o grupo chegou. Formavam
uma espécie de manta de retalhos do império, provenientes das
várias províncias ultramarinas, uniam-se na metrópole em cursos
académicos.
-
Francamente! Ainda não percebeste?
-
Não, ainda não percebi... há sempre espaço para o diálogo.
-
Espaço e tempo, mas já passaram quatrocentos anos...
-
Houve mudanças, a nossa presença aqui é uma prova disso.
-
Mas precisaste de vir viver na metrópole para te descobrires
colonizado.
A
funcionária da biblioteca insistiu na expressão severa mas isso não
os impediu de continuarem a cochichar, por Deus!, alguns até
gargalhavam; voltou a lançar os olhos à secretária, irritada
folheou a revista feminina, patriótica. Selvagens, pensou: nem sabem
estar numa biblioteca, conversas e gargalhadas... por que não
estudam na terra deles? E de onde vem tanta alegria? Uma biblioteca
é um sítio sério. Nem sequer podia ir até à mesa para os mandar
calar, o noivo da melhor amiga integrava o grupo; cerrou mais a
expressão, ao recordar a conversa entre ambas, tentara alertar a
amiga para o perigo mas a outra rira-se e chamara-lhe provinciana,
tolinha. Não voltaram a tocar no assunto.
-
Quem é aquela ali?
-
Onde? Qual?
-
Ao lado da tua miúda.
-
Não a reconheces? É a tipa da biblioteca.
-
Está diferente.
“...
vou confessar-lho, já a tinha
visto na biblioteca mas foi no baile que a olhei pela primeira vez e,
vou confessar-lho também, a sua relutância só fortaleceu o meu
propósito de conquistá-la. Parto com a certeza de termos criado
boas memórias...”
-
Posso convidá-la para dançar? (mão estendida)
-
Poder pode, eu não aceito.
-
Porquê? (mão recolhida e sorriso aberto)
-
Não quero.
-
Porquê? (olhos brilhantes)
-
Estou cansada.
“...
os tempos estão a mudar e
determinadas circunstâncias já não pesam como antes, eu próprio,
crioulo a escrever-lhe esta carta, confirmo essa natureza mutável
dos tempos e das mentalidades. Não se apoquente e não tema, palavra
de honra, o segredo é só nosso...”
-
A menina dança?
-
Não posso. (mãos apertadas no regaço)
-
Continua cansada?
-
Talvez. (palavra incontrolável)
“...
com muita pena minha, não
posso jurar pela ética do meu amigo, com quem partilhei
confidências, confesso. Mas decerto não colocará em risco a honra
da melhor amiga da sua noiva. Nem sequer tem razões para isso...”
M.
Lisboa: 2015
Reflexos - Parque das Nações: cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor) |
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