Troncos
e ramos
Submeteu-se,
alternativa à misoginia paterna, ao serviço em casa de uma viúva:
o senhor fora médico, a senhora fazia caridade, tinha-lhe dito a
madrinha na estação dos comboios; como está o teu pai?, está bem,
obrigado –  (quem usa calças são as putas, para viveres aqui é
como eu quero, estás a ouvir?), manda cumprimentos. 
- Que
 idade tem o rapaz?
 
- Dez
 anos, esteve na escola, sabe ler e escrever.
 
- Preciso
 de alguém para ajudar lá na fazenda, só se pode confiar na
 família...
- É
 bom rapaz e trabalhador. 
 
Tinha pousado o esfregão, soltos os
braços do tampo marmoreado da mesa, as faces vermelhas pela raiva
invasora e o olhar trovão –  (a minha
roupa não é para aqui chamada: sou maior e vacinada, não devo nada
a ninguém!), com o soco caíra desamparada; a mãe, sentada no canto
da cozinha,  silêncio, como sempre.
 - Em África... as coisas eram
 diferentes.
 
 - Sempre a mesma conversa... bebe mais um
 copo!
 
 - Um gajo trabalhava de manhã à
 noite... mas tinha a recompensa. 
- Poupava-se no ordenado dos empregados,
 certo?
 
O nariz e os olhos inchados impediram-na
de madrugar para a vinha, a mãe mandara recado pelo irmão mais
novo: diz-lhes que ela está com febre, não te demores. Sentira-a
sentar-se na cadeira: estás acordada, eu sei, não fales, vou
dizer-te coisas importantes, demorei a vida inteira a aprendê-las.
Poupa as lágrimas, a vida é longa. O teu pai nasceu homem, o
destino dele é outro. Podes saber ler e escrever mas ele é o
primeiro cá da casa, em tudo. Sempre foi assim e sempre assim será.
Esta é a primeira coisa importante.
 - Ele vai recuperar?
 
 - O senhor doutor disse... o lado
 esquerdo deixou de funcionar.
 
 - Nunca funcionou.
- Filha, não digas essas coisas.
A
notícia da morte dele convidou-a ao regresso temporário, a patroa
imediatamente lhe concedera uma semana; aproveita para estares com a
família, obrigada minha senhora, ele estava doente?, não minha
senhora: era um homem como os outros, atirar-se assim... para dentro
de um poço, foi a vontade de Deus, ninguém está livre do seu
destino, pois não minha senhora, podes até ficar mais um ou dois
dias: não há problema, obrigada minha senhora, toma leva isto:
depois fazemos contas, obrigada minha senhora, sentimentos à tua
mãe, obrigada minha senhora. 
- Julguei que não viesses.
- É a minha obrigação.
- A tua obrigação era estar presente.
- Não, essa obrigação foi sempre sua.
M.
Lisboa: 2015
| Particularidade em árvore - Parque das Nações: cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor) | 
 
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