sábado, 18 de abril de 2015

Árvores

Troncos e ramos

Submeteu-se, alternativa à misoginia paterna, ao serviço em casa de uma viúva: o senhor fora médico, a senhora fazia caridade, tinha-lhe dito a madrinha na estação dos comboios; como está o teu pai?, está bem, obrigado – (quem usa calças são as putas, para viveres aqui é como eu quero, estás a ouvir?), manda cumprimentos.

- Que idade tem o rapaz?
- Dez anos, esteve na escola, sabe ler e escrever.
- Preciso de alguém para ajudar lá na fazenda, só se pode confiar na família...
- É bom rapaz e trabalhador.

Tinha pousado o esfregão, soltos os braços do tampo marmoreado da mesa, as faces vermelhas pela raiva invasora e o olhar trovão – (a minha roupa não é para aqui chamada: sou maior e vacinada, não devo nada a ninguém!), com o soco caíra desamparada; a mãe, sentada no canto da cozinha, silêncio, como sempre.

- Em África... as coisas eram diferentes.
- Sempre a mesma conversa... bebe mais um copo!
- Um gajo trabalhava de manhã à noite... mas tinha a recompensa. 
- Poupava-se no ordenado dos empregados, certo?
 
O nariz e os olhos inchados impediram-na de madrugar para a vinha, a mãe mandara recado pelo irmão mais novo: diz-lhes que ela está com febre, não te demores. Sentira-a sentar-se na cadeira: estás acordada, eu sei, não fales, vou dizer-te coisas importantes, demorei a vida inteira a aprendê-las. Poupa as lágrimas, a vida é longa. O teu pai nasceu homem, o destino dele é outro. Podes saber ler e escrever mas ele é o primeiro cá da casa, em tudo. Sempre foi assim e sempre assim será. Esta é a primeira coisa importante.

- Ele vai recuperar?
- O senhor doutor disse... o lado esquerdo deixou de funcionar.
- Nunca funcionou.
- Filha, não digas essas coisas.

A notícia da morte dele convidou-a ao regresso temporário, a patroa imediatamente lhe concedera uma semana; aproveita para estares com a família, obrigada minha senhora, ele estava doente?, não minha senhora: era um homem como os outros, atirar-se assim... para dentro de um poço, foi a vontade de Deus, ninguém está livre do seu destino, pois não minha senhora, podes até ficar mais um ou dois dias: não há problema, obrigada minha senhora, toma leva isto: depois fazemos contas, obrigada minha senhora, sentimentos à tua mãe, obrigada minha senhora.


- Julguei que não viesses.

- É a minha obrigação.

- A tua obrigação era estar presente.

- Não, essa obrigação foi sempre sua.


M. Lisboa: 2015

Particularidade em árvore - Parque das Nações: cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

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