terça-feira, 21 de abril de 2015

Árvores

Folhas

Conseguia passar dias inteiros sem ouvir a própria voz, habituara-se ao silêncio na prisão: durante anos não pudera confiar em ninguém, a memória dos serões entre grades... ainda feria insuportavelmente; no exílio, longe do maldito jardim à beira-mar plantado, apagara os laços insistentes, declarara o óbito da família: a raiva tão funda, sempre a escoar-se dor, amainara então.

- Mas a madrinha ainda não se tinha reformado quando... está viúva há quanto tempo?
- Quase onze anos.
- Pois... você não consegue estar sem fazer nada, a casa é grande, a idade pesa...
- Tenho o trabalho da legião, as tarefas da congregação... a energia já não é a mesma.
- Amanhã telefono aos meus pais, lá na aldeia encontra-se uma rapariga.
- Alguém de confiança.
- Lá da aldeia? Ninguém sabe o que é política...

Quando a afilhada se despediu, insistira em preparar-lhe o jantar e tagarelara o tempo todo, à sensação de alívio juntou-se uma leve apreensão: estaria disposta a que lhe quebrassem o silêncio? Talvez seja apenas falta de hábito, pensou já deitada na cama – fria, habituei-me à companhia do passado e ao luto lento. A rapariga prometida, esguia como uma espiga, chegou num domingo solarengo e acompanhou-a à missa; deve ter mais ou menos a idade dela, lembrou-se a dado momento, mas afastou o pensamento súbito.

- O que trazes aí?
- A patroa escreveu-me este papel.
- Para quê?!
- Para eu não me esquecer das coisas.
- Coisas? Quais coisas?
- Ora, o trabalho!, o que havia de ser?
- Deixa cá ver isso, Nossa Senhora de Fátima!, a tua patroa tem cá uma letra...
- Também não percebi metade..., não te rias!, lá por trabalhares numa biblioteca...

Finda a cerimónia, a caminho de casa, perguntou à rapariga o essencial sobre a família; depois do almoço – aceitável para quem vinha da província, transmitiu-lhe a rotina, explicou-lhe as tarefas, escreveu-lhas numa folha de papel – para evitar futuros dissabores, as regras também. Mandou-a para a cozinha, sentou-se na biblioteca e permitiu-se voltar ao passado recente; recordou como tinha espalhado, diante do inspector (queres casar com um preto?), a propaganda anti-colonialista que encontrara no quarto da filha (achas que não o consigo impedir?).

- Mamã?
- Diga, querida.
- Não percebo... a princesa conseguiu sentir a ervilha?

  1. Lisboa: 2015

    Particularidade em árvores - Parque das Nações: cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

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