Folhas
Conseguia passar dias inteiros sem ouvir
a própria voz, habituara-se ao silêncio na prisão: durante anos
não pudera confiar em ninguém, a memória dos serões entre
grades... ainda feria insuportavelmente; no exílio, longe do maldito
jardim à beira-mar plantado, apagara os laços insistentes,
declarara o óbito da família: a raiva tão funda, sempre a
escoar-se dor, amainara então.
- Mas a madrinha ainda não se tinha
reformado quando... está viúva há quanto tempo?
- Quase onze anos.
- Pois... você não consegue estar sem
fazer nada, a casa é grande, a idade pesa...
- Tenho o trabalho da legião, as
tarefas da congregação... a energia já não é a mesma.
- Amanhã telefono aos meus pais, lá na
aldeia encontra-se uma rapariga.
- Alguém de confiança.
- Lá da aldeia? Ninguém sabe o que é
política...
Quando a afilhada se despediu, insistira
em preparar-lhe o jantar e tagarelara o tempo todo, à sensação de
alívio juntou-se uma leve apreensão: estaria disposta a que lhe
quebrassem o silêncio? Talvez seja apenas falta de hábito, pensou
já deitada na cama – fria, habituei-me à companhia do passado e
ao luto lento. A rapariga prometida, esguia como uma espiga, chegou
num domingo solarengo e acompanhou-a à missa; deve ter mais ou menos
a idade dela, lembrou-se a dado momento, mas afastou o pensamento
súbito.
- O que trazes aí?
- A patroa escreveu-me este papel.
- Para quê?!
- Para eu não me esquecer das coisas.
- Coisas? Quais coisas?
- Ora, o trabalho!, o que havia de ser?
- Deixa cá ver isso, Nossa Senhora de
Fátima!, a tua patroa tem cá uma letra...
- Também não percebi metade..., não
te rias!, lá por trabalhares numa biblioteca...
Finda a cerimónia, a caminho de casa,
perguntou à rapariga o essencial sobre a família; depois do almoço
– aceitável para quem vinha da província, transmitiu-lhe a
rotina, explicou-lhe as tarefas, escreveu-lhas numa folha de papel –
para evitar futuros dissabores, as regras também. Mandou-a para a
cozinha, sentou-se na biblioteca e permitiu-se voltar ao passado
recente; recordou como tinha espalhado, diante do inspector (queres
casar com um preto?), a propaganda anti-colonialista que encontrara
no quarto da filha (achas que não o consigo impedir?).
- Mamã?
- Diga, querida.
- Não percebo... a princesa conseguiu
sentir a ervilha?
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