sábado, 12 de dezembro de 2015

40 anos: os remanescentes


O deputado esticou as pernas e os braços, estava só no seu largo gabinete, podia dar-se a esse luxo sem quebrar a imagem de incansável lutador pelos direitos e liberdades dos concidadãos, afinal... pertencia a um partido liberal e o cumprimento escrupuloso do "para ser" imperava: arreganhar sempre os dentes e lutar até ao fim, nunca esquecer o próprio mérito, evidentemente. Ponderou se seria sensato acender um charuto mas acabou por fumar sem remorsos, um libertário sem complexos, tolerante.

- Somos vítimas de uma crise financeira global...
- O capitalismo não subsiste sem crises.
- Nenhum "ismo" sobrevive sem crises.
- Engana-se.
- Ah, sim?
- O populismo, meu caro, o populismo.

A ministra deixou a leitura do relatório para o final do dia, preferia tratar dos assuntos menos agradáveis nessa altura, sem agitação; primeiro, telefonou à empregada para lhe ditar a ementa do jantar, confirmar o cumprimento das tarefas diárias – com as imigrantes nunca se sabe... não era xenófoba, já perdera a conta aos afilhados entre a criadagem, prova da sua tolerância. E também era sensível a baptismos. Depois de terminar a chamada, sossegada pela supervisão impecável da economia doméstica, começou a leitura do documento: gráficos, tabelas, quadros. Suspirou. O ministério exigia viagens, conferências a toda a hora, reuniões intermináveis e relatórios sucessivos. Uma chatice.

- Cada vez percebo menos o mundo...
- É natural, sucede o mesmo com a maioria das pessoas.
- A nossa tradição é eleger representantes que prometem mas não cumprem e se desculpam...
- As mudanças estruturais exigem tempo, somos uma democracia recente e a nossa sociedade civil...

O professor pousou o livro na secretária e encarou a turma, no olhar duro estava marcado um desprezo profundo, as alunas e os alunos retribuíam a mirada com a indiferença dos adolescentes, na última fila alguns reprimiam sorrisos. Quando o contratara, a directora do colégio fora bastante clara quanto ao nível de exigência: a avaliação deveria corresponder aos parâmetros estabelecidos e estar de acordo com a estratificação social. Determinados alunos não eram classificados com nível negativo. O professor combatera o colonialismo com a força das armas, guerrilheiro pela independência, prescindira das recompensas pela vitória para educar e preparar o futuro. Utópico, sobrevivia ao presente por que sonhava o optimismo, deixara-se de guerras com carnificina: combatia a iliteracia.

- Estes artigos na imprensa internacional incomodam...
- Acha mesmo?
- Claro, os interesses no exterior, sabe como é... os direitos humanos e a publicidade negativa associada.
- Aos direitos humanos?
- ...

O grupo dividia-se em conversas, palavras de transformação soltavam-se das bocas dos homens, quando o som de automóveis no exterior os despertou para lá da troca de ideias e a existência do circundante se impôs. As forças policiais invadiram o espaço abruptamente, coordenadas na execução da violência rápida e eficaz, inquestionáveis. Transformados em prisioneiros, os homens foram conduzidos pelo circuito dos criminosos face à justiça do seu país - um estado de direito.

- Quanto vale a liberdade?
- Não sei se tem preço... mas é valiosa.
- Tem valor?
- Depende.

O jornalista carregou "play" e a voz da entrevistada encheu a sala outra vez, recordou-se de quando iniciara a profissão – a ânsia pela justiça, a busca da verdade, a ingenuidade de que as palavras podem transformar; acendeu um cigarro para afastar as memórias inúteis, concentrou-se nas recomendações do editor. O ruído da cidade morria nos vidros duplos da redacção, por isso as frases proferidas pela jovem mãe ampliavam-se, o jornalista desligou o gravador e abriu uma das janelas.

- Greve de fome.
- Não sei se terá impacto.
- A notícia?
- Ambas.


M. Lisboa: 2015

Movimento no céu - São Roque do Pico, Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor)

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