O
deputado esticou as pernas e os braços, estava só no seu largo
gabinete, podia dar-se a esse luxo sem quebrar a imagem de incansável
lutador pelos direitos e liberdades dos concidadãos, afinal...
pertencia a um partido liberal e o cumprimento escrupuloso do "para
ser" imperava: arreganhar sempre os dentes e lutar até ao fim,
nunca esquecer o próprio mérito, evidentemente. Ponderou se seria
sensato acender um charuto mas acabou por fumar sem remorsos, um
libertário sem complexos, tolerante.
- Somos
vítimas de uma crise financeira global...
- O
capitalismo não subsiste sem crises.
- Nenhum
"ismo" sobrevive sem crises.
- Engana-se.
- Ah,
sim?
- O
populismo, meu caro, o populismo.
A
ministra deixou a leitura do relatório para o final do dia, preferia
tratar dos assuntos menos agradáveis nessa altura, sem agitação;
primeiro, telefonou à empregada para lhe ditar a ementa do jantar,
confirmar o cumprimento das tarefas diárias – com as imigrantes
nunca se sabe... não era xenófoba, já perdera a conta aos
afilhados entre a criadagem, prova da sua tolerância. E também era
sensível a baptismos. Depois de terminar a chamada, sossegada pela
supervisão impecável da economia doméstica, começou a leitura do
documento: gráficos, tabelas, quadros. Suspirou. O ministério
exigia viagens, conferências a toda a hora, reuniões intermináveis
e relatórios sucessivos. Uma chatice.
- Cada
vez percebo menos o mundo...
- É
natural, sucede o mesmo com a maioria das pessoas.
- A
nossa tradição é eleger representantes que prometem mas não
cumprem e se desculpam...
- As
mudanças estruturais exigem tempo, somos uma democracia recente e a
nossa sociedade civil...
O
professor pousou o livro na secretária e encarou a turma, no olhar
duro estava marcado um desprezo profundo, as alunas e os alunos
retribuíam a mirada com a indiferença dos adolescentes, na última
fila alguns reprimiam sorrisos. Quando o contratara, a directora do
colégio fora bastante clara quanto ao nível de exigência: a
avaliação deveria corresponder aos parâmetros estabelecidos e
estar de acordo com a estratificação social. Determinados alunos
não eram classificados com nível negativo. O professor combatera o
colonialismo com a força das armas, guerrilheiro pela independência,
prescindira das recompensas pela vitória para educar e preparar o
futuro. Utópico, sobrevivia ao presente por que sonhava o optimismo,
deixara-se de guerras com carnificina: combatia a iliteracia.
- Estes
artigos na imprensa internacional incomodam...
- Acha
mesmo?
- Claro,
os interesses no exterior, sabe como é... os direitos humanos e a
publicidade negativa associada.
- Aos
direitos humanos?
- ...
O
grupo dividia-se em conversas, palavras de transformação
soltavam-se das bocas dos homens, quando o som de automóveis no
exterior os despertou para lá da troca de ideias e a existência do
circundante se impôs. As forças policiais invadiram o espaço
abruptamente, coordenadas na execução da violência rápida e
eficaz, inquestionáveis. Transformados em prisioneiros, os homens
foram conduzidos pelo circuito dos criminosos face à justiça do seu
país - um estado de direito.
- Quanto
vale a liberdade?
- Não
sei se tem preço... mas é valiosa.
- Tem
valor?
- Depende.
O
jornalista carregou "play" e a voz da entrevistada encheu a
sala outra vez, recordou-se de quando iniciara a profissão – a
ânsia pela justiça, a busca da verdade, a ingenuidade de que as
palavras podem transformar; acendeu um cigarro para afastar as
memórias inúteis, concentrou-se nas recomendações do editor. O
ruído da cidade morria nos vidros duplos da redacção, por isso as
frases proferidas pela jovem mãe ampliavam-se, o jornalista desligou
o gravador e abriu uma das janelas.
- Greve
de fome.
- Não
sei se terá impacto.
- A
notícia?
- Ambas.
M.
Lisboa: 2015
Movimento no céu - São Roque do Pico, Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor) |
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