O
grumete tentava não tremer mas o seu corpo não lhe respondia, a
sensação da terra firme, a areia fina entre os pés... deixou-se
cair na praia, os joelhos num balanço diferente do ritmo marítimo,
enterrou as mãos para não as levar ao rosto: chorava. Duas semanas
atrás, tinha perdido a esperança, desesperara pelo excesso de azul
salgado, deixara de sonhar para ter pesadelos. A culpa fora dos
peixes voadores. Os outros dois sobreviventes do naufrágio também
estavam estendidos na praia, era impossível trocarem palavras entre
si, partilhavam as mesmas emoções.
- ...
- Que
lenda?
- São
estórias de marinheiros e navegantes, não quero assustar-te, vais
viajar e...
- Não
tenho medo, quero saber.
- Nessa
parte do mundo... o Sol é tão forte que torna os homens pretos.
O
rapaz deixou-se ficar atrás dos outros, preferia não se aproximar
dos estranhos, mirava a diferença desconfiado e distante. Por que
vestiam tanta roupa? Não os protegeria dos mosquitos e para caçar...
abanou a cabeça mas sentiu o olhar reprovador da mãe (que o
observava) e recordou-se: um príncipe não julga pela aparência.
Decidido a controlar os juízos fáceis, permaneceu no mesmo lugar,
enquanto os seus irmãos e irmãs observavam os forasteiros,
interrogou-se: seriam machos ou fêmeas? A brancura confundia-o, não
se assemelhavam a outros homens, e a sua língua... incompreensível.
- Como
é possível não sentir compaixão por aquelas pessoas?
- Não
seja ridículo...
- Ridículo?
Tem a noção de que vivemos no final do século XIX?
- Somos
uma nação europeia e civilizada...
- Considera
a escravatura um gesto civilizador, portanto.
O
escritor relia a carta todos os dias, embarcara na viagem pelas ilhas
desconhecidas para as transformar em ficção, a cada leitura pautada
pelo vento forte... as palavras assumiam o tamanho da montanha que
lhe invadia o horizonte. As frases arrumadas em parágrafos
manuscritos contrastavam com a intensidade do conteúdo, o aparo da
caneta registara em tinta azul o ódio pelo sangue da mesma cor,
privilégios contestados e dívidas enumeradas em tom de denúncia,
injustiças seculares.
- Uma
revolução, de facto... Este doce de araçá está divinal!
- Obrigada.
Tudo será diferente... acredita nisso?
- Não
tenho motivos para acreditar no contrário.
- Muda
a gramática mas a sintaxe é a mesma.
- Costurou
bandeiras, suportou a causa... porquê este súbito cepticismo?
- Também
corrigi panfletos.
A
mulher não queria apresentar queixa, tinha o lábio rebentado e o
nariz inchado, o rosto era prova da violência a que fora submetida,
o agente policial voltou a explicar-lhe os direitos mas a senhora
insistia na justiça da punição pelo marido. Enquanto falava,
amparava a cabeça entre as mãos, bamboleava o corpo magro. Estavam
ambos na soleira da porta, o barulho da telefonia chegava abafado
pelas paredes, ela irredutível. O polícia suspirou, como em vezes
anteriores – eram poucas as mulheres que denunciavam os
companheiros, e não insistiu.
- A
guerra não pode ser a única solução, existem outras formas de
luta, vamos continuar a insistir nos contactos com o exterior, não
desistimos de pressionar na O.N.U. e...
- E
vamos continuar na mesma. Não muda nada, são conversas de branco.
- Tu
és branco...
- É
uma forma de expressão.
A
velha tentou gritar mas o som ficou preso na garganta, só o peito
soluçava e doía, os ombros subindo e descendo; a aldeia dera lugar
a um terreiro queimado, havia corpos empilhados e nem os animais
haviam sido poupados, a rapariga olhava tudo sem largar a mão da
anciã, o seu braço soluçava como ela, o espanto consumia tudo. As
décadas seguintes apagariam as marcas da presença humana, a aldeia
só viveria nos episódios contados pela mais velha.
- Quando
as árvores engoliram as cinzas da povoação cresceram-lhes ramos
torcidos, as suas sombras são as memórias dos antigos
habitantes...
- Há
memórias nas sombras?
- Como
nas nuvens, a magia é sempre a mesma.
Ela
deixou cair o alvião quando percebeu que o homem fardado caminhava
na sua direcção, a realidade imaginada acontecia; cerrou os punhos
e os dentes, baixou o queixo mas não deixou os olhos no chão,
explicou que não sabia ler quando o militar lhe entregou um
envelope, ouviu-o e então... percebeu o sonho. Um deserto com
socalcos feitos de areia vermelha e movidos pelo vento em dunas
insustentáveis, um Sol maior a queimar desde o céu iluminado até
ao solo. Atravessou o caminho com a folha de papel entre as mãos,
rumo à adega onde o marido cochilava, o impossível a acontecer-lhe
em cada passo, sem coragem para trabalhar mais. Mas voltaria no dia
seguinte.
- A
avó perdeu dois filhos durante a guerra.
- Morreram
lá fora.
- Ficou
sozinha com o avô.
- Fui
sempre viúva.M. Lisboa: 2015
Araçá - S. Roque do Pico, Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor) |
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