quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

40 anos: os antecedentes


O grumete tentava não tremer mas o seu corpo não lhe respondia, a sensação da terra firme, a areia fina entre os pés... deixou-se cair na praia, os joelhos num balanço diferente do ritmo marítimo, enterrou as mãos para não as levar ao rosto: chorava. Duas semanas atrás, tinha perdido a esperança, desesperara pelo excesso de azul salgado, deixara de sonhar para ter pesadelos. A culpa fora dos peixes voadores. Os outros dois sobreviventes do naufrágio também estavam estendidos na praia, era impossível trocarem palavras entre si, partilhavam as mesmas emoções.

- ...
- Que lenda?
- São estórias de marinheiros e navegantes, não quero assustar-te, vais viajar e...
- Não tenho medo, quero saber.
- Nessa parte do mundo... o Sol é tão forte que torna os homens pretos.

O rapaz deixou-se ficar atrás dos outros, preferia não se aproximar dos estranhos, mirava a diferença desconfiado e distante. Por que vestiam tanta roupa? Não os protegeria dos mosquitos e para caçar... abanou a cabeça mas sentiu o olhar reprovador da mãe (que o observava) e recordou-se: um príncipe não julga pela aparência. Decidido a controlar os juízos fáceis, permaneceu no mesmo lugar, enquanto os seus irmãos e irmãs observavam os forasteiros, interrogou-se: seriam machos ou fêmeas? A brancura confundia-o, não se assemelhavam a outros homens, e a sua língua... incompreensível.

- Como é possível não sentir compaixão por aquelas pessoas?
- Não seja ridículo...
- Ridículo? Tem a noção de que vivemos no final do século XIX?
- Somos uma nação europeia e civilizada...
- Considera a escravatura um gesto civilizador, portanto.

O escritor relia a carta todos os dias, embarcara na viagem pelas ilhas desconhecidas para as transformar em ficção, a cada leitura pautada pelo vento forte... as palavras assumiam o tamanho da montanha que lhe invadia o horizonte. As frases arrumadas em parágrafos manuscritos contrastavam com a intensidade do conteúdo, o aparo da caneta registara em tinta azul o ódio pelo sangue da mesma cor, privilégios contestados e dívidas enumeradas em tom de denúncia, injustiças seculares.

- Uma revolução, de facto... Este doce de araçá está divinal!
- Obrigada. Tudo será diferente... acredita nisso?
- Não tenho motivos para acreditar no contrário.
- Muda a gramática mas a sintaxe é a mesma.
- Costurou bandeiras, suportou a causa... porquê este súbito cepticismo?
- Também corrigi panfletos.

A mulher não queria apresentar queixa, tinha o lábio rebentado e o nariz inchado, o rosto era prova da violência a que fora submetida, o agente policial voltou a explicar-lhe os direitos mas a senhora insistia na justiça da punição pelo marido. Enquanto falava, amparava a cabeça entre as mãos, bamboleava o corpo magro. Estavam ambos na soleira da porta, o barulho da telefonia chegava abafado pelas paredes, ela irredutível. O polícia suspirou, como em vezes anteriores – eram poucas as mulheres que denunciavam os companheiros, e não insistiu.

- A guerra não pode ser a única solução, existem outras formas de luta, vamos continuar a insistir nos contactos com o exterior, não desistimos de pressionar na O.N.U. e...
- E vamos continuar na mesma. Não muda nada, são conversas de branco.
- Tu és branco...
- É uma forma de expressão.

A velha tentou gritar mas o som ficou preso na garganta, só o peito soluçava e doía, os ombros subindo e descendo; a aldeia dera lugar a um terreiro queimado, havia corpos empilhados e nem os animais haviam sido poupados, a rapariga olhava tudo sem largar a mão da anciã, o seu braço soluçava como ela, o espanto consumia tudo. As décadas seguintes apagariam as marcas da presença humana, a aldeia só viveria nos episódios contados pela mais velha.

- Quando as árvores engoliram as cinzas da povoação cresceram-lhes ramos torcidos, as suas sombras são as memórias dos antigos habitantes...
- Há memórias nas sombras?
- Como nas nuvens, a magia é sempre a mesma.

Ela deixou cair o alvião quando percebeu que o homem fardado caminhava na sua direcção, a realidade imaginada acontecia; cerrou os punhos e os dentes, baixou o queixo mas não deixou os olhos no chão, explicou que não sabia ler quando o militar lhe entregou um envelope, ouviu-o e então... percebeu o sonho. Um deserto com socalcos feitos de areia vermelha e movidos pelo vento em dunas insustentáveis, um Sol maior a queimar desde o céu iluminado até ao solo. Atravessou o caminho com a folha de papel entre as mãos, rumo à adega onde o marido cochilava, o impossível a acontecer-lhe em cada passo, sem coragem para trabalhar mais. Mas voltaria no dia seguinte.

- A avó perdeu dois filhos durante a guerra.
- Morreram lá fora.
- Ficou sozinha com o avô.
- Fui sempre viúva.


M. Lisboa: 2015


Araçá - S. Roque do Pico, Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor)

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