sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Geração de 70 - O herói

O padre pousou a caneca, café negro, para maldizer a chuva, secundado pela sua governanta, robusta e cinzenta; emendou-se invocando a vontade divina, nunca esquecer a importância dos modelos, resignado pela ausência do sol: prejudicaria as fotografias, pensou. No outro lado da cidade, Belarmino, o comandante das polícias (pai de Édipo, a sogra teimara no nome), fitava-se no espelho, queixo erguido, fazia a barba; nessa posição, enquanto se escanhoava, era homem: só. O toque do telefone, terminado pela diligente esposa, quebrou o seu momento.

Quando deitou o auscultador no descanso, o presidente da junta, afogueado pela conversa ao telefone, agarrou na gabardina – raio de chuva! -, enterrou o chapéu na cabeça, era imperativo transmitir a mensagem. Saiu do edifício público, apressado e diligente, em direcção à casa do padre. Era domingo, o céu cinzento parecia querer estragar a alegria das pessoas, a chuva neblina insistia, mas ninguém arredava pé, a praça estava repleta. A criança estava ao lado do pai, agarrava-lhe a mão, ocupava-se a observar, defronte da igreja.

As mulheres ocupavam o lado esquerdo da fachada sagrada, os homens o outro, cada grupo assumia o seu espaço, segundo a ordem social; o rapaz não sabia nada dessas coisas, olhava de baixo para cima, via os adultos assim. A mãe, no outro lado, imponente entre as submissas, cumpria o seu papel, distinta, segurava o rosário, modelo, olhavam-na: o menino via-a linda. Quando o automóvel surgiu à entrada da praça, eles e elas agitaram-se ao primeiro som do motor, as autoridades da direita tomaram as posições de cerimónia, a ala esquerda: um movimento, quase imperceptível, de aproximação. O carro estacionou no adro da igreja, facto inédito, o presidente da junta, o chefe das polícias e o padre, braços abertos: chegara o herói.

A filarmónica que havia debandado para a taberna da travessa, sob o pretexto da chuva, atravessara célere a praça, para se compôr em hino. O motorista saíu do automóvel para abrir a porta, um jornalista e um fotógrafo ladeavam o herói: os três partilhavam o banco traseiro. Finda a rigorosa melodia, o herói permanecia no banco do automóvel, já o fotógrafo disparara sobre a banda, registara as autoridades, e trocara palavras com o jornalista. Foi o silêncio dos músicos amadores que deixou perceber as ondas da telefonia, o herói ouvia as notícias da nação.

O meu pai, paradigma da autoridade e honra, propôs alojar o combatente em nossa casa, por que era grande, e a minha mãe, consciente da caridade profunda do acto, preparou-lhe um quarto perto da biblioteca – convinha manter as devidas distâncias. A nação obrigava. Eu tinha nove anos, não tinha autorização para utilizar as escadas ou trepar nos móveis da biblioteca, cumpridor rigoroso da ordem paterna, só conseguia aceder aos livros rasteiros. Também tinha instruções para não incomodar o hóspede mas a curiosidade infantil consumia-me; quando chegaram as férias tripliquei o tempo entre os livros, num final de tarde, o herói surpreendeu-me folheando um atlas ilustrado.

- Estás a ler esse livro?
- Não senhor, estou a ver as imagens.
- Também são importantes. Posso sentar-me?
- O senhor é nosso convidado, faça favor.
- Obrigado, o teu nome?
- Martim.

Preenchemos várias tardes em explorações no atlas africano, eu ouvia imagens e fronteiras diferentes: o herói trazia-me outras narrativas. Falava do cheiro da terra molhada, das árvores como gente, múltipla, nas diversas formas; contava o estranho e a aventura, o cheiro do disparo, a caça certeira; lembrava as estradas com o cheiro a terra, os olhos das gentes: cheios e molhados. Não falava sobre a guerra.

A minha mãe primava por interromper-nos com uma expressão cerrada, pigarreava alto antes de entrar na biblioteca: anunciava o almoço ou o jantar. Aprendi-lhe as rugas da severidade, descobri-lhe indiferença onde antes via atenção, percebi como os cantos da sua boca caíam: ela não sabia sorrir. Senti, pela primeira vez, a urgência da viagem. O final do mês aproximava-se, e o herói embarcaria para o Brasil, sabia que perderia o meu amigo; voltaria à rotina de menino da casa grande, filho da sua mãe. Mas não foi assim. Antes de partir para lá do Atlântico, o meu amigo herói deixou comigo a sua estória: contou-se-me. Eu nunca me esqueci.

M. Lisboa: 2014

Particularidade em jazigo no Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

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