Da
importância da poesia (ainda)
Certo
dia o padre chamara-o à parte para lhe falar sobre a imensidão do
perdão divino, tratava-se de um sacerdote progressista: catequizava
na taberna. Finda a terceira aguardente, o entusiasmo do cura era
visível, alargara a prelecção aos
restantes clientes do estabelecimento, o mote: deus, pátria e
família. Concordara com tudo. O pároco prometera-lhe recomendá-lo
a seu irmão, homem de muito respeito e consideração –
funcionário público em Lisboa. Assim foi. Um mês depois deixara a
freguesia, abandonara a ilha, sem intenções de voltar.
Outra
vez o navio, um rumo diferente: o continente e a cidade grande. Os
portugueses, na freguesia chamavam-se assim os continentais,
explicaram-lhe a importância da obediência e do respeito. Aprendera
tudo. Desempenharia um papel fundamental na defesa da nação contra
as forças internacionalistas. Portugal sempre
ultrapassara os horizontes
estreitos do seu território, assimilara ter uma missão, um
propósito maior: fazer cumprir o destino da nação. Sem hesitações.
A
profissão transformara-o num novo homem, a raiva encontrara escapes
institucionais, consolidara os laços perdidos na guerra. Esquecera
os pesadelos, dera nome ao abismo escuro, acordara para fora da lava
atlântica. Pleno de fé, formara família, uma extensão da
profissão. Orgulhara-se sempre da sua sensibilidade pedagógica, a
violência nunca era gratuita, antes ou depois do acto, procedia a
uma exposição detalhada sobre os motivos: durante era
contraproducente.
Regressara
à ilha depois do golpe militar, recusara-se sempre a chamar-lhe
revolução, para ocupar um lugar proeminente na sociedade:
encaixara-se na democracia representativa como peixe na água.
Presidente da autarquia durante décadas, a obra feita protegera-o do
passado continental, encontrara espaço na elite (democratizada e
autónoma) com o posterior título de comendador. Os filhos
licenciados, denominados doutores pela imprensa local, confirmaram-se
modernos com a militância no partido rival: também fugiam do
passado.
A
primeira vez que agredira a esposa fora do quarto, estavam sentados
no sofá da sala, as crianças tinham os olhos presos na televisão.
Comentara algo sobre o programa e ela respondera irritada:
esbofeteara-a quatro vezes, com a mão direita, e só o grito de um
dos filhos o impediu de prosseguir. A mulher baixara a cabeça, as
mãos no rosto e a boca coberta para abafar os soluços,
escorriam-lhe fios sanguíneos entre os dedos, o outro menino olhara
fascinado. Afastara imediatamente as crianças da mãe. Sem sequer
alterar a respiração, sentara os gémeos à mesa, explicara-lhes a
importância do respeito.
A sua vida fora uma sucessão
de escolhas baseadas na necessidade em sobreviver, era a actual
fragilidade que lhe permitia reconhecer os abusos do passado, tudo
isto lhe explicara a psicóloga. E mais: agora tinha o privilégio de
poder fazer contas com a vida, acertar dívidas com a memória,
partilhar para esquecer. Partilhar?! Partilhar... não partilhara
nada de importante, a experiência adquirida na profissão
permitira-lhe reproduzir banalidades, o status adquirido também
travara o interrogatório da profissional. Escrevia poesia, era essa
a sua aritmética pessoal, uma terapia individual e secreta.
A palavra escrita
permitira-lhe não ouvir os gemidos da esposa, correr pelas margens
da ribeira, suportar o declínio do corpo dela, rir alto sem motivos,
não sentir o sofrimento dela, ignorar o adeus nos olhos do filho...
Não quisera partilhar a dormência, ninguém testemunharia o
descobrir-se humano e vulnerável. Um ano. Meses preenchidos em
madrugadas de escrita frenética, os ruídos ininterruptos da morte
no quarto ao lado, versos para tentar prender o demónio raiva,
sempre o mesmo. A violência ainda assombrava as palavras,
escrevera-se desvio padrão abaixo e acima de si, intemporal.
Percebera enfim a inevitabilidade da morte dela, a aproximação da
sua ausência definitiva mas recusara as consequências. Não o
deveria ter feito: a poesia... a poesia tarda mas não falha.
Outro
ano. Sozinho a recordar-se numa casa vazia... outra vez na freguesia,
no mato a largar um corpo, no meio do mar para voltar muralha, nas
cubatas a queimar o chão, no quarto escuro da tortura, na esquadra
do continente português... Ficara sozinho, acabara... derrotado. Já
estivera vivo como o vento, vibrante e em movimento, já fora um
homem orgulhoso e o chefe de uma família respeitada. Fora temido
para lá dos limites e agora era um farrapo. Um trapo velho sem
préstimo. Ao devolver-lhe o caderno dos poemas, via postal, o filho
rabiscara palavras tormento, o juízo final:
Um “pide” a procurar
redenção na poesia? Sempre vos julguei analfabetos ou insensíveis
às letras, não consegui ler tudo... o trabalho também me ocupa
imenso tempo, é uma prisão injusta.
M.
Lisboa: 2015
Particularidade em jazigo - Cemitério da Ribeira Grande: Ilha de São Miguel (fotografia: dulcecor) |
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