sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Sobre algumas importâncias

Da importância da poesia (ainda)

Certo dia o padre chamara-o à parte para lhe falar sobre a imensidão do perdão divino, tratava-se de um sacerdote progressista: catequizava na taberna. Finda a terceira aguardente, o entusiasmo do cura era visível, alargara a prelecção aos restantes clientes do estabelecimento, o mote: deus, pátria e família. Concordara com tudo. O pároco prometera-lhe recomendá-lo a seu irmão, homem de muito respeito e consideração – funcionário público em Lisboa. Assim foi. Um mês depois deixara a freguesia, abandonara a ilha, sem intenções de voltar. 
 
Outra vez o navio, um rumo diferente: o continente e a cidade grande. Os portugueses, na freguesia chamavam-se assim os continentais, explicaram-lhe a importância da obediência e do respeito. Aprendera tudo. Desempenharia um papel fundamental na defesa da nação contra as forças internacionalistas. Portugal sempre ultrapassara os horizontes estreitos do seu território, assimilara ter uma missão, um propósito maior: fazer cumprir o destino da nação. Sem hesitações.

A profissão transformara-o num novo homem, a raiva encontrara escapes institucionais, consolidara os laços perdidos na guerra. Esquecera os pesadelos, dera nome ao abismo escuro, acordara para fora da lava atlântica. Pleno de fé, formara família, uma extensão da profissão. Orgulhara-se sempre da sua sensibilidade pedagógica, a violência nunca era gratuita, antes ou depois do acto, procedia a uma exposição detalhada sobre os motivos: durante era contraproducente.

Regressara à ilha depois do golpe militar, recusara-se sempre a chamar-lhe revolução, para ocupar um lugar proeminente na sociedade: encaixara-se na democracia representativa como peixe na água. Presidente da autarquia durante décadas, a obra feita protegera-o do passado continental, encontrara espaço na elite (democratizada e autónoma) com o posterior título de comendador. Os filhos licenciados, denominados doutores pela imprensa local, confirmaram-se modernos com a militância no partido rival: também fugiam do passado.

A primeira vez que agredira a esposa fora do quarto, estavam sentados no sofá da sala, as crianças tinham os olhos presos na televisão. Comentara algo sobre o programa e ela respondera irritada: esbofeteara-a quatro vezes, com a mão direita, e só o grito de um dos filhos o impediu de prosseguir. A mulher baixara a cabeça, as mãos no rosto e a boca coberta para abafar os soluços, escorriam-lhe fios sanguíneos entre os dedos, o outro menino olhara fascinado. Afastara imediatamente as crianças da mãe. Sem sequer alterar a respiração, sentara os gémeos à mesa, explicara-lhes a importância do respeito. 
 
A sua vida fora uma sucessão de escolhas baseadas na necessidade em sobreviver, era a actual fragilidade que lhe permitia reconhecer os abusos do passado, tudo isto lhe explicara a psicóloga. E mais: agora tinha o privilégio de poder fazer contas com a vida, acertar dívidas com a memória, partilhar para esquecer. Partilhar?! Partilhar... não partilhara nada de importante, a experiência adquirida na profissão permitira-lhe reproduzir banalidades, o status adquirido também travara o interrogatório da profissional. Escrevia poesia, era essa a sua aritmética pessoal, uma terapia individual e secreta.
 
A palavra escrita permitira-lhe não ouvir os gemidos da esposa, correr pelas margens da ribeira, suportar o declínio do corpo dela, rir alto sem motivos, não sentir o sofrimento dela, ignorar o adeus nos olhos do filho... Não quisera partilhar a dormência, ninguém testemunharia o descobrir-se humano e vulnerável. Um ano. Meses preenchidos em madrugadas de escrita frenética, os ruídos ininterruptos da morte no quarto ao lado, versos para tentar prender o demónio raiva, sempre o mesmo. A violência ainda assombrava as palavras, escrevera-se desvio padrão abaixo e acima de si, intemporal. Percebera enfim a inevitabilidade da morte dela, a aproximação da sua ausência definitiva mas recusara as consequências. Não o deveria ter feito: a poesia... a poesia tarda mas não falha.

Outro ano. Sozinho a recordar-se numa casa vazia... outra vez na freguesia, no mato a largar um corpo, no meio do mar para voltar muralha, nas cubatas a queimar o chão, no quarto escuro da tortura, na esquadra do continente português... Ficara sozinho, acabara... derrotado. Já estivera vivo como o vento, vibrante e em movimento, já fora um homem orgulhoso e o chefe de uma família respeitada. Fora temido para lá dos limites e agora era um farrapo. Um trapo velho sem préstimo. Ao devolver-lhe o caderno dos poemas, via postal, o filho rabiscara palavras tormento, o juízo final: 
 
Um “pide” a procurar redenção na poesia? Sempre vos julguei analfabetos ou insensíveis às letras, não consegui ler tudo... o trabalho também me ocupa imenso tempo, é uma prisão injusta. 
 
M. Lisboa: 2015

Particularidade em jazigo - Cemitério da Ribeira Grande: Ilha de São Miguel (fotografia: dulcecor)

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