Da
importância do sonho
Eu
dormito com a ajuda da medicação, a minha quase vida é isto, sou
uma morte anunciada sem a fantasia da esperança, um sofrimento em
repouso, travada pelo corpo gasto. Preencho os momentos conscientes
com memórias, sobra-me pouco para o resto que é tanto, sobrevivo
nos gestos auxiliados.
Já
fui uma esfera de luz a aumentar, senti o frio antecipado por ter
sido arrancada à origem, separada da água viva onde me tornei
carne. Quando abri os olhos pela primeira vez... vi manchas em vultos
crescentes, tive a impressão de ouvir sussurrar num roçagar de
asas, chorei para respirar. Agora recordo.
O
meu pai e a minha mãe, crianças devolutas, depositaram-me no mundo
para apagarem os sonhos. Mas eu não sabia. Nunca fui livre para
contestar certezas e procurar respostas, fraca para encontrar coragem
e ser vida, vivi o suficiente para conseguir chegar até aqui. Sou
isto: um sofrimento repetido, transformado em rotina, com sabor a
plástico... tudo me sabe a plástico. São os comprimidos.
Naquele
dia... há tanto tempo, uma eternidade... fui amor esperança de luz,
uma sincera ternura inocente, um fogo a queimar em promessas: a
partida não seria distância, o afastamento jamais certeza de fim.
Confirmei a dor delícia. Depois... meses de cartas segredo, tormento
ansioso longe do quotidiano, fuga às leis invisíveis da freguesia.
Quando
a notícia chegou não soube logo, nada me ligava àquela família,
mas já escondia a barriga. O meu pranto, no adro da igreja, cortou o
coração de quem ouviu. Não sabiam. Eu chorava outra morte
anunciada. A minha mãe não fez perguntas, passei a tomar as
refeições no quarto: emudeciam na minha presença. Semanas depois
embarcámos para o continente, o pretexto foi visitar os parentes
afastados, peregrinar até Fátima. No navio fiquei confinada ao
camarote, ela saía para tomar sol e conviver, eu tinha a marca do
enjôo: aumentava e não me sentia só. Voltámos no mês seguinte.
As duas.
O
meu pai declarou oficialmente a minha inexistência e só no leito de
morte voltou a falar comigo; gostaria de recordar-me das suas
palavras exactas mas só me lembro de ter respondido “sim, estou
arrependida e peço perdão”. Aprendi a ser uma sombra, a marca da
vergonha impronunciável, o símbolo da mancha invisível na honra
familiar. Dois meses depois do seu enterro fui enviada para Lisboa, o
meu destino seria acompanhar uma tia-avó solteirona, longe da
freguesia e afastada da memória.
Após
quatro visitas e uma consoada, a senhora minha tia leu-me a carta de
um amigo da família. Funcionário público, frisou, homem honrado
que se sacrificou pela pátria, disse, defendeu a nossa fé junto dos
selvagens. Era um pedido formal de casamento. Minha mãe veio à
cidade grande, atravessou o mar para me persuadir com um simples
argumento: apesar de tudo. Que importância tinham os rumores ou as
más-línguas sobre o temperamento dele? Casei.
A
violência começou por espreitar-me em casa, fera amansada na rua ou
nas reuniões de família, aprendi rapidamente a evitá-la:
construí-me em silêncio autorizado, distância consentida, reclusão
premeditada; também aprendi a circular pelas divisões sem fazer
barulho. Nunca falámos no seu trabalho, não foi preciso, quando
sonhava ele... falava alto. Batia sem deixar marcas, feria sem deixar
traços, explicava os motivos no fim. E eu percebi.
Mereci
o medo todo, foi a minha pena e a expiação devida; mesmo quando o
ciúme dele, apaziguado pelo nascimento dos filhos, se transformou em
violência absoluta e esclarecida... eu mereci o medo todo. Mereci
tudo. Tudo. Voltámos às ilhas quando os tanques entraram na cidade,
nesse dia não foi trabalhar, a viagem foi negociada: explicou-me...
depois.
Agora
escreve poesia às escondidas, descobriu que a tristeza existe,
aprendeu a sentir. Não partilhamos o mesmo quarto, a eterna cama
onde ele falava alto, mas ouço-lhe os humores através da parede e
adivinho os versos escritos no caderno. Se fala comigo estou surda e
muda, não tremo nem estremeço, ao som da sua voz.
Não
soube ver-me nos sonhos dele, deixei-me apagar para apaziguar os
outros. Troquei as lágrimas por uma vida cinzenta, encerrei-me numa
representação de mim própria, acreditei sempre: há um preço a
pagar pelos erros cometidos. Afinal... sabem a plástico.
M.
Lisboa: 2015
Particularidade em jazigo - Cemitério da Ribeira Grande: Ilha de São Miguel (fotografia: dulcecor) |
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