domingo, 8 de fevereiro de 2015

Sobre algumas importâncias

Da importância do sonho

Eu dormito com a ajuda da medicação, a minha quase vida é isto, sou uma morte anunciada sem a fantasia da esperança, um sofrimento em repouso, travada pelo corpo gasto. Preencho os momentos conscientes com memórias, sobra-me pouco para o resto que é tanto, sobrevivo nos gestos auxiliados. 
 
Já fui uma esfera de luz a aumentar, senti o frio antecipado por ter sido arrancada à origem, separada da água viva onde me tornei carne. Quando abri os olhos pela primeira vez... vi manchas em vultos crescentes, tive a impressão de ouvir sussurrar num roçagar de asas, chorei para respirar. Agora recordo.

O meu pai e a minha mãe, crianças devolutas, depositaram-me no mundo para apagarem os sonhos. Mas eu não sabia. Nunca fui livre para contestar certezas e procurar respostas, fraca para encontrar coragem e ser vida, vivi o suficiente para conseguir chegar até aqui. Sou isto: um sofrimento repetido, transformado em rotina, com sabor a plástico... tudo me sabe a plástico. São os comprimidos. 
 
Naquele dia... há tanto tempo, uma eternidade... fui amor esperança de luz, uma sincera ternura inocente, um fogo a queimar em promessas: a partida não seria distância, o afastamento jamais certeza de fim. Confirmei a dor delícia. Depois... meses de cartas segredo, tormento ansioso longe do quotidiano, fuga às leis invisíveis da freguesia. 
 
Quando a notícia chegou não soube logo, nada me ligava àquela família, mas já escondia a barriga. O meu pranto, no adro da igreja, cortou o coração de quem ouviu. Não sabiam. Eu chorava outra morte anunciada. A minha mãe não fez perguntas, passei a tomar as refeições no quarto: emudeciam na minha presença. Semanas depois embarcámos para o continente, o pretexto foi visitar os parentes afastados, peregrinar até Fátima. No navio fiquei confinada ao camarote, ela saía para tomar sol e conviver, eu tinha a marca do enjôo: aumentava e não me sentia só. Voltámos no mês seguinte. As duas.

O meu pai declarou oficialmente a minha inexistência e só no leito de morte voltou a falar comigo; gostaria de recordar-me das suas palavras exactas mas só me lembro de ter respondido “sim, estou arrependida e peço perdão”. Aprendi a ser uma sombra, a marca da vergonha impronunciável, o símbolo da mancha invisível na honra familiar. Dois meses depois do seu enterro fui enviada para Lisboa, o meu destino seria acompanhar uma tia-avó solteirona, longe da freguesia e afastada da memória. 
 
Após quatro visitas e uma consoada, a senhora minha tia leu-me a carta de um amigo da família. Funcionário público, frisou, homem honrado que se sacrificou pela pátria, disse, defendeu a nossa fé junto dos selvagens. Era um pedido formal de casamento. Minha mãe veio à cidade grande, atravessou o mar para me persuadir com um simples argumento: apesar de tudo. Que importância tinham os rumores ou as más-línguas sobre o temperamento dele? Casei.

A violência começou por espreitar-me em casa, fera amansada na rua ou nas reuniões de família, aprendi rapidamente a evitá-la: construí-me em silêncio autorizado, distância consentida, reclusão premeditada; também aprendi a circular pelas divisões sem fazer barulho. Nunca falámos no seu trabalho, não foi preciso, quando sonhava ele... falava alto. Batia sem deixar marcas, feria sem deixar traços, explicava os motivos no fim. E eu percebi.

Mereci o medo todo, foi a minha pena e a expiação devida; mesmo quando o ciúme dele, apaziguado pelo nascimento dos filhos, se transformou em violência absoluta e esclarecida... eu mereci o medo todo. Mereci tudo. Tudo. Voltámos às ilhas quando os tanques entraram na cidade, nesse dia não foi trabalhar, a viagem foi negociada: explicou-me... depois.

Agora escreve poesia às escondidas, descobriu que a tristeza existe, aprendeu a sentir. Não partilhamos o mesmo quarto, a eterna cama onde ele falava alto, mas ouço-lhe os humores através da parede e adivinho os versos escritos no caderno. Se fala comigo estou surda e muda, não tremo nem estremeço, ao som da sua voz.

Não soube ver-me nos sonhos dele, deixei-me apagar para apaziguar os outros. Troquei as lágrimas por uma vida cinzenta, encerrei-me numa representação de mim própria, acreditei sempre: há um preço a pagar pelos erros cometidos. Afinal... sabem a plástico. 
 
M. Lisboa: 2015

Particularidade em jazigo - Cemitério da Ribeira Grande: Ilha de São Miguel (fotografia: dulcecor)

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