domingo, 12 de outubro de 2014

Escuta activa


As margens do rio estão convertidas em zonas ribeirinhas, padrões urbanos comunitários, caminhas sisudo; os teus passos são largos para compensares o estreito humor do passado recente. Uma discussão com a tua filha neoliberal, única, a principal investidora da livraria que te completa os dias vazios e lhe aumenta a consciência fervorosa. O teu quotidiano divide-se entre estudantes das artes ou bibliófilos, amigos e amigas de aniversariantes,  velhas solteironas e velhos amantes de gatas, investigadores ciosos e intelectuais ingénuos.

- São essas mesmas tecnologias, as inovações de que fala, as responsáveis por nos estarmos a converter numa sociedade de ignorantes.
- É impossível viver num mundo global sem as redes sociais, o poder de comunicar é que articula o mundo e permite a acumulação de saber.
- E de poder.
- Pronto, escuda-se no pós-modernismo... a fuga predilecta dos poetas.
- Extraordinária conclusão, como deve imaginar, nunca tinha pensado nisso antes...
- Dispenso o sarcasmo.
- Muito bem, a fé no progresso é um dos dogmas dos nossos tempos, não é uma discussão nova...
- Sem utopia nada faz sentido.
- E o poeta sou eu...

O vento começava a espalhar-se quando tomaste o caminho percorrido ao contrário, o pulsar dos músculos esforçados fez-te abstrair do sentimento básico de impotência, uma impressão persistente à qual te sentias obrigado a resistir, por isso caminhavas para lá da dor. Como se supera ser desilusão para uma filha? Demoraste cerca de meia hora até ao automóvel, paraste para recuperar a respiração e procedeste aos alongamentos, disciplinado.

- Estás a ser demasiado radical, tens de ser mais tolerante...
- Tolerante?! Cabe a mim ser tolerante? Francamente!
- Não podes esperar o mesmo nível de progresso em todas as mentalidades...
- Não estamos a discutir o socialismo, estamos a discutir o racismo. Não é uma utopia.
- Fomos um país colonizador...
- Bolas! O racismo é uma construção social, um universo definido pelo poder aquisitivo. Tu ensinaste-me isso.
- De acordo.
- Então?!

O adolescente tinha os olhos rasgados presos em ti, irritado apertaste o braço dele com mais força e repetiste a pergunta; os olhos escuros não deram sinal de resposta mas os músculos cingidos retesaram-se. Sem abrandar a pressão do aperto, conduziste o jovem até ao exíguo lavabo e trancaste a porta. Decidiste ligar para a polícia mas algo te impediu: o silêncio. Desde o momento em que o confrontaras com o roubo do livro, o ladrão não proferira palavra e ficara a olhar-te sem se mover ou falar. Talvez não saiba português, pensaste, para te auto-censurares imediatamente, mas... roubar livros para vender?! Abanaste a cabeça, a discussão ainda estava a influenciar o teu dia-a-dia, como se a cor de pele do miúdo importasse... não deve ter mais de dezasseis anos, caramba é menor!, e não sabe que existem bibliotecas públicas? Suspiraste. Telefonaste à tua filha. Depois foste abrir a porta ao gatuno.

-  O teu pai?
- Não está.
- Irmãos?
- O mais velho morreu em acidente de automóvel, perseguição policial; outro morreu de uma bala perdida.
- Perseguição policial?
- Sim, e o outro está na prisão, tráfico.
- Mãe?
- Trabalha em casa de uma senhora, sai cedo e volta tarde.
- Estudas?
- Não.
- Porquê?
- Reprovado por faltas.
- Estamos em Dezembro.
- Eu sei.
- O livro?
- Para ler.
- Há bibliotecas...
- Não tenho vontade de lá entrar.
- Porquê este?
- Tem boas rimas.

Tiveste vontade de gritar ao teu amigo deputado, o problema está na indiferença dos políticos perante negros, pobres, e imigrantes. Mas gritar não se adequava nem ao cenário do vosso almoço semestral, nem ao diálogo costumeiro. Lampedusa era a razão. Falaste no silêncio (cúmplice) dos governos perante a morte de milhares de seres humanos, ele replicou como era premente agir no desenvolvimento dos países de origem. Referiste os meios de comunicação social, como ampliam os discursos oficiais legitimadores da violência contra os negros, ele afirmou a necessidade urgente de investimento em iniciativas multi-culturais. E são as mulheres negras quem suporta um quotidiano, acrescentaste desanimado pelas suas réplicas, onde os mais velhos enterram os mais novos.

- O racismo já foi estrutural na sociedade portuguesa, bem o sabemos, mas é senso comum que está a desaparecer...
- O senso comum, se é que tal existe, confunde-se com racismo estrutural.
- Ouve lá, os argumentos que utilizávamos na altura do colonialismo já não se aplicam...
- O governo tem de encarar o problema da violência contra a juventude negra.
- Precisamente, disseste tudo, contra a juventude negra.
- Não percebo.
- Continuas o mesmo, um poeta que tem um pé neste mundo e o outro no impossível.

A mulher estava parada junto à montra da livraria, observava os títulos estendidos, percebeste a sua presença através do vidro, quando os vossos olhos se encontraram, uma impressão de reconhecimento. Inexplicavelmente. Sentiste os joelhos tremer quando transpôs a porta e cirandou altiva entre os mostradores, escudaste-te no balcão para mirares sem seres visto, ela pousando ou recusando-se livros. O teu coração poderia ter batido mais depressa quando a viste dirigir-se à secção da poesia mas já reconheceras o olhar. Na memória (ainda) o imaginário do império bafiento: surpresa.

- Boa escolha, aprecia o autor?
- Desconheço.
- Ah, bom. Vale a pena,  é uma obra...
- É para oferta.
- Com certeza, desculpe não pretendia...
- Para o meu filho.

"É urgente superar a violência, esta cultura de violência em que crescemos, para combater o racismo"; ficaste preso à comunicação desde a primeira frase, surpreso pela clareza e expressão das ideias, reencontrando-te em emoções prévias ao aburguesamento do teu anarquismo libertário: ambiguidades. Ela não compareceu ao encontro, esperaste até quinze minutos antes da conferência, ansioso em esperanças, para afinal teres de acelerar o passo até à colectividade; mas valeu a pena, pensaste confortando-te, a conferencista comunicava factos inacreditáveis e estatísticas por publicar. Sentiste alguém sentar-se a teu lado. Não precisaste de olhar para saber quem era. Sorriste.

A vida vai começar a galopar quando nascer o primeiro filho, contou-te as palavras ditas pela avó (naquele dia tão longe) e como fechara os olhos para guardar a luz do momento dentro, abraçada à mãe conhecida, sem lhe compreender as palavras mas ciente da sua importância. Contou-te como, desde a morte do primogénito, essas palavras a assombravam por lhes conhecer o inverso. Todos os fins-de-semana sobe até ao cemitério para ver os filhos. Falar com eles. Ela chega, esfrega o mármore para trocar as flores, varre cantando: aí conversam. Tu escutas.

M. Lisboa: 2014

Cais das Colunas - cidade de Lisboa (fotografia: lob77)





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