domingo, 19 de outubro de 2014

Olhar distante


O cacilheiro sulca o rio pelo balanço das águas, no inverno a noite navega rápido, o azul torna-se cinzento; estás sentada junto à janela, rodeada de seres estranhos, olhos fixos no ritmo exterior. Estás cansada, falar para quem não está disposto a ouvir cansa, cansa muito; chegas do trabalho e não consegues entender-lhes a linguagem, faltam-te as palavras certas. Cresceram num mundo diferente do teu, sem raízes, saíram de ti mas são outra coisa, não os fizeste sozinha, criaste-os. Trabalhaste sempre.

- Sim, senhora. (cabra convencida)
- Chega às 07:30, trata das crianças e leva-as à escola, depois as tarefas diárias... sabe ler?
- Sim senhora. (aprendi na escola)
- Óptimo, torna tudo mais fácil, deixo-lhe uma lista; depois de ir buscar as crianças e tratar delas, confirmaremos ambas se cumpriu. É claro?
- Sim, senhora. (retornada)
- Vai receber à semana, tem direito ao domingo. Nem eu, nem o meu marido apreciamos refeições muito condimentadas, compreende? Nem música alta ou observações extemporâneas, conhece a palavra?
- Sim, senhora. (da elite)

A chegada ao cais soltava os passageiros, andavam com a mesma pressa do percurso matinal, em busca de autocarros, automóveis ou o mais rápido acesso até casa: chegavam, alimentavam-se e dormiam, para a repetição do dia seguinte. Nessa certeza, nesse momento do dia, ainda sobrevive a tua resistência, um passo lento; tens o teu tempo no corpo, criaste outros corpos no tempo, a vida não tem segredos. Só tu.

- Vais deixar o teu país, a tua família, por um homem?
- ...
- A decisão é tua, foste educada a decidir por ti própria, se julgas ser mais útil no país do colonizador quando nos chega a independência...
- Pai...
- Não adianta prosseguir a conversa. Boa viagem, Lisboa espera por ti.

O aprumado funcionário público olhou-te, alternou a mirada entre a tua face e a fotografia do bilhete de identidade, com frieza; deslocavas-te ali pela quinta vez, horas infinitas à espera, para ouvires explicações burocráticas, justificações para a não atribuição da nacionalidade portuguesa. Dois anos de Europa, um filho lusitano e outro a caminho, ainda ilegal. 

- Lá na terra todo o rio é Tejo.
- Mamã, também tem cacilheiro?
- Lá não tem Lisboa, é outra coisa.
- E tem ponte vermelha?
- Tem sonho.

O homem suspirou, pousou o documento de identificação, para repetir-te as perguntas das vezes anteriores. Respondeste. Sim, os teus filhos nasceram no país; não, não são filhos do mesmo progenitor; sim, o teu primeiro companheiro faleceu de doença; não, não sabias do segundo pai; sim, a tua família tinha desaparecido na guerra civil; não, não tinhas mais ninguém. Só os filhos.

- Como sabe estamos a meio do primeiro período... e a situação está complicada.
- Só ontem li as cartas, senhor professor, ele tinha escondido.
- E os recados?
- Perdeu a caderneta.
- Há um horário semanal para atendimento aos encarregados de educação.
- Trabalho o dia inteiro, no outro lado do rio, chego bem tarde.
- É um problema.
- Verdade, senhor professor.
- Estou a referir-me ao seu filho.

A sala da colectividade não estava cheia, menos de duas dezenas de pessoas assistiam à palestra sobre planeamento familiar, mas o orador apregoava com fervor os métodos contraceptivos; findos os primeiros risinhos histéricos, expressões maliciosas ou puritanas, sucederam-se as apresentações e trocas de ideias. Olhaste para a rapariga sentada a teu lado, estava ali porque a convidaras, sem conseguir evitar o reflexo do espelho; no barco, por vezes, as pessoas falam ou escutam-se.

- Estudas?
- Sim, termino o nono este ano.
- É para continuar?
- Pai diz que sim, namorado acha má ideia...
- E tu?
- Gosto de bebés, era bom trabalhar com crianças.

Quando chegaste à entrada da rua viste as vizinhas junto do prédio, o carro da polícia, sentiste o coração apertado, outra morte no bairro, crianças e jovens perdidos; mais próxima percebeste... todos os olhares estavam concentrados em ti: começaste imediatamente a gritar. O primeiro funeral sem carpires outros, depois o segundo, o cemitério tornou-se família.

- A senhora sabia do envolvimento do seu filho, o réu, nestas actividades criminosas?
- Doutor juiz, eu não sabia de nada.
- Minha senhora, segundo os autos, o negócio era feito na residência do réu, ele vivia em sua casa.
- Doutor juiz, trabalho no outro lado do rio, saio cedo para chegar tarde. 

Tarde demais... seria tarde demais para recuperares o filho que ainda tinhas contigo? Ainda não perdera a caderneta mas já não te esperava para jantar; explorava o mundo exterior, um deles. Tinhas medo de o ver transformar-se numa cópia dos outros, arrependidos sem hipótese de redenção, mudos; mas já não sabias fazer-te diferença, não como antes.

- Mamã...
- Diz, querido.
- Por que é que a Capuchinho Vermelho foi no bosque?
- Não sabia do lobo.

Paraste junto à montra da livraria, os títulos estendiam-se à tua frente, presa pelas cores, percebeste uma presença do outro lado do vidro, quando os vossos olhos se encontraram, a impressão de reconhecimento. Sem explicação. Não resististe a entrar no estabelecimento, joelhos tementes ao transpor da porta, para te esconderes por entre os mostradores, parando aqui ou ali, calma aparente. Uma luz mais forte, livros de poesia, percebeste-o quando te aproximaste, sorriste. Depois o balcão.

- Boa escolha, aprecia o autor?
- Desconheço.
- Ah, bom. Vale a pena,  é uma obra...
- É para oferta.
- Com certeza, desculpe não pretendia...
- Para o meu filho.

Não se apaga a memória da viagem, sabes que retornas a Lisboa todos os dias, o rio não termina e os cacilheiros afundam-se em tristezas rotineiras, resistes às chegadas apressadas para saberes que ainda existes. Não desapareceste, ainda consegues sentir-te viva, corpo interior; a memória de um passado extinto pela guerra, o brilho baço da primeira queda transformada em muralha... assumiste o esperado de ti, aceitaste. E agora? 

M. Lisboa: 2014

Arte urbana - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

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