domingo, 26 de outubro de 2014

Tacto silencioso


Gostas de estar perto do rio, os outros preferem o "shopping" ou os jardins do centro, ficas calado para ouvir o mundo e ser invisível; aprendeste a observar as pessoas como se não existisses, trazes livros. Não vens todos os dias, três vezes por semana passas aqui a tarde, hoje é dia sim. Tens a cabeça cheia de sonhos encontrados nas páginas: foste pirata e usaste um escafandro, navegaste oceanos e desvendaste crimes, fugiste com o circo e foste cigano, salvaste donzelas e aniquilaste dragões... Na margem do rio, descobriste.

- A nossa língua tem vindo a transformar-se ao longo de séculos, por exemplo, em África fala-se um português diferente, não é verdade? Aqui o vosso colega talvez nos possa dizer algumas palavras...
- Não, professora.
- Não?!
- Não, eu nunca estive em África... é outro continente.
- Mas nasceu lá...
- Não, professora, nasci mesmo cá. 
- Não precisa de ser agressivo.
- Só respondi.
- Eu não lhe fiz uma pergunta, pedi-lhe exemplos.

A antipatia inicial acabaria por transformar-se em empatia, no final do primeiro período a professora trouxe-te um caixote de livros, sem discursos. Livros em casa. Que importava seres considerado estranho pelos colegas, escrever escondido no rio, se a tua mãe sorria? Inspiraste o ar frio, as palavras do poema acompanhavam o abandono solar, sentiste uma certeza inaudita: é isto.

- Maninho...
- Brother, como é?
- Está-se bem, sempre a mesma cena, na boa.
- E a escola?
- Está-se bem, na boa.
- Tens de estudar, puto... chama só a mãe, yá?
- Yá, fica bem.

O homem tinha a mão cravada no teu braço, já havias transposto a porta quando te apanhou, sem alarido, um toque no ombro e deste com a sua expressão séria; conduziu-te de volta à livraria, fugir nem te passou pela cabeça, um deliquente frustrado. Enquanto caminhavas por entre os livros pareceu-te ouvir a voz dela, sentiste um aperto no coração, percebeste... existiriam consequências. Ele perguntou-te porquê, respondeste com silêncio, na tua cabeça desenrolava-se o futuro recente, apertou-te o braço com mais força, resististe com silêncio mas fitaste-o. Sem palavras.

- Mamã... o lobo também comeu as flores?
- As flores?!
- Sim, mamã, a Capuchinho foi no bosque buscar flores! 

Inconsolável, o livro permanecia no balcão, assistindo ao drama que se desenrolava na sua frente; assim o rapaz entrara na loja, percebera ser aquele o leitor por quem esperava há tanto tempo. Observara-o rondando os mostradores, impaciente por ser notado na sua procura, sabia estar prestes a cumprir o seu destino. Sim, aquele rapaz levá-lo-ia consigo, retirara-o da prateleira mais baixa, livre de Álvaros e Bernardos: estava escrito. 

-  O teu pai?
- Não está.
- Irmãos?
- O mais velho morreu em acidente de automóvel, perseguição policial; outro morreu de uma bala perdida.
- Perseguição policial?
- Sim, e o outro está na prisão, tráfico. 
- Mãe?
- Trabalha em casa de uma senhora, sai cedo e volta tarde.
- Estudas?
- Não.
- Porquê?
- Reprovado por faltas.
- Estamos em Dezembro.
- Eu sei.
- O livro?
- Para ler.
- Há bibliotecas...
- Não tenho vontade de lá entrar.
- Porquê este?
- Tem boas rimas.
- Dá-me um exemplo.
- "Ninguém sabe que coisa quer./Ninguém conhece que alma tem,/Nem o que é mal nem o que é bem...".

Ela ficou surpreendida quando lhe explicaste: passarias a trabalhar nas manhãs de fim-de-semana, obrigou-te a desenhar um mapa do percurso até à livraria, prometeu-te: não vou fazer perguntas, olhou-te séria, vou comprar um livro. 

M. Lisboa: 2014

Particularidade em fachada - cidade de Lisboa (fotografia: lob77)

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