Ocorrência 4
A
mulher pausou a faixa no gravador digital, já tinha enviado a versão
final do seu texto no dia anterior, não poderia incluir a entrevista
- a confissão de um antigo agente da polícia secreta, tinha
conseguido um testemunho incrível! E as implicações judiciais? Foi
até à cozinha, decidiu preparar um chá de ervas medicinais, para
purgar os chocolates, pensou – onde estaria o número da advogada?
De repente, sentiu uma explosão no peito e caiu redonda no chão.
Voltou a acordar num quarto muito luminoso, médicos e enfermeiras
rodavam em redor de uma cama, havia um frenesim à sua volta. Mas ela
não se sentia ali. Intuía ser observadora. Por fim, percebeu-se
fora do corpo e surpreendeu-se por não sentir medo,
intuitivamente... compreendeu: tudo se passava sem a distracção das
sensações físicas. E as memórias? Fracções de segundo.
- Há
quanto tempo esconde a sua verdadeira identidade?
- Quarenta
anos.
- Por
que motivo me contactou? O que o impele a revelar toda a verdade?
- Fontes
próximas revelaram-me ter sido contactadas por si, seria uma
questão de tempo até que descobrisse a minha identidade, prefiro
não ser surpreendido. Branco?
- Obrigada,
não vai experimentar? Foi o senhor quem trouxe a caixa.
- Não
posso comer chocolate, na minha idade... sigo à risca as
instruções dos médicos; além disso, mais não seja por
deformação profissional, prezo muito o tempo de vida que me resta.
Quando
o interrogatório terminou, uma espécie de euforia contida tomou
conta de si, sentiu o sabor da justiça. Fora funcionário público
durante dezenas de anos, queriam castigá-lo por ter cumprido o seu
dever? Seguira ordens, tentara fazer o seu trabalho da melhor forma e
com a maior eficácia, minimizara os danos e flexibilizara a
consciência. Também se tornara cuidadoso, criara um arquivo pessoal
com documentos "especiais" sobre figuras importantes,
tecera uma preciosa rede de contactos. Depois da revolução estivera
quinze anos no Brasil, regressara com uma nova identidade, chefe de
uma família e integrado num tipo de vida oposto ao passado.
Aproveitara os fundos comunitários. Cuido de relógios, trato do
tempo – costumava dizer. O silêncio é de ouro. Poderia ter sido
outra das suas máximas.
- Tu
sabes quem ele foi?
- Não
sei muito sobre a vida dele, para mim é apenas o marido da minha
mãe. Quando eles casaram eu já vivia sozinha.
- Foi
agente da polícia política, trabalhou como inspector durante a
ditadura.
- Ele
tem uma oficina de ourives...
- Tenho
registados vários testemunhos de pessoas que admitem ter sido
interrogadas e torturadas por ele.
- Não
acredito! O velhote é conservador mas... ter sido agente? Torturar?
- São
testemunhos fidedignos. Aconteceu tudo nas ex-colónias.
A
velha não quis continuar a visita guiada, abandonou o grupo para
sentar-se numa das salas da exposição permanente, preferia
descansar as pernas, farta de ouvir tanto disparate contemporâneo.
Francamente! Os escravos tinham contribuído para a formação da
cultura democrática europeia? Credo! Os pretos nunca souberam falar
bem português, murmurou irritada, toda a gente sabe que foram os
europeus a ensinar-lhes a civilização, caramba! Esta mania de
transformarem verdades absolutas em pontos de vista... a culpa?
Propriedade do ensino público, uma miséria! Aprendem as balelas
liberais e republicanas como se fossem factos históricos,
desconhecem a verdadeira cultura. Olhou à sua volta e inspirou o ar,
meticulosamente controlado, da cultura artística das elites
europeias.
- Eles
não são como nós, somos diferentes, pronto. É isso.
- Mas
diferente não quer dizer inferior.
- Lá
estás tu, bolas! Sempre a complicar o normal...
- Repara,
eu já conheço o teu ponto de vista, estou a tentar explicar-te as
minhas ideias.
- O
mundo não é justo, para mim é tão simples quanto isso.
- Mas...
se contribuímos para a injustiça compactuamos com ela.
M.
Lisboa: 2016
Ilha de Santa Maria - Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor) |
Muito bom, estas ocorrências estão fortes, como as situações que retratam. Lá está, quem relata é que tem culpa ou quem participou no que foi relatado? ;)
ResponderEliminarMuitobom, estas ocorrências estão fortes, tais como as situações que retratam. Lá está, quem relata é que é o culpado ou será quem paeticipa nelas? ;)
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