quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Ocorrências

Ocorrência 4

A mulher pausou a faixa no gravador digital, já tinha enviado a versão final do seu texto no dia anterior, não poderia incluir a entrevista - a confissão de um antigo agente da polícia secreta, tinha conseguido um testemunho incrível! E as implicações judiciais? Foi até à cozinha, decidiu preparar um chá de ervas medicinais, para purgar os chocolates, pensou – onde estaria o número da advogada? De repente, sentiu uma explosão no peito e caiu redonda no chão. Voltou a acordar num quarto muito luminoso, médicos e enfermeiras rodavam em redor de uma cama, havia um frenesim à sua volta. Mas ela não se sentia ali. Intuía ser observadora. Por fim, percebeu-se fora do corpo e surpreendeu-se por não sentir medo, intuitivamente... compreendeu: tudo se passava sem a distracção das sensações físicas. E as memórias? Fracções de segundo.

- Há quanto tempo esconde a sua verdadeira identidade?
- Quarenta anos.
- Por que motivo me contactou? O que o impele a revelar toda a verdade?
- Fontes próximas revelaram-me ter sido contactadas por si, seria uma questão de tempo até que descobrisse a minha identidade, prefiro não ser surpreendido. Branco?
- Obrigada, não vai experimentar? Foi o senhor quem trouxe a caixa.
- Não posso comer chocolate, na minha idade... sigo à risca as instruções dos médicos; além disso, mais não seja por deformação profissional, prezo muito o tempo de vida que me resta.

Quando o interrogatório terminou, uma espécie de euforia contida tomou conta de si, sentiu o sabor da justiça. Fora funcionário público durante dezenas de anos, queriam castigá-lo por ter cumprido o seu dever? Seguira ordens, tentara fazer o seu trabalho da melhor forma e com a maior eficácia, minimizara os danos e flexibilizara a consciência. Também se tornara cuidadoso, criara um arquivo pessoal com documentos "especiais" sobre figuras importantes, tecera uma preciosa rede de contactos. Depois da revolução estivera quinze anos no Brasil, regressara com uma nova identidade, chefe de uma família e integrado num tipo de vida oposto ao passado. Aproveitara os fundos comunitários. Cuido de relógios, trato do tempo – costumava dizer. O silêncio é de ouro. Poderia ter sido outra das suas máximas.

- Tu sabes quem ele foi?
- Não sei muito sobre a vida dele, para mim é apenas o marido da minha mãe. Quando eles casaram eu já vivia sozinha.
- Foi agente da polícia política, trabalhou como inspector durante a ditadura.
- Ele tem uma oficina de ourives...
- Tenho registados vários testemunhos de pessoas que admitem ter sido interrogadas e torturadas por ele.
- Não acredito! O velhote é conservador mas... ter sido agente? Torturar?
- São testemunhos fidedignos. Aconteceu tudo nas ex-colónias.

A velha não quis continuar a visita guiada, abandonou o grupo para sentar-se numa das salas da exposição permanente, preferia descansar as pernas, farta de ouvir tanto disparate contemporâneo. Francamente! Os escravos tinham contribuído para a formação da cultura democrática europeia? Credo! Os pretos nunca souberam falar bem português, murmurou irritada, toda a gente sabe que foram os europeus a ensinar-lhes a civilização, caramba! Esta mania de transformarem verdades absolutas em pontos de vista... a culpa? Propriedade do ensino público, uma miséria! Aprendem as balelas liberais e republicanas como se fossem factos históricos, desconhecem a verdadeira cultura. Olhou à sua volta e inspirou o ar, meticulosamente controlado, da cultura artística das elites europeias.

- Eles não são como nós, somos diferentes, pronto. É isso.
- Mas diferente não quer dizer inferior.
- Lá estás tu, bolas! Sempre a complicar o normal...
- Repara, eu já conheço o teu ponto de vista, estou a tentar explicar-te as minhas ideias.
- O mundo não é justo, para mim é tão simples quanto isso.
- Mas... se contribuímos para a injustiça compactuamos com ela.

M. Lisboa: 2016

Ilha de Santa Maria - Região Autónoma dos Açores (fotografia: dulcecor)

2 comentários:

  1. Muito bom, estas ocorrências estão fortes, como as situações que retratam. Lá está, quem relata é que tem culpa ou quem participou no que foi relatado? ;)

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  2. Muitobom, estas ocorrências estão fortes, tais como as situações que retratam. Lá está, quem relata é que é o culpado ou será quem paeticipa nelas? ;)

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