domingo, 30 de novembro de 2014

A pátria (final)


Luanda. Lisboa. Preenchi os meses no hospital militar com leitura, os meus pais remeteram-me caixas com livros da biblioteca atlântica, passei a chamá-la assim para o homenagear... morreu convencido de que me encontraria do outro lado, agarrado à fé para me velar, mas extinguiu-se primeiro... a casa tem estado fechada desde então, a velha Penélope seguiu-o meses depois, só tem vida nas férias.

Regra pessoal: as solidariedades inusitadas. Os meus livros despertaram a curiosidade dos outros internados, começaram a circular pelas enfermarias e organizei sessões de leitura no quarto. Criámos um grupo, uns estavam ali só para ouvir e fumar, outros aproveitavam para matar o tempo e fumar, poucos prestavam atenção mas fumávamos todos: o presente consumia tudo, era tudo o que tinhamos em comum, devorava-nos. Meses depois, recebi a visita do Sr. Henriques.

Alguém me terá indicado como potencial instigador de uma futura "revolução hospitalar"; um homem alto e magro, seco seria a expressão indicada, surpreendeu-me a ler poesia. Entrou sem bater à porta, facto que imediatamente salientei, soerguendo-me com os cotovelos, mas ele sorriu e apresentou-se. Trazia consigo um embrulho (papel pardo), pousou-o ao fundo da cama, pigarreou para começar por enunciar-me os deveres dos militares, sublinhou a honra inerente, enalteceu o sacrifício e a coragem da abnegação. Frisou as hierarquias sagradas. Depois falou dos meus pais, funcionários públicos exemplares, exemplares.

O Sr. Henriques explicou-me: alguém como eu deveria ter consciência da sua condição, aprender a ser humilde. Não deveria tornar-me um fardo para os outros. Foi a minha vez de emudecer. Suportei o seu olhar gélido, sem palavras, estava tudo dito; ele despediu-se com a saudação militar, percebi-lhe o sorriso irónico. “Filho de puta!” gritei, minutos após perder o eco dos seus passos, mas ele não deve ter ouvido. Duas semanas depois, com a notícia da alta e o regresso ao arquipélago, deixei de pensar no desagradável personagem: guardaria outra memória.

O meu pai, passados o choque inicial e o brilho da condecoração, percebeu-me um herói de guerra a quem faltavam peças, bom para citar nos discursos mas impróprio, para exibição contínua, nos serões. Outra regra pessoal: a fina-flor tinha, na minha presença, a prova da feia realidade exterior à sua. A minha mãe não conseguia falar comigo sem chorar, era incapaz de estar perto de mim sem dizer “pobrezinho do meu filho”, rezava novenas infindáveis, pedia a Deus. Era um inferno.

Recusei o motorista, disse-lhe: mãe, quero ir só; ele pediu ao Moniz para o levar até à freguesia, vai viver para lá, senhor inspector; a casa tem estado fechada, o meu pai fez o seu papel, eu sei mas preciso disso, vi o alívio na cara dele; nunca falou em política ao Moniz, senhor inspector: ouve jazz e não tem amigos; tenho de agradecer ao Moniz a amabilidade: passo-lhe um cheque... para lhe pesar a consciência de bufo; se o Moniz lhe puxava o assunto do hospital militar, dizia-lhe sempre: todos traidores por igual, não sou mártir de ninguém; sei que na freguesia vou voltar à vida: ser em comunidade, reconstruir-me; é como ele diz ao Moniz, senhor inspector, é um ex-combatente com alma de escritor: vai viver para o mato e escrever poesia, não nos trará problemas.

- O seu nome é Marco António?
- Sim, porquê? Está a rir-se? (cotovelos hirtos)
- Não vai acreditar... chamo-me Cleópatra.
- Está tudo explicado. (ombros soltos)
- Como?
- A sua entrada neste quarto não pode ser um acidente... (costas para trás)
- E não é.
- Não?! (expirar)
- O meu pai, Inspector Henriques, veio fazer-lhe uma visita ontem e esqueceu-se de...
- Saia imediatamente. (punhos cerrados)
- Mas...
- Saia! (corpo raiva)

A memória daquele momento, assomava de quando em quando, como uma semente adormecida. Nunca em sonhos. Mas voltava, outra vez, a lembrança do diálogo e da interlocutora, a reacção intempestiva. Já fantasiara mil variações da conversa, na possibilidade... imaginara-a filha de ninguém. Vindo da cidade para o interior, dedicara-se a reorganizar a biblioteca atlântica; ao abrir velhos caixotes de livros, deparara-se com o embrulho em papel-pardo esquecido pelo Sr. Henriques, há tanto tempo, e ainda por abrir. Desembrulho. Como explicar ou entender o inesperado? Escrito, a lápis, na primeira página, um poema de Pessoa.

À Emissora Nacional

Para a gente se entreter
E não haver mais chatice
Queiram dar-nos o prazer
De umas vezes nos dizer
O que Salazar não disse

Transmitem a toda a hora,
Nas entrelinhas das danças,
«Salazar disse» Emissora
E aí vem essa senhora
A Estada Nova com tranças.

Sim, talvez seja o melhor,
Porque estes homens do estado
Quando falam, é o pior,
E então quando são do teor
Do chatazar já citado!

O livro passara a ocupar espaço nobre na biblioteca, um suporte para a fantasia. Ulisses deixara de o visitar em sonhos, partira com os guardadores de rebanhos, há muito tempo, sem outra mensagem. Num ímpeto, apesar de ameaçar trovoada, resolvera sair até à cidade, caminhar na marginal; encostado ao muro, o vento ríspido e húmido a embaciar-lhe as lentes, vira como o céu cinzento só se separava do mar pelo movimento, inspirara com sofreguidão. Regra pessoal: isto sou eu, este ar e este céu, o sol caído e o que retornará, a chuva do olvido e o que ficará. Fechou os olhos para se perder na visão repetida, abandonado (quase guerreiro viajante).

Viu os homens chegarem, as veredas do mato para a costa, o mar azul do negro atlântico, as resistências, senhores e escravos, as sobrevivências, senhores e escravas, o sangue, as misturas, povoadores e colonos, as partidas e os retornos, os caminhos migrantes de outros espaços, a sobrevivência transformada em identidade, viu o vapor ser trocas e esperança vã, as guerras repetidas e inúteis, os eternos regressos... o laço universal além do espaço ou do tempo. Fragmentos do infinito?

Abriu os olhos, dois corvos grasnavam ruidosamente, mas fora outra coisa a despertá-lo: percebera profundidade naquele momento, premonição do instante seguinte, sentiu uma mão pousar-lhe no ombro e (ainda antes de ela falar) reconheceu-lhe a voz.

- Marco António? 


M. Lisboa: 2014


Particularidade no Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)


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