Luanda. Lisboa.
Preenchi os meses no hospital militar com leitura, os meus pais
remeteram-me caixas com livros da biblioteca atlântica, passei a
chamá-la assim para o homenagear... morreu convencido de que me
encontraria do outro lado, agarrado à fé para me velar, mas
extinguiu-se primeiro... a casa tem estado fechada desde então, a
velha Penélope seguiu-o meses depois, só tem vida nas férias.
Regra pessoal: as
solidariedades inusitadas. Os meus livros despertaram a curiosidade
dos outros internados, começaram a circular pelas enfermarias e
organizei sessões de leitura no quarto. Criámos um grupo, uns
estavam ali só para ouvir e fumar, outros aproveitavam para matar o
tempo e fumar, poucos prestavam atenção mas fumávamos todos: o
presente consumia tudo, era tudo o que tinhamos em comum,
devorava-nos. Meses depois, recebi a visita do Sr. Henriques.
Alguém me terá
indicado como potencial instigador de uma futura "revolução
hospitalar"; um homem alto e magro, seco seria a expressão
indicada, surpreendeu-me a ler poesia. Entrou sem bater à porta,
facto que imediatamente salientei, soerguendo-me com os cotovelos,
mas ele sorriu e apresentou-se. Trazia consigo um embrulho (papel
pardo), pousou-o ao fundo da cama, pigarreou para começar por
enunciar-me os deveres dos militares, sublinhou a honra inerente,
enalteceu o sacrifício e a coragem da abnegação. Frisou as
hierarquias sagradas. Depois falou dos meus pais, funcionários
públicos exemplares, exemplares.
O Sr.
Henriques explicou-me: alguém como eu deveria ter consciência
da sua condição, aprender a ser humilde. Não deveria tornar-me um
fardo para os outros. Foi a minha vez de emudecer. Suportei o seu
olhar gélido, sem palavras, estava tudo dito; ele despediu-se com a
saudação militar, percebi-lhe o sorriso irónico. “Filho de
puta!” gritei, minutos após perder o eco dos seus passos, mas ele
não deve ter ouvido. Duas semanas depois, com a notícia da alta e o
regresso ao arquipélago, deixei de pensar no desagradável
personagem: guardaria outra memória.
O
meu pai, passados o choque inicial e o brilho da condecoração,
percebeu-me um herói de guerra a quem faltavam peças, bom para
citar nos discursos mas impróprio, para exibição contínua, nos
serões. Outra regra pessoal: a fina-flor tinha, na minha presença,
a prova da feia realidade exterior à sua. A minha mãe não
conseguia falar comigo sem chorar, era incapaz de estar perto de mim
sem dizer “pobrezinho do meu filho”, rezava novenas infindáveis,
pedia a Deus. Era um inferno.
Recusei o
motorista, disse-lhe: mãe, quero ir só; ele pediu ao Moniz
para o levar até à freguesia, vai viver para lá, senhor inspector;
a casa tem estado fechada, o meu pai fez o seu papel, eu sei mas
preciso disso, vi o alívio na cara dele; nunca falou em política ao
Moniz, senhor inspector: ouve jazz e não tem amigos; tenho de
agradecer ao Moniz a amabilidade: passo-lhe um cheque... para lhe
pesar a consciência de bufo; se o Moniz lhe puxava o assunto do
hospital militar, dizia-lhe sempre: todos traidores por igual, não
sou mártir de ninguém; sei que na freguesia vou voltar à vida: ser
em comunidade, reconstruir-me; é como ele diz ao Moniz, senhor
inspector, é um ex-combatente com alma de escritor: vai viver para o
mato e escrever poesia, não nos trará problemas.
-
O seu nome é Marco António?
-
Sim, porquê? Está a rir-se? (cotovelos hirtos)
-
Não vai acreditar... chamo-me Cleópatra.
-
Está tudo explicado. (ombros soltos)
-
Como?
-
A sua entrada neste quarto não pode ser um acidente... (costas para
trás)
-
E não é.
-
Não?! (expirar)
-
O meu pai, Inspector Henriques, veio
fazer-lhe uma visita ontem e esqueceu-se de...
-
Saia imediatamente. (punhos cerrados)
-
Mas...
-
Saia! (corpo raiva)
A
memória daquele momento, assomava de quando em quando, como uma
semente adormecida. Nunca em sonhos. Mas voltava, outra vez, a
lembrança do diálogo e da interlocutora, a reacção intempestiva.
Já fantasiara mil variações da conversa, na possibilidade...
imaginara-a filha de ninguém. Vindo da cidade para o interior,
dedicara-se a reorganizar a biblioteca atlântica; ao abrir velhos
caixotes de livros, deparara-se com o embrulho em papel-pardo
esquecido pelo Sr. Henriques, há tanto tempo, e ainda por abrir.
Desembrulho. Como explicar ou entender o inesperado? Escrito, a
lápis, na primeira página, um poema de Pessoa.
À
Emissora Nacional
Para
a gente se entreter
E
não haver mais chatice
Queiram
dar-nos o prazer
De
umas vezes nos dizer
O
que Salazar não disse
Transmitem
a toda a hora,
Nas
entrelinhas das danças,
«Salazar
disse» Emissora
E
aí vem essa senhora
A
Estada Nova com tranças.
Sim,
talvez seja o melhor,
Porque
estes homens do estado
Quando
falam, é o pior,
E
então quando são do teor
Do
chatazar já citado!
O
livro passara a ocupar espaço nobre na biblioteca, um suporte para a
fantasia. Ulisses deixara de o visitar em sonhos, partira com os
guardadores de rebanhos, há muito tempo, sem outra mensagem. Num
ímpeto, apesar de ameaçar trovoada, resolvera sair até à cidade,
caminhar na marginal; encostado ao muro, o vento ríspido e húmido a
embaciar-lhe as lentes, vira como o céu cinzento só se separava do
mar pelo movimento, inspirara com sofreguidão. Regra pessoal: isto
sou eu, este ar e este céu, o sol caído e o que retornará, a chuva
do olvido e o que ficará. Fechou os olhos para se perder na visão
repetida, abandonado (quase guerreiro viajante).
Viu
os homens chegarem, as veredas do mato para a costa, o mar azul do
negro atlântico, as resistências, senhores e escravos, as
sobrevivências, senhores e escravas, o sangue, as misturas,
povoadores e colonos, as partidas e os retornos, os caminhos
migrantes de outros espaços, a sobrevivência transformada em
identidade, viu o vapor ser trocas e esperança vã, as guerras
repetidas e inúteis, os eternos regressos... o laço universal além
do espaço ou do tempo. Fragmentos do infinito?
Abriu os olhos, dois
corvos grasnavam ruidosamente, mas fora outra coisa a despertá-lo:
percebera profundidade naquele momento, premonição do instante
seguinte, sentiu uma mão pousar-lhe no ombro e (ainda antes de ela
falar) reconheceu-lhe a voz.
- Marco António?
M. Lisboa: 2014
Particularidade no Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor) |
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