quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Outro delfim


Para o retorno à ilha materna, precedera-se de donativos (regulares) às obras beneméritas, estabelecera correspondência com pares e comerciantes; proporcionara o primeiro jantar social por motivos calculados, percebera o erro dos dois meses antecedentes, sem frequentar os salões da urbe; estava decidido a conquistar a simpatia das elites locais: sabia-a bem mais proveitosa, a longo prazo. Cumpriu escrupulosamente as regras sociais, maravilhou os presentes com os seus relatos e narrativas de viagem. Um sucesso.

Preparara a visita à freguesia natal durante semanas, espalhara a notícia de que estaria interessado em adquirir uma casa de lavoura e alguns terrenos; uma vez mais, e a recordação agridoce atravessara-o, a solidariedade insular funcionaria: a comitiva urbana, os pares tinham terrenos para venda..., ficaria instalado com os notáveis da população. Durante a viagem, fora-lhe difícil conter as sucessivas emoções provocadas pelo caminho, mas conseguira – concentrara-se nas explicações dos outros. Regressara ao tempo escrito nos seus diários, às veredas das gerações esquecidas.

O espaço verde, imenso como na memória, intensificava a sensação de reconhecimento: o cheiro das plantas pisadas pelas bestas, carregadas, o resfolegar, os sons dos inverosímeis pássaros, a companhia insistente dos insectos, o pressentimento presença dos répteis, a magia inesperada da água abundante. A tudo se obrigou a reagir como se... fosse novo, não diferente. Ulisses sabia que não seria reconhecido, dezoito anos transformam o corpo e já não vive ninguém da minha família, pensara, depois olhara Vicente – empertigado na sela, altivo –, sem evitar sorrir, orgulhoso: o futuro.

Felicidade não sentia falta da cidade, faltavam-lhe as pessoas, não nenhuma pessoa em particular, queria ter gente para conversar, ver e ser vista: o embevecido marido não era público suficiente. No campo o espelho era enfado, bastava-lhe pouco para brilhar nos serões da freguesia, e se brilhava! A casa era de lavoura e a ela, menina nada e criada em outro meio, tudo lhe parecia rústico ou encantador (por não ter tarefas). Felicidade existia em sorrisos perpétuos e na beleza da aceitação.

- Felicidade?
- Sim.
- Um nome encantador mas, devo dizê-lo, o verdadeiro encanto está em quem nomeia.
- ...
- Surpresa? O seu marido não é o único cavalheiro, neste fim de mundo...

Menino não queria vir viver para o mato, preferia a cidade, mas senhor decidiu e senhor manda, briga parou com o tempo, mas tem muitas portas e janelas fechadas, menino quer voltar para a cidade, se aborrece. Oxum, escuta... afasta a impaciência dele, acalma seu coração galopante, solta seu choro esquecido. Santa Efigénia bendita, escuta... ampara o passado do senhor, lhe faz ver o filho presente, lhe lembra um futuro.

- Agora reparo, tem o mesmo nome da ilha onde nasceu... é acidente?
- Não, pelo contrário, foi um desejo de minha falecida mãe.
- Devota do santo?
- Sim, muito.

Vicente retirara o livro, lombada azul profundo, da estante e abrira-o ao acaso, vira depois: poesia. Voltara imediatamente a colocá-lo na estante, já tinha a sua dose de melancolia nostálgica: vivia no meio do mato, afastado da civilização, não precisava de poemas para alienar. Depois do Verão tudo seria diferente, regressaria à cidade: queria devorar o mundo, entretanto... bastava-lhe a benevolência da Felicidade, vizinha.

- Voltará?
- Claro que sim, minha querida, voltarei só para poder estar nos seus braços.
- Promete?
- Não sabe que o meu amor é eterno?

Menino aprendeu a brincar como homem, quer lembrar cidade em corpo da mulher alheia, mas tem muitas portas e janelas: segredos escapam, mas menino tem fome de mundo todo... não sabe que mundo come também. Vai voltar na cidade, Oxum, escuta... leva maldade brinquedo dele, acalma coração desgovernado, fecha seu corpo. Santa Efigénia bendita, escuta... alivia fardo do senhor, lhe faz ver o filho presente, lhe lembra do passado.

Vicente partira, Felicidade impusera-se quase reclusa no quarto, encerrava-se aí durante horas seguidas; escrevera dezenas de cartas, nem uma resposta, até desistir; depois, deixara de usar as portas da casa com acesso ao exterior, afastara-se também de toda a vida quotidiana: limitara a sua interacção, com outros seres, à hora das refeições; a única excepção eram os dois corvos, pontuais e soturnos, com quem partilhava a queda do sol no horizonte. Chegavam para a observar, costas viradas para o astro cadente, depois partiam silenciosos.

Quando Felicidade deixou de aparecer à mesa não deram por isso, foi o lugar vazio que gritou a sua ausência, foram encontrá-la no quarto: extinguira-se por inanição. O casamento vicentino (com alfacinha virgem noiva), notícia no jornal da paróquia, espoletara a aceitação da fome: invisível para todos, transparente à hora das refeições, desaparecera muito antes. Os corvos também.

M. Lisboa: 2014

Particularidade em jazigo: Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

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