O português
olhara-o sempre de soslaio, semblante cerrado para sublinhar a
patriarcal autoridade, mas, feitas contas e previstos ganhos, acedera
ao pedido de casamento. Era uma filha bastarda, mantivera-a em casa
por insistência da sogra, as mulheres afeiçoam-se, e a criatura
aprendera a ler e a escrever, pela teimosia da velha, para ler-lhe os
clássicos e a correspondência familiar, escrever-lhe as cartas;
tudo isto lhe explicara o futuro sogro, enquanto a esperavam.
Ulisses sentira o
coração parar, assim o corpo dela entrara no espaço, soubera ter
iluminado o olhar mas não desarticulara a pose, seguira os
protocolos. O progenitor começara um discurso elaborado, orgulhoso
em estreitar laços com um ilustre português - abastado negociante.
Ela não desvia os olhos do pai, concentração absurda - pensara o
notório emigrante, ansioso por reencontrar-lhe as íris. As palavras
do patriarca só eram ouvidas por ele próprio, a filha fitava-o mas
não o ouvia, ao entrar reconhecera o outro homem – o tal com nome
de rei; circunspecta ao exterior, por dentro a turbulência de quem
lê e imagina, antecipava o momento em que teriam de olhar-se e
trocar palavras, por dentro tremia.
-
Estou disposto a casar consigo.
-
E eu obrigada a aceitá-lo.
-
Assim é.
-
Assim será.
-
A sua graça?
-
Odisseia.
Nas
conversas dos serões da elite, Ulisses percebera-se abordado por
esotéricos republicanos, mas a sua erudição não almejava integrar
outras lojas: bastava-lhe o negócio do carvão (e os associados). O
casamento funcionara como apaziguamento para as investidas das quase
noivas, a sua jovem esposa primava pelo silêncio social, mas
acicatara as matronas (e as associadas) por verem preteridas as suas
esperanças. Odisseia integrara a sociedade urbana com parcimónia, a
biblioteca confirmara-lhe o destino, saía de casa apenas para
atender às necessidades (montra) da alma católica. Nunca se
recusara a acompanhar o marido nas deslocações a outras
residências, invocara a timidez como desculpa para esses serões
silenciosos, contraste notório à intimidade do lar.
-
Senhoras, deixemos os homens com as suas palavras políticas, regadas
a conhaque e perfumadas com charutos, passemos ao salão. Odisseia,
que nome delicioso!, permita-me que a conduza, afinal é uma
estranha, ainda não conhece a casa.
-
É muito gentil, obrigada.
-
Minha cara, não se trata de uma questão de gentileza, é simples
educação. Vem do berço.
Ele
tomara a solidão como antídoto para o sofrimento, causado pelo
primeiro coração partido, escudo contra a distância da família, e
garantia de progresso; Odisseia transformara-o. Passara a pagar uma
renda às crioulas gentis que mantinha (também) para garantir
negócios ou monopólios, e a remunerar quem lhe tratava da casa: a
sua consciência considerara-se redimida. Os passeios ao lusco fusco,
antigas reflexões intimistas, agora, eram espaço de construção
para hipóteses futuras.
-
Vamos chamar-lhe Vicente, promete...
-
Não sou supersticioso, sabes bem.
-
Faz-me a vontade, por favor.
-
Como explicar essa tua insistência? Não percebo...
-
São coisas nossas, promete..., prometes?
-
Com uma condição, não se fala mais no assunto.
Senhor se fechou na
biblioteca, com portas e janelas também, faz dois dias, desde que
menino nasceu. Oxum, escuta: guia alma da senhora para a água doce,
espelho do choro. Levei comida para senhor e ele recusou, só
silêncio depois. Lhe deixei água e então me mandou embora,
chorando, gritando. Santa Efigénia bendita, escuta: guia a alma da
senhora para a luz, libertação do sofrimento. Senhor ficou sem
amparo na alma: vai gastar choro para poder ver de novo, vai lembrar
da criança para viver, vai lhe dar um futuro longe.
M. Lisboa: 2014
Particularidade em jazigo: Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor) |
Sem comentários:
Enviar um comentário