segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Outra viagem


O português olhara-o sempre de soslaio, semblante cerrado para sublinhar a patriarcal autoridade, mas, feitas contas e previstos ganhos, acedera ao pedido de casamento. Era uma filha bastarda, mantivera-a em casa por insistência da sogra, as mulheres afeiçoam-se, e a criatura aprendera a ler e a escrever, pela teimosia da velha, para ler-lhe os clássicos e a correspondência familiar, escrever-lhe as cartas; tudo isto lhe explicara o futuro sogro, enquanto a esperavam.

Ulisses sentira o coração parar, assim o corpo dela entrara no espaço, soubera ter iluminado o olhar mas não desarticulara a pose, seguira os protocolos. O progenitor começara um discurso elaborado, orgulhoso em estreitar laços com um ilustre português - abastado negociante. Ela não desvia os olhos do pai, concentração absurda - pensara o notório emigrante, ansioso por reencontrar-lhe as íris. As palavras do patriarca só eram ouvidas por ele próprio, a filha fitava-o mas não o ouvia, ao entrar reconhecera o outro homem – o tal com nome de rei; circunspecta ao exterior, por dentro a turbulência de quem lê e imagina, antecipava o momento em que teriam de olhar-se e trocar palavras, por dentro tremia.

- Estou disposto a casar consigo.
- E eu obrigada a aceitá-lo.
- Assim é.
- Assim será.
- A sua graça?
- Odisseia.

Nas conversas dos serões da elite, Ulisses percebera-se abordado por esotéricos republicanos, mas a sua erudição não almejava integrar outras lojas: bastava-lhe o negócio do carvão (e os associados). O casamento funcionara como apaziguamento para as investidas das quase noivas, a sua jovem esposa primava pelo silêncio social, mas acicatara as matronas (e as associadas) por verem preteridas as suas esperanças. Odisseia integrara a sociedade urbana com parcimónia, a biblioteca confirmara-lhe o destino, saía de casa apenas para atender às necessidades (montra) da alma católica. Nunca se recusara a acompanhar o marido nas deslocações a outras residências, invocara a timidez como desculpa para esses serões silenciosos, contraste notório à intimidade do lar.

- Senhoras, deixemos os homens com as suas palavras políticas, regadas a conhaque e perfumadas com charutos, passemos ao salão. Odisseia, que nome delicioso!, permita-me que a conduza, afinal é uma estranha, ainda não conhece a casa.
- É muito gentil, obrigada.
- Minha cara, não se trata de uma questão de gentileza, é simples educação. Vem do berço.

         Ele tomara a solidão como antídoto para o sofrimento, causado pelo primeiro coração partido, escudo contra a distância da família, e garantia de progresso; Odisseia transformara-o. Passara a pagar uma renda às crioulas gentis que mantinha (também) para garantir negócios ou monopólios, e a remunerar quem lhe tratava da casa: a sua consciência considerara-se redimida. Os passeios ao lusco fusco, antigas reflexões intimistas, agora, eram espaço de construção para hipóteses futuras.

- Vamos chamar-lhe Vicente, promete...
- Não sou supersticioso, sabes bem.
- Faz-me a vontade, por favor.
- Como explicar essa tua insistência? Não percebo...
- São coisas nossas, promete..., prometes?
- Com uma condição, não se fala mais no assunto.

Senhor se fechou na biblioteca, com portas e janelas também, faz dois dias, desde que menino nasceu. Oxum, escuta: guia alma da senhora para a água doce, espelho do choro. Levei comida para senhor e ele recusou, só silêncio depois. Lhe deixei água e então me mandou embora, chorando, gritando. Santa Efigénia bendita, escuta: guia a alma da senhora para a luz, libertação do sofrimento. Senhor ficou sem amparo na alma: vai gastar choro para poder ver de novo, vai lembrar da criança para viver, vai lhe dar um futuro longe.

M. Lisboa: 2014

Particularidade em jazigo: Cemitério dos Prazeres - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

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