O homem caminhou até
à beira-mar, aproveitava a maré rasa para percorrer os caminhos da
água, as ondas batiam nas pedras roladas; não sabes pedir amor, as
palavras da velha inundaram-lhe a memória, procurou apagá-las.
Concentrou-se no marulhar e nos gritos das aves, a recordação
insistiu: um encontro no outro lado do Atlântico, quando ainda era
homem novo, no corpo e na missão. Deixou de caminhar, quedou os
olhos no azul mar, certas são a luz e a sombra: sem elas se
inexiste, murmurou as palavras ao vento para dispersar a memória
velha - não resultou; a mulher fervia inhame, era magra e estava
acocorada, envolvida no baço vapor; mal se habituara à penumbra,
procurara comunicar com ela mas... estacara e emudecera: a voz dela
impusera-se.
Não percebera o
significado das palavras, mas sentira-se obrigado a ver nos seus
olhos; inexplicavelmente, cegara para o mundo à volta, sentira-se
deixar o corpo, o quebrar da memória. E então vira: a mulher ser
trocada, o caminho corrente do mato para a costa, o mar azul
atapetado em carne; vira o mercado e ela ser vendida, os caminhos no
nevoeiro de outros verdes, o doce açúcar refinado em sangue; vira a
sanzala ser batuque, o caminho da liberdade para o interior da ilha,
o zumbido negro da evasão. A velha fechara os olhos e ele despertara
para fora da visão, espantado, ouvira-a dizer, não sabes pedir
amor, num perfeito português; depois mandara-o embora, com gestos,
ríspida e sem sons.
O homem concentrou a
sua atenção nas rochas, ponto de fuga à memória recorrente,
percebeu-as imóveis apesar das ondas, inertes
entre o mar e a terra. Apareceu-lhe outra memória e um nome
soltou-se-lhe dos lábios, Adamastor, lembrou o padrinho de quem
aprendera o mito; perdido nos matos brasileiros, o velho jesuíta
fora considerado desaparecido pelos semelhantes enquanto outros,
índios negros, o contavam vivo, sem catecismo ou ilusão da chama,
fogo sagrado.
- O
amor do gigante era insensível à negação e absoluto na
exigência, amor divino...
- Tétis
era bem malvada, padrinho...
- Julgas
apressadamente... mas é próprio da juventude; talvez, entre outras
hipóteses, Tétis não compreendesse o amor.
- Mas
ela se riu na cara dele...
- A
ignorância apadrinha o medo, você nunca riu de medo? Quem não ri
do medo, fica preso nele, vira rochedo.
Guiado pelo poder
das memórias, o homem viu dois corvos pousados nas rochas e
compreendeu o padrinho Adamastor: ele assumira a sombra inseparável
da luz, fizera-se vontade pela certeza no caminho, invadira-se de
infinito. O homem percebeu também, depois de tantos anos, muitos
tempos, todas as viagens... que carregara consigo as palavras da
velha sem as saber sonhar. Nunca se pensara filho de escrava, como
poderia? Criado na casa grande, afilhado de jesuíta aventureiro,
enviado na ilha para a fé e pela fé: distinto das (outras) almas
negras e gentias; sentira sempre uma imensa caridade pelas vítimas
da escravatura, mas reconhecera a ordem divina do mundo, aceitara o
peso do seu fardo enquanto homem de Deus: aliviar o sofrimento dos
outros. Não se percebera espelho, trocara o riso pelo medo, mas
agora via.
O homem deixou de
olhar as rochas para seguir as duas aves, deixou a beira-mar rumo a
si, não regressaria à capela do engenho. Antes de se embrenhar no
interior da ilha, despiu a sotaina e dobrou-a para ser depósito num
tronco; Vicente passou a vestir-se de mato e a perder-se em cascatas
segredos, fez-se natureza. Séculos depois, quando as chamas altas da
fogueira alumiavam rodas atlânticas, os contratados contavam a
estória de um homem pardo, aparição sempre antecedida por dois
corvos, libertador da alma dos capturados.
M. Lisboa: 2014
Particularidade em tronco - cidade de Lisboa (fotografia: jp_pombas) |
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