domingo, 16 de novembro de 2014

Engenho


O homem caminhou até à beira-mar, aproveitava a maré rasa para percorrer os caminhos da água, as ondas batiam nas pedras roladas; não sabes pedir amor, as palavras da velha inundaram-lhe a memória, procurou apagá-las. Concentrou-se no marulhar e nos gritos das aves, a recordação insistiu: um encontro no outro lado do Atlântico, quando ainda era homem novo, no corpo e na missão. Deixou de caminhar, quedou os olhos no azul mar, certas são a luz e a sombra: sem elas se inexiste, murmurou as palavras ao vento para dispersar a memória velha - não resultou; a mulher fervia inhame, era magra e estava acocorada, envolvida no baço vapor; mal se habituara à penumbra, procurara comunicar com ela mas... estacara e emudecera: a voz dela impusera-se.

Não percebera o significado das palavras, mas sentira-se obrigado a ver nos seus olhos; inexplicavelmente, cegara para o mundo à volta, sentira-se deixar o corpo, o quebrar da memória. E então vira: a mulher ser trocada, o caminho corrente do mato para a costa, o mar azul atapetado em carne; vira o mercado e ela ser vendida, os caminhos no nevoeiro de outros verdes, o doce açúcar refinado em sangue; vira a sanzala ser batuque, o caminho da liberdade para o interior da ilha, o zumbido negro da evasão. A velha fechara os olhos e ele despertara para fora da visão, espantado, ouvira-a dizer, não sabes pedir amor, num perfeito português; depois mandara-o embora, com gestos, ríspida e sem sons.

O homem concentrou a sua atenção nas rochas, ponto de fuga à memória recorrente, percebeu-as imóveis apesar das ondas, inertes entre o mar e a terra. Apareceu-lhe outra memória e um nome soltou-se-lhe dos lábios, Adamastor, lembrou o padrinho de quem aprendera o mito; perdido nos matos brasileiros, o velho jesuíta fora considerado desaparecido pelos semelhantes enquanto outros, índios negros, o contavam vivo, sem catecismo ou ilusão da chama, fogo sagrado.

O amor do gigante era insensível à negação e absoluto na exigência, amor divino...
- Tétis era bem malvada, padrinho...
- Julgas apressadamente... mas é próprio da juventude; talvez, entre outras hipóteses, Tétis não compreendesse o amor.
- Mas ela se riu na cara dele...
- A ignorância apadrinha o medo, você nunca riu de medo? Quem não ri do medo, fica preso nele, vira rochedo.

Guiado pelo poder das memórias, o homem viu dois corvos pousados nas rochas e compreendeu o padrinho Adamastor: ele assumira a sombra inseparável da luz, fizera-se vontade pela certeza no caminho, invadira-se de infinito. O homem percebeu também, depois de tantos anos, muitos tempos, todas as viagens... que carregara consigo as palavras da velha sem as saber sonhar. Nunca se pensara filho de escrava, como poderia? Criado na casa grande, afilhado de jesuíta aventureiro, enviado na ilha para a fé e pela fé: distinto das (outras) almas negras e gentias; sentira sempre uma imensa caridade pelas vítimas da escravatura, mas reconhecera a ordem divina do mundo, aceitara o peso do seu fardo enquanto homem de Deus: aliviar o sofrimento dos outros. Não se percebera espelho, trocara o riso pelo medo, mas agora via.

O homem deixou de olhar as rochas para seguir as duas aves, deixou a beira-mar rumo a si, não regressaria à capela do engenho. Antes de se embrenhar no interior da ilha, despiu a sotaina e dobrou-a para ser depósito num tronco; Vicente passou a vestir-se de mato e a perder-se em cascatas segredos, fez-se natureza. Séculos depois, quando as chamas altas da fogueira alumiavam rodas atlânticas, os contratados contavam a estória de um homem pardo, aparição sempre antecedida por dois corvos, libertador da alma dos capturados.


M. Lisboa: 2014

Particularidade em tronco - cidade de Lisboa (fotografia: jp_pombas)

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