domingo, 2 de novembro de 2014

Gosto presença

     
      O livro ainda não perdera a esperança, o rapaz não desistiria tão rapidamente, era impossível não lhe ter percebido os sentidos; já se habituara ao novo espaço, estava preso entre Sophia e Alegre, mas entristecia-o ter sido alvo de leituras breves. A culpada fora a mãe, são sempre, mas esperaria.

- Lá na escola... não falam desses poetas?
- Falamos de outros.
- Lê só, depois falamos.
- Craveirinha... não parece nome de poeta.

O telefonema paterno despertou-te, o encerramento das reuniões de avaliação estendera-se até ao Bairro Alto, a voz rouca deu-lhe a resposta para estar, há quarenta minutos, esperando-te no restaurante. Abençoaste o seu pragmatismo, eu compro qualquer coisa: almoçamos aí, assim a posição vertical se revelou oscilante. Meia hora depois a campainha, estridente como órgão de catedral, anunciou a chegada do patriarca salvador - também trouxera pastilhas efervescentes, milagres da indústria farmacêutica.

- A colega ainda tem pouca experiência, lecciona há oito anos..., eu estou nesta escola há quase quarenta.
- Desde a revolução?
- Não respondo a provocações. 

A primeira imagem da Europa, aquela que te ficou presa na memória, foi a do aeroporto; milhares de pessoas encavalitavam-se nos pertences, as crianças embrulhadas enroscavam-se, caídas de sono: caídas do sonho. Frio, sentiste frio, sempre agarrada a ele, única referência na diferença; na manhã seguinte, adoptaste o silêncio consentido, outra família.

- Se querias andar com... podias ter ficado a viver no meio deles.
- Pague-me e eu faço isso, abro o meu próprio negócio.
- A vender caça, não? Ganha juízo...
- Já tenho idade para começar a minha vida...
- Neste país não há cubatas.

Sentiste o pulsar do ventre contra a terra, ou o contrário - a adrenalina não deixava perceber, palanca na mira, hesitavas em premir o gatilho; a postura do animal, misto de elegância e orgulho, bloqueara-te o instinto básico (destruição da beleza): não caçavas para comer. Era o ato precedente a mover-te, silenciosamente, a perseguição; o disparo certeiro era o fim.

- Não podes ficar, vão matar-te, não ouves as notícias?
- Vou pegar em armas pelo meu país.
- O nosso país é Portugal.
- O meu país é Angola.

Presa nas certezas herdadas em estantes de biblioteca, longe do livro, perdida no espaço separador entre ficção e realidade. Como estarás? O poder das palavras, múltiplos entendimentos, a desterrar-te: acreditaste que o amor vence tudo, descobriste que o tudo é toda a coisa. Onde estarás? Longe de nós, sempre mais longe de nós, à procura daquilo que levaste contigo, mas o teu coração vive aqui...

- Voltaremos?
- Não sei, tenho medo de o meu país deixar de ser.
- Não voltaremos ao passado, esse acabou.
- Não tenho certezas. 
- Nunca se volta ao mesmo.
- Nem o mesmo.

No espelho, atrás das rugas traçadas pela família criada e carpida,  memória de fé: fervor infantil, disciplina  na adolescência, recusa pela idade adulta, recuperada no luto. Culpa pelo passado.  A correspondência familiar cessara, após o bombardeamento da cidade natal, silêncio absoluto, ficaram recordações. Não serás a filha pródiga. 

- Mamã... quando a Capuchinho voltou para casa?
- Quando tudo terminou.
- E a mãe dela? 
- Lhe contou uma estória.

No meio da cidade, guardado entre paredes, promessa: condenado à reabilitação; nos primeiros dias fora o corpo a proteger-te, expressão cerrada e músculos tensos, depois os laços trazidos do bairro. Outras hierarquias (honras de delito), códigos marginais gradeados, tempo para pensar e ler; os dias de visita são família, o puto traz livros, mas quando ela olha em volta.. faz-te mal, percebes a dor sorrida. Vê-te repetido em múltiplas formas: branco, pobre, cigano, desintegrado, incolor, revoltado, preto, indiferente, castanho dividido, desadequado, punido, dependente, enraivecido, derrotado: tábua rasa. 

- Bolas! O racismo é uma construção social, um universo definido pelo poder aquisitivo. Tu ensinaste-me isso.
- De acordo.
- Então?!
- O sistema muda-se a partir do interior, leva tempo.

M. Lisboa: 2014

Arte urbana - cidade de Lisboa (fotografia: lob77)

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