Terminar o ensino secundário, contra todas as probabilidades legadas pelo básico, fora o fim da rotina escolar;
pensaste na universidade mas caminhaste para o serviço militar,
saída aconselhada pelo serviço de psicologia da escola; uma via digna
e uma carreira segura, confirmavam os militares, nas sessões de
sensibilização anuais. Escolheste a Marinha (não, foi a poesia).
- Obrigado por tudo, mas não tenho tempo, quero viajar.
- Se tu não tens tempo... que direi eu?
- Quero sair para voltar diferente.
- A diferença está em nós, podemos viajar quietos, transformando-nos.
- Quero ler o cheiro do mar.
Podes apagar as luzes, impressões de
liberdade, escolher onde e com quem estar, ver outras pessoas, falar
com elas: comunicar. Primeiro foram as saídas precárias, ela e o
puto presentes, a redescoberta do mundo família para veres o bairro,
pontes. Ver de novo. Depois a condicional, a intenção absoluta: nunca
regressar, seres outro. Ficar cá fora.
- Claro, acontece isso nas crianças...
- E foi feliz para sempre?!?
- Venho deixar este caixote, meu irmão falou para deixar aqui...
- Eu não sei quem é o seu irmão...
- Trabalhou aqui.
- Quem? O seu irmão?
- Sim, foi ele quem pediu para eu deixar esse embrulho, são livros.
- Desculpe, agora já percebo algumas parecenças, o meu pai era...
- O dono, lhe reconheço.
Quarenta anos depois, o aeroporto:
diferente, tudo diferente; a escada rolante deixou-te num alpendre
com portas defronte, sem humanos amontoando-se, referências do
passado. Um regresso ao contrário com destino à terra mãe,
cortesia do teu filho embarcado, voltas turista à procura. Cem
pressas de outros e outras, malas em carrinhos rodados, o teu passo
lento avança guiado pela sinalética. Sozinha com uma multidão
dentro.
- Eu não sei quem é o seu irmão...
- Trabalhou aqui.
- Quem? O seu irmão?
- Sim, foi ele quem pediu para eu deixar esse embrulho, são livros.
- Desculpe, agora já percebo algumas parecenças, o meu pai era...
- O dono, lhe reconheço.
- Como?
- Meu irmão também
falou de você e tinha razão.
- Não compreendo.
- Tem olhos de mar.
- …
Não podes falar com ela, vê-la
transparente luminescência, como a tudo o resto, não interages; o
acidente rápido, despiste imprevisto em piso molhado, foi a tua morte
imediata. O funeral com os amigos e os familiares espalhados, choros
descobertos e culpas reprimidas, a impossibilidade de poderes voltar para
fazeres diferente, fazeres mais, fazeres melhor... fazeres bem. Demoraste a
aceitar outra forma de vida, estranha, sem tempo ou elos tangíveis,
mas não quiseste abandonar a tua filha: os outros ensinaram-te, vives nos livros, esperas.
M. Lisboa: 2014
Sob o Oceanário - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor) |
Sem comentários:
Enviar um comentário