domingo, 9 de novembro de 2014

Olfacto aproximado (final)


Terminar o ensino secundário, contra todas as probabilidades legadas pelo básico, fora o fim da rotina escolar; pensaste na universidade mas caminhaste para o serviço militar, saída aconselhada pelo serviço de psicologia da escola; uma via digna e uma carreira segura, confirmavam os militares, nas sessões de sensibilização anuais. Escolheste a Marinha (não, foi a poesia).

- Há bolsas para a universidade, escrevo-te uma carta de recomendação, reorganizamos os teus turnos e...
- Obrigado por tudo, mas não tenho tempo, quero viajar.
- Se tu não tens tempo... que direi eu?
- Quero sair para voltar diferente.
- A diferença está em nós, podemos viajar quietos, transformando-nos.
- Quero ler o cheiro do mar.

Podes apagar as luzes, impressões de liberdade, escolher onde e com quem estar, ver outras pessoas, falar com elas: comunicar. Primeiro foram as saídas precárias, ela e o puto presentes, a redescoberta do mundo família para veres o bairro, pontes. Ver de novo. Depois a condicional, a intenção absoluta: nunca regressar, seres outro. Ficar cá fora.

- Mamã... a Capuchinho cresceu?
- Claro, acontece isso nas crianças...
- E foi feliz para sempre?!?

Quarenta anos depois, o aeroporto: diferente, tudo diferente; a escada rolante deixou-te num alpendre com portas defronte, sem humanos amontoando-se, referências do passado. Um regresso ao contrário com destino à terra mãe, cortesia do teu filho embarcado, voltas turista à procura. Cem pressas de outros e outras, malas em carrinhos rodados, o teu passo lento avança guiado pela sinalética. Sozinha com uma multidão dentro.

- Venho deixar este caixote, meu irmão falou para deixar aqui...
- Eu não sei quem é o seu irmão...
- Trabalhou aqui.
- Quem? O seu irmão?
- Sim, foi ele quem pediu para eu deixar esse embrulho, são livros.
- Desculpe, agora já percebo algumas parecenças, o meu pai era...
- O dono, lhe reconheço. 
- Como?
- Meu irmão também falou de você e tinha razão.
- Não compreendo.
- Tem olhos de mar.
- …

Não podes falar com ela, vê-la transparente luminescência, como a tudo o resto, não interages; o acidente rápido, despiste imprevisto em piso molhado, foi a tua morte imediata. O funeral com os amigos e os familiares espalhados, choros descobertos e culpas reprimidas, a impossibilidade de poderes voltar para fazeres diferente, fazeres mais, fazeres melhor... fazeres bem. Demoraste a aceitar outra forma de vida, estranha, sem tempo ou elos tangíveis, mas não quiseste abandonar a tua filha: os outros ensinaram-te, vives nos livros, esperas.


M. Lisboa: 2014

Sob o Oceanário - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)

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