Vicente olhava o
filho com orgulho mas, ao mesmo tempo, sentia-se consternado pela
atitude do patriarca: não demonstrava entusiasmo ou alegria. Os três
estavam na pequena sala, antecâmara para a biblioteca, sentados ao
redor de uma mesa rasteira, os mais velhos fumavam. Aconselhara
António a esperar, pelo fim do almoço, para dar a notícia ao avô,
uma altura mais calma e propícia a conversas viris; imaginara o
velho Ulisses a explodir de alegria mas...
Ao ouvir os
argumentos do jovem, percebera o discurso vazio mas obrigara-se a
escutá-lo, o velho não interrompera o neto; na sua cabeça, como
fotografias sucedendo-se, as razões urgentes da primeira partida, os
primários tempos para ser outro, o suor e o sangue. Sempre o sangue.
Justificara as atitudes e os comportamentos, é a ordem do mundo: o
que posso fazer?, como se os corpos humanos fossem força animal; se
não for eu a fazê-lo, será outro: eu recompenso os que são
bonzinhos e fiéis... Depois... a outra ilha e outro negócio, mais
limpo, delegar tarefas (não vira mais sair-lhes dos corpos a sua
fortuna), fugira ao sangue para se educar longe: assinara papéis.
As casas e
propriedades, as acções e os comércios, o património, a profissão
do notável filho, a (inútil) educação do neto... construíra uma
herança com sangue dos outros: a escravatura permitira-lhe apagar o
passado, criara fortuna, inventara um futuro. Mas a proximidade da
morte... consumia-o em remorsos. Manchavam tudo. O neto queria
derramar o mesmo sangue? O velho vira a expressão do filho
transformar-se, várias vezes, mas ignorara-o para concentrar o olhar
no jovem: repetira a pergunta, recebera silêncio. Ulisses, então,
percebera... apenas valeria o silêncio – paciência, aprenderá
da pior maneira. Não voltariam a falar no assunto.
A velha Penélope
começara a chorar e a rezar, mal o silêncio se instalara; os três
ouviram-na soluçar, atrás da porta, avés a Oxum e Santa Efigénia.
Mais tarde, quando todos navegarem o mar dos sonhos (e António se
esgueirar para fora de casa), a negra subirá ao quarto dele.
Deixar-lhe-á, sob a almofada, o talismã fragmentado (única herança
da alma que a habita), pesarosa por lhe saber diminuído o poder,
triste... por não poder exorcizar o futuro. O jovem fora inequívoco:
iria ajudar na defesa de Angola, terra portuguesa, ameaçada pelas
forças internacionalistas e pelos terroristas: seria feita a sua
vontade.
Nambuangongo,
1962
Avô,
Os
homens são animais estranhos, tal como costumas dizer, aqui tenho
vindo a aperceber-me de como, inúmeras vezes, é grande a distância
entre aquilo que é dito e aquilo que é feito. Ou o seu contrário.
As palavras importam: desculpa não ter escutado.
Quero
agradecer-te por me ensinares as pessoas e os gestos da terra:
quiseste preparar-me para ver os outros. Quero agradecer-te por me
teres levado a caçar gambuzinos, quando era criança, e deixado
sozinho na floresta à noite: quiseste preparar-me para as mentiras,
o engano. Quero agradecer-te também... por me teres tentado mostrar
outros mundos na tua biblioteca, podia ter viajado na literatura,
imóvel, sem sangue.
Teu
neto,
António
Acordara no escuro,
sentira o corpo dormente e a cabeça pesada como chumbo, assim os
olhos se habituaram à ausência de luz, começara a perceber vultos
de outras pessoas. Pensara em falar mas... nada no seu corpo se
movera ou lhe obedecera aos pensamentos, sentira a aproximação de
dois dos vultos: percebera que não eram portugueses, o coração
quisera saltar-lhe do peito – não podia mostrar medo, não tinha
medo e ia dizer-lhes isso... – , desmaiara.
-
Morreu?
-
Não, adormeceu, as ervas são fortes.
-
Vai viver?
-
Metade dele.
-
Ancião, por que o recolhemos?
-
Por que perguntas?
-
Deixamos todos para trás, a guerra fica e nós passamos sempre,
somos guerreiros viajantes.
-
Vê isso aí, no pescoço dele? O que é?
-
Não sei.
-
Nem eu, mas lhe sonhei.
Passaram muitos
meses até voltar a ser, em modo permanente, até ao quase antes; os
primeiros tempos acordado pareceram-lhe sonhos - outra vida, nada lhe
era familiar. Ali não ouvia a guerra. Eles eram pastores nómadas,
personagens vistas desenho nos livros folheados com o avô,
descobrira-os seres humanos: comunhão amoral com a Natureza.
Aprendera-se outro ao desaprender os conceitos imperiais. A memória
do velho tornou-se tão intensa... passou a visitá-lo nos sonhos,
Ulisses aparecia-lhe quando dormiam perto de nascentes, contava-lhe
estórias de criar mais sonhos: António acordava depois, certo da
sua condição... e vivia. Ali não havia guerra.
Ninguém o tratara
de modo compassivo ou caritativo, recuperado das febres e com dores
suportáveis, havia sido incluído nas tarefas quotidianas da
comunidade, sobrevivência. Comunicavam com ele por gestos mas
forçara-se a aprender palavras: faltavam-lhe as pernas mas
sobravam-lhe as mãos. O exército português encontrou-o, quase um
ano depois, africanizado o bastante para franzir o sobrolho ao som da
língua padrão e estalar a sua; dias antes, os pastores haviam-no
deixado perto da aldeia onde as tropas o recolheram; prosseguimos com
a nossa viagem, dissera-lhe o ancião, a tua termina aqui: nós temos
encontro marcado com o infinito.
M. Lisboa: 2014
Parque das Nações - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor) |
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